Aura Miguel: “Cada um tem no seu coração algum desejo de ouvir o Papa, que traz sempre uma mensagem para cada pessoa.” C/ vídeo

Marta Roque

Aura Miguel, a jornalista portuguesa há mais tempo acreditada na sala de imprensa da Santa Sé, publicou este ano o livro “Um logo Caminho até Lisboa” onde reúne 30 anos de reportagens de 13 Jornada Mundial da Juventude nos 5 continentes. Em entrevista ao podcast Estado com Arte conta que decidiu escrever a publicação para “trazer um colorido de como foram as várias edições da JMJ, cada uma é diferente, e como há peripécias.”

Enquanto na Europa “vivemos numa espécie de redoma, numa velha cristandade”, há países onde o contexto cristão é minoritário, e onde se corre risco de vida, pelo facto de se ser cristão, como aconteceu recentemente na viagem com o Papa Francisco à Républica democrática do Congo e ao Sudão do Sul, admite a jornalista.

Sobre a organização da JMJ23Lisboa diz que sempre encontrou “confusões em todas as cidades”, o “mais assanhado de todos foi Madrid, houve detenções na Puerta del Sol, com manifestações contra o apoio do Estado a uma organização de Igreja. Mas confessa que “depois o Papa chega e as pessoas reconhecem que é uma coisa única e acalma.”

Já fez mais de 100 viagens com o Papa.

  1. A de Portugal será a viagem número 107.

Como é que é estar tão próximo do Papa e por tantas vezes?

Cada viagem é diferente, é sempre uma novidade. Paradoxalmente, até pode-se entrar numa rotina de viajar com o Papa. Tenho 2 colegas que ainda têm mais viagens do que eu, sou a terceira que tem mais viagens dentro do grupo que viaja com o Papa.

Será muito diferente ir a países com culturas diferentes, mas com a mesma fé. Como é a experiência de viagem do Papa em Africa e depois ir aos Estados Unidos?

Por isso é uma experiência sempre nova. É fascinante o Papa é só um, e vai ao encontro das pessoas das igrejas nesses países, e isso é muito enriquecedor.

Na Europa vivemos numa espécie de redoma, numa velha cristandade, nascemos e crescemos neste contexto maioritariamente cristão, por enquanto. Mas chegamos a países em que é exatamente ao contrário. Se aqui se percebe que a fé está mais ou menos adormecida, porque há uma espécie de desinteresse, quase indiferença quanto à vida da igreja, quando se vai a países cristãos onde o contexto cristão é minoritário, e onde se corre risco de vida pelo facto de ser cristão, como agora aconteceu recentemente na viagem com o Papa à Républica democrática do Congo e ao Sudão do Sul.

Que teve uma grande adesão por parte das pessoas

Por isso mesmo, os que são cristãos, dão a vida. É um registo completamente diferente. De alegria de pertença, de saber dar as razões. É uma coisa que se percebe que se está a perder no mundo ocidentalizado. Há uma frescura diferente se formos à Ásia, por exemplo as Filipinas é o maior país católico daquela região do mundo é espetacular, para eles é uma alegria imensa, é festa. Ou mesmo em contextos pequeninos, eu lembro-me do meu primeiro choque, no bom sentido, foi quando fomos a Papua Nova Guiné parecíamos que estávamos na ilha do Robinson Crusoé, ou no meio de um documentário do National Geographic. Aparecem-nos indígenas que até há pouco tempo eram canibalistas e vêm com uma devoção impressionante participar numa missa de beatificação de um catequista indígena que foi morto na 2ª Guerra Mundial.

É mesmo uma grande experiência do ponto de vista humano e profissional. E claro do ponto de vista religioso, para quem tem fé.

A adesão à fé ainda continua a existir nos sítios mais remotos e quando menos se espera?  Tendo em conta que a fé no continente europeu parece estar adormecida

Até tem mais vitalidade, acho que o futuro da Igreja passa por um contexto em que a fé é minoritária, porque para se ser cristão nestes contextos não se pode ser cristão só porque sim. Estou a pensar no Médio Oriente, ou quando o Papa foi recentemente ao Iraque, corre-se perigo de vida, para viver como cristão é mesmo uma opção radical de vida. E de coração. O pontificado do Papa Bento XVI fez uma fortíssima advertência de que a fé estava condenada a morrer se não se mudasse de rumo, sobretudo para sair da rotina. O Papa Bento XVI disse isso quando veio a Portugal. O Papa Francisco vem de fora da Europa e olha para nós europeus como meninos mimados, temos uma vida muito mais facilitada do que em outros continentes, se a pessoa não reconhece qual o valor da fé, e o que isso implica, vira-se para outros lados, e o Papa tem-se virado para outros lados.

