Este paradigma mudou substancialmente há dez anos atrás: com a aprovação do Regulamento das Custas Processuais (RCP), o Estado demonstrou (mais uma vez) não ser pessoa de bem, e dispensou-se de devolver à parte vencedora do processo o valor adiantado pela mesma por conta de uma taxa de justiça de que não é devedora, e transferiu para ela o ónus de fazer a cobrança desse valor directamente à parte vencida.
Desde «tempos imemoriais» que as custas processuais são regidas por um princípio de justiça elementar e, por isso, intuitivo: que quem perde o processo paga as respectivas custas.
«As custas» incluem a taxa de justiça cobrada pelo Estado (em geral calculada em função do valor económico do processo), os encargos (outras despesas com o processo, como por exemplo honorários de peritos) e uma compensação à parte contrária pelos custos que teve com os honorários do seu advogado (que antigamente era irrisória e se chamava «procuradoria», e que hoje é calculada de acordo com uma fórmula desnecessariamente complicada, que conduz a um valor tendencialmente igual ao da taxa de justiça).
No início do processo (ou faseadamente em determinados momentos do mesmo) cada parte adiantava ao Estado metade da taxa de justiça devida, e no final do processo o Estado «fazia contas» com cada uma das partes, devolvendo à parte vencedora o que esta lhe tinha pago, e cobrando à parte vencida o que esta ainda não tinha pago (nomeadamente o montante de taxa de justiça devolvido pelo Estado à parte vencedora).
Este paradigma mudou substancialmente há dez anos atrás: com a aprovação do Regulamento das Custas Processuais (RCP), o Estado demonstrou (mais uma vez) não ser pessoa de bem, e dispensou-se de devolver à parte vencedora do processo o valor adiantado pela mesma por conta de uma taxa de justiça de que não é devedora, e transferiu para ela o ónus de fazer a cobrança desse valor directamente à parte vencida.
A injustiça e inconstitucionalidade desta alteração legislativa são manifestas, pois o RCP permite ao Estado locupletar-se com dinheiro pertencente a quem não é seu devedor, transmitindo-lhe em contrapartida um crédito que para mais, embora no mesmo valor nominal, é muito frequentemente um crédito mal parado (sobretudo nos casos de cobrança de dívidas ou indemnizações, em que os condenados muito frequentemente não pagam voluntariamente sequer a dívida principal, quanto mais as custas processuais).
Apesar disso, foram precisos 10 anos para que o Tribunal Constitucional declarasse, com força obrigatória geral, a inconstitucionalidade das normas legais que instituíam este regime manifestamente iníquo.
Este é o principal problema da aprovação legislativa de normas inconstitucionais: os mecanismos de correcção existem, mas caso a inconstitucionalidade não seja declarada logo no momento inicial da fiscalização preventiva (o que pode acontecer simplesmente porque, no momento político da aprovação da lei, favorável à mesma, nenhuma das entidades competentes requerer essa fiscalização) pode levar muitos anos até que as normas inconstitucionais sejam expurgadas.
A aprovação de normas inconstitucionais é infelizmente frequente. Uma observação atenta das «marés» legislativas recentes justifica alarme, tendo em conta, só para dar dois exemplos evidentes, a legislação recentemente aprovada sobre as Ordens Profissionais, diminuindo significativamente a sua autonomia e independência face ao Estado, e a tendência da maior parte das forças políticas para defenderem a criminalização do «enriquecimento ilícito», já por algumas vezes tentada e sempre chumbada pelo Tribunal Constitucional – aqui felizmente logo em sede preventiva, impedindo a norma incriminatória de entrar em vigor.
Relativamente às Ordens Profissionais, trata-se de mais um exemplo da velha máxima «dividir para reinar», utilizada desde sempre pelos Estados, mesmo democráticos, para aprovar medidas impopulares relativamente a um sector isolado da população de cada vez, evitando assim uma contestação generalizada a cada uma dessas medidas (ou «pacotes») individuais, e desta forma progressivamente apertando o seu controlo sobre todos e cada um dos sectores da sociedade civil.
A regulação das Ordens Profissionais é um bom exemplo desta prática, pois constitui uma matéria com um certo grau de complexidade técnica, pouco dado a «soundbytes simplistas» ou a despertar reacções emocionaiais, e que afecta directamente sectores relativamente restritos da sociedade, sendo por isso esta uma alteração legislativa susceptível de levada a cabo com reduzida repercussão politico-mediática. Só que a independência das Ordens Profissionais tem-se revelado, historicamente, indispensável à Democracia e um travão aos ímpetos autoritaristas do Estado. Nomeadamente, a advocacia constituí o único meio legítimo de um cidadão privado individualmente considerado se poder defender do Estado com um razoável grau de eficácia, sendo por isso indispensável que o Estado não a domine.
Quanto à incriminação do «enriquecimento ilícito», trata-se de uma velha bandeira da esquerda radical, que foi gradualmente alastrando ao resto da esquerda, e que conseguiu penetrar no PSD nos tempos da troika. A ser aprovada, permitirá ao Estado não só abocanhar a qualquer cidadão uma parcela do seu património que considere de origem não demonstrada, como ainda aplicar-lhe (e aqui reside a parte mais grave) uma condenação criminal.
Neste caso, pelo contrário, apela-se aos sentimentos emotivos da generalidade da população, apresentando-se esta medida como essencial para punir «os bandidos e os corruptos», ou seja, um «eles», diferente de «nós», a quem se atribui a causa de todos os males. Só que uma lei geral não se aplica só a «eles», e poderá amanhã vir a ser aplicada a qualquer um de «nós». Além de confundir enriquecimento de origem desconhecida, enriquecimento de origem ilícita, e enriquecimento de origem criminosa (três realidades bem distintas), incorrendo assim numa flagrante violação do princípio da presunção de inocência, esta proposta esquece igualmente que o direito penal e as penas de prisão são instrumentos de ultima ratio, e que outros ramos do direito, menos gravosos para os cidadãos (como por exemplo o direito fiscal) poderão atingir os mesmos objectivos utilizando meios constitucionalmente aceitáveis.
Estes temas são tecnicamente mais exigentes, e mais áridos, mas (para já não falar das questões de defesa, que deviam ser prioritárias em função dos tempos que correm) são muito mais importantes do que a telenovela de terceira categoria que nos têm servido na (pré-)campanha eleitoral.


