O Tribunal Constitucional decidiu esta semana, em plenário, pela constitucionalidade dos arts. 387º e seguintes do Código Penal, que preveem e punem os crimes de morte, maus tratos e abandono de animais de companhia.
Esta decisão foi antecedida de vários Acórdãos em sentido contrário que fundamentaram o juízo de inconstitucionalidade destas normas num conjunto de argumentos, dos quais se destacava a inexistência de um referente constitucional suficientemente consistente em matéria de proteção da vida e da integridade animal capaz de legitimar a restrição dos direitos, liberdades e garantias do cidadão associada à aplicação da sanção penal, o que teria como inevitável consequência a violação do art. 18º, nº 2, da Constituição, e o comprometimento da própria função do direito penal como instrumento de tutela de bens jurídicos, de acordo com o art. 40º do Código Penal.
Não é possível deixar de reconhecer que a nossa norma fundamental não protege “preto no branco” os direitos dos animais de companhia, ao contrário, por exemplo, da Constituição da República Federal da Alemanha, que inclui expressamente os animais no âmbito de proteção do art. 20º, que tutela os recursos naturais vitais e os animais.
Todavia, cumpre lembrar que não só a tese da referência constitucional do bem jurídico vai para lá das escolhas positivadas no texto constitucional, integrando no leque de escolhas fundamentais da coletividade a chamada Constituição material, não escrita, que antecede a elaboração da própria norma fundamental e que confere unidade e coerência ao programa nela estabelecido, como é perfeitamente possível retirar da disciplina constitucional positivada pontos de apoio suficientes para a identificação de um bem jurídico capaz de legitimar estas normas penais, o que reconheceu o Acórdão desta semana do Tribunal Constitucional, ao estabelecer que a vida, a integridade física e o bem-estar animal constituem valores constitucionais integrantes do bem jurídico ambiental e da qualidade de vida do próprio Homem tutelados pelos arts. 66º e 9º, alíneas d) e e) da Constituição.
Está definitivamente ultrapassada a ideia de que o animal de companhia é um mero objeto de direitos reais, sujeito à possibilidade de destruição pelo seu proprietário, pelo que a vida e o bem-estar destes animais como seres sensíveis deve ser qualificado como um bem jurídico complexo integrado por várias dimensões de tutela em relação estreita com o ambiente e com o princípio da dignidade humana consagrado pelo art. 1º da nossa Constituição.
Os animais de companhia estão tradicionalmente ligados ao Homem por uma relação de dependência e de cuidado criada pelo próprio Homem ao longo de séculos, relação essa que a decência, a humanidade, e mesmo o princípio do abuso de direito, obrigam a preservar. O que também impõe o mesmo art. 1º quando fala na construção de uma sociedade justa e solidária.
Aceitando que a norma fundamental não exprime valores estáticos, fechados à evolução do sentir coletivo, e que o bem estar animal é hoje unânime e coletivamente reconhecido como um valor digno de tutela, coloca-se o problema de saber se existe necessidade de recorrer à norma penal e às suas sanções para punir estes comportamentos, ou se, pelo contrário, esta intervenção representa uma restrição desproporcional da liberdade do agressor, tendo em conta que seria possível recorrer ao direito contraordenacional e à aplicação de coimas para prevenir estas agressões.
Uma vez que estes crimes são crimes públicos, a polícia e os órgãos de investigação criminal ver-se-iam obrigados a desbaratar meios humanos e recursos financeiros – consabidamente escassos – para investigar denúncias pouco fundamentadas de maus tratos a animais, o que não aconteceria se a reação a estas condutas fosse apenas de natureza administrativa. Parece-nos, todavia, que a resposta a esta inquietação não pode afastar-se muito da resposta que damos à questão da existência de um bem jurídico penalmente relevante nesta matéria.
A partir do momento em que aceitamos que o bem-estar e a integridade animal são bens jurídicos dignos de tutela, e olhando à extrema gravidade e censurabilidade das condutas previstas na lei, as críticas dirigidas à necessidade da intervenção do legislador penal também não colhem.
Na verdade, os arts. 387º e seguintes do Código Penal não punem um qualquer mau trato de animais, ou comportamentos sem importância. Estas normas destinam-se a punir ações ou omissões intencionalmente dirigidas contra a vida, a integridade física e o bem estar animal, que causam dor e sofrimento injustificado aos animais de companhia, encontrando-se previsto um crime agravado pelo resultado no art. 387º, nº 4, quando a agressão intencional venha a causar a morte do animal, a privação de importante órgão ou membro, ou a perda da sua capacidade de locomoção, estando também previsto o agravamento da punição quando as agressões forem praticadas de forma particularmente censurável.