Uma tendência dos temas dos Papas tem sido falar sobre o consumismo exacerbado, e a falta de sentido da vida. Como vê esta critica dos Papas à sociedade atual?

Eu creio que a palavra do Papa surge sempre em função da realidade em que ele se insere. Na minha experiência, é muito interessante, ver o Papa João Paulo II que surgiu muito jovem, vinha do Leste, era muito vigoroso, introduziu uns ventos de esperança como há muito não havia. Com o avançar das décadas, depois de um pontificado que durou 27 anos, vem o Papa Bento XVI, depois da poeira toda levantada da revolução do João Paulo II, foi como se quisesse ajudar-nos a assentar para vermos quais eram os desafios.

O Papa Bento XVI foi um Papa mais introspetivo, pensou mais a teologia?

Não me parece. Era teólogo de formação, com uma inteligência fora do comum, com uma enorme lucidez, advertiu-nos que não dá para viver dos rendimentos. Somos uma velha cristandade, se cada um dos cristãos não alarga o horizonte da inteligência para poder chegar a saber o que significa ter fé, mais tarde ou mais cedo a fé desaparece e murcha.

Quando Bento XVI veio a Portugal lembrou que estamos mais ligados às consequências da fé nas várias obras nas escolas, na cultura e nos centros de assistência social. Dando por adquirida a fé, que é importante, e como isso é cada vez mais ilusório. Avisou-nos que ou percebemos as razões da fé e o que isso implica para a vida e para a consequência dos nosso actos, ou mais tarde ou mais cedo desaparece a fé.

O Papa Francisco vendo-nos de fora, vem da Argentina, disse-nos isto várias vezes. E se olharmos para a geografia das suas escolhas faz mais viagens fora da Europa. Temos tudo e desprezamos o que é essencial. Agora vem cá por causa das JMJ, acho bonito e importante, que tenha incluído etapas nas suas viagens em Lisboa e em Cascais (visitas a bairros), por causa do seu zelo pelos mais pobres e necessitados, para nos chamar a atenção, que vivemos uma vida muito mais cómoda do que o resto do mundo, para a verdadeira realidade que interessa. É muito interessante ver esta evolução sobre quais são as prioridades e preferências dos Papas.

( Veja a entrevista na íntegra no canal Podcast Estado com Arte no Youtube )

 

Publicou o livro “Um longo caminho até Lisboa” fala sobre as JMJ. Acompanhou quase todas as edições. Como começou a JMJ?

O Papa João Paulo II inventou as JMJ, da sua experiência de bispo e de padre na Polónia. Tinha esta certeza fundamental de que é preciso levar a sério as inquietações dos jovens e dos desejos constitutivos do coração que cada jovem tem de beleza e de bem. Wotyla considerou que os adultos têm um certo cinismo.  Ainda não era Papa e já apostava em conversas e passeios com jovens.

Qual o objetivo em ter criado a JMJ?

Não tinha objectivo, tinha essa experiência. Quando foi eleito Papa percebeu, disse num Ângelus no Palácio Apostólico que estava profundamente convencido, que se Deus o tinha chamado para Papa, era para que as intuições, que tinha tido ao longo da sua vida de Pastor, se revelassem a nível mundial. Uma dessas intuições tinha como opção preferencial absoluta os jovens.

Em 1983, ano Santo da Redenção convidou os jovens para virem à praça de São Pedro domingo de Ramos, os organizadores previam 60 000 e vieram 300 000. Em 1985 no ano mundial da juventude, declarado pela ONU, voltou a convidar os jovens para a praça de São Pedro no domingo de Ramos e vieram 500 000. Aí pensou que esta intuição devia-se espalhar pelo mundo inteiro. Convocou, então, a 1ª JMJ para Buenos Aires, 1987. Essa foi a única que não fui, a seguinte foi em 89 santiago Compostela.

O Papa Francisco faz o prefácio do livro e comenta que a Aura não tinha estado na Argentina, a única JMJ a que ele foi

Precisamente, esse é o mote do livro. Quando o Papa viajou pela 1a vez foi para o Rio, uma herança deixada do Papa Bento XVI por ter resignado. Foi a 1ª vez q o Papa Francisco viajou e conheceu os jornalistas do avião Papal. Eu disse-lhe que estava contente de viajar com ele para seguir a JMJ, sobretudo porque tinha feito todas as JMJ menos a 1ª. O Papa respondeu a dizer: “Olha eu fui ao contrário, fiz 1 e não fiz mais nenhuma”.

Mas entretanto já fez as JMJ em Cracóvia e no Panamá. Esse episódio inspirou-me para fazer o livro.

São 30 anos de reportagens de 13 JMJ nos 5 continentes que reuni em livro para trazer um colorido de como foram as várias edições, como cada uma é diferente, e como há peripécias.

O que procuram os jovens na JMJ? É a relação com Jesus? A procura do sentido da vida?

É um pouco de tudo. Os que procuram são os de “casa” são os que estão envolvidos em grupos da igreja, depois há 2º grupo os curiosos, quando começam a chegar a uma cidade aquilo fervilha. Está provado que os que não se escreveram se calhar também vão achar graça, que pensam “se calhar também vou”. E com o Papa presente ainda leva mais gente, espera-se que duplique no fim de semana ( 5 e 6 de agosto). O que os motiva? Cada um tem no seu coração algum desejo de ouvir o Papa, que traz sempre uma mensagem para cada pessoa, e fazer amizades.

O que vai dizer o Papa?

Leiam o que Papa escreveu para o meu livro ( risos). Está preocupado com esta geração de nativos digitais. Falou em Cracóvia, e voltou a falar disso no Panamá, é fundamental os jovens saírem ao encontro e desinstalarem-se, e, portanto, quando a realidade corre o risco de ser filtrada quer dos telemóveis quer dos computadores alguma coisa corre mal. Os jovens tornam-se adultos se viverem a realidade olhos nos olhos, não fiquem na varanda a ver passar. Saiam para a rua, aí é que encontram resposta para os vossos desejos de felicidade. É o ponto essencial, se descerem à realidade descentram-se percebem que há outros que precisam de ajuda, pessoas que sofrem.

Sair do individualismo?

Esse é o ponto central. O tema não é por acaso. Maria saiu apressadamente, este episodio tinha acabado de ficar de ficar gravida e tinha motivos para ficar quietinha. Este zelo de Maria é o que papa propõe nos diferentes contextos e desafios.

A JMJ23Lisboa parece ser mais abrangente, com abordagem ecuménica e ecológica. Como vê esta organização?

Não creio que seja uma novidade. O pontificado do Papa é assim. É o Papa da Laudato Si,  sistematicamente diz que o verdadeiro cristão deve cuidar da casa comum, nunca tinha havido um Papa que se tivesse dedicado a estes temas. Claro que Lisboa aposta muito nessa dimensão, mas há uma espécie de indicação de base da Santa Sé, um esquema pré-concebido para que respeitem estes aspectos. Outra coisa é que sempre foi feito um convite a todos: cristãos e não cristãos. Já no tempo de João Paulo II foi assim. Agora claro a esmagadora maioria são católicos que vêm ao convite do Papa, que não haja ninguém que sinta excluído. Sempre foi uma preocupação desde sempre das JMJ, mas agora ainda mais, porque a realidade também muda, na Europa grande parte dos refugiados, e mesmo dos estão entre nós nem são católicos, nem ecuménicos. É uma festa da juventude presidida pelo papa, que todos se sintam acolhidos tem sido uma constante.

Quanto à organização em Lisboa?

Não acompanho a parte da organização, só acompanho o Papa, sempre encontrei confusões em todas as cidades.

O mais assanhado de todos foi Madrid, houve detenções na Puerta del Sol, sempre contra este apoio do estado a uma organização destas. Em Paris saíram para rua com o lado jacobino numa grande fúria. Depois o Papa chega e as pessoas reconhecem que é uma coisa única e aquilo acalma sempre.

Uma iniciativa destas só pode acontecer com o apoio do Estado e das autarquias onde o evento se realiza. É de uma dimensão tal que quando uma cidade se candidata tem que ter apoio do Estado e das autoridades locais. Quem se candidata tem que apresentar um dossier bastante exaustivo. E avaliação  também é feita pela Santa Sé para ver se a cidade tem condições para que realize um evento desta envergadura. Não domino, mas sei que é assim.

É sempre uma grande apreensão, uma surpresa para os habitantes do país, mas quando o Papa vier acalma tudo um bocadinho.

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