Por sua vez, o art. 388º tem por objetivo por fim ao flagelo do abandono de animais de companhia por parte de quem tem o dever de cuidar dos animais (donos ou outros cuidadores), punindo o abandono com criação de perigo para a sua alimentação e prestação de cuidados, e o abandono com criação de perigo para a vida. Além das penas principais estabelecidas para estes crimes, estão também previstas penas acessórias como a proibição de ter animais, a suspensão de permissões administrativas ou o encerramento de estabelecimentos relacionados com animais de companhia quando o seu funcionamento dependa de licenças ou autorizações.
Também se diz destas normas que padecem de um grau de indeterminabilidade incompatível com o princípio da legalidade penal, o que o Tribunal Constitucional sublinhou várias vezes ao declarar inconstitucionais os arts. 387º e 389º, embora esta indeterminabilidade não pareça maior do que a que rodeia outros conceitos e outras normas penais.
Em primeiro lugar, coloca-se a questão de saber o que é um animal de companhia à luz da definição do art. 389º do Código Penal, e se é justificado restringir a proibição e punição dos maus tratos a estes animais. A limitação do âmbito de proteção destas incriminações aos animais de companhia ganha sentido pela referência do bem jurídico protegido à relação entre estes animais e o Homem, que os domesticou e integrou na sua vida e nas suas rotinas, privando-os das suas defesas naturais e da sua capacidade de sobrevivência autónoma, e é esta relação de dependência entre o animal e o Homem que constitui o critério material de definição do que verdadeiramente é um “animal de companhia”.
Se o animal pertence a alguém, está “detido” por essa pessoa e, por conseguinte, é um animal de companhia, não sendo relevante se é um porquinho da índia, uma tartaruga, ou um cão; e quando se “destina a ser detido”, estamos naturalmente a pensar em espécies domesticáveis como gatos, cães, e animais que por definição acompanham o homem desde tempos imemoriais e que perderam a sua capacidade natural de adaptação ao ambiente e de reagir aos perigos de viver fora da sua relação com o homem.
Invocou-se a referência feita no art. 387º, nºs 1, e 3, à existência de “motivo legítimo” para o mau trato como forma de afastar a sua relevância típica como prova de que a incriminação é excessivamente indeterminada. Afinal o que é um “motivo legítimo” para um mau trato? Ora esta objeção é integralmente ultrapassável se tivermos presente que a referência ao “motivo legítimo” como forma de definir a matéria proibida surge em vários outros pontos da lei quando a conduta incriminada é fluida e depende de valorações sociais para a sua delimitação, como acontece no quadro dos crimes contra a honra (art. 180º, nº 2, alínea a).
Acresce ainda a dificuldade em definir o que constitui dor ou sofrimento animal, e qual a relação que a dor e o sofrimento mantém com os outros maus tratos físicos a que o legislador se refere. Existe aqui efetivamente uma equiparação indevida entre o mau trato físico e a dor e o sofrimento que podem ser consequência do mau trato físico mas que constituem mau trato psicológico, embora cumpra lembrar que a tutela da integridade física do ser humano apenas compreende as ofensas de natureza psicológica que tenham repercussão na saúde e na integridade física da pessoa, o que mutatis mutandis nos permitiria a interpretação segundo a qual só seriam abrangidas pela norma que pune os maus tratos animais a dor e o sofrimento sérios, intensos, em suma, relevantes sob o ponto de vista das suas repercussões na integridade física do próprio animal.
Sem prejuízo de uma possível melhor redação das normas em questão, lembramos que há outras incriminações penais, designadamente as que correspondem à transposição de diretivas e convenções internacionais em matéria ambiental, cujo grau de indeterminação afeta de forma mais substancial o conhecimento da norma pelos seus destinatários e a perceção da ilicitude dos comportamentos correspondentes, sem que a complexidade da matéria e a necessidade recorrer a remissões legais complexas envolva forçosamente a sua inconstitucionalidade.
Decerto que o aplicador do direito é aqui chamado a uma tarefa difícil de identificação e de delimitação dos comportamentos penalmente relevantes, mas não restam dúvidas quanto à dignidade penal destas condutas e quanto à necessidade de as punir, sendo de realçar que os casos de maus tratos de animais que têm vindo a público e que foram decididos até agora pelos tribunais representam agressões verdadeiramente intoleráveis contra a vida e a integridade de animais que o Homem tem o dever de garante genérico – e concreto – de proteger, e violações crassas de deveres de humanidade, lealdade e decência que o mesmo ser humano tem de manter na sua relação com o meio ambiente que o rodeia.