“Os Despojos do Dia” é a obra mais conhecida de Kazuo Ishiguro. Trata um tema amplo, uma introspecção minuciosa e inteligente, sobre a profissão, os costumes e os valores de uma ordem social e política, de um tempo que já passou. Uma pequena joia literária que exige profunda reflexão.
Stevens foi um mordomo que dedicou a maior parte da sua vida profissional ao serviço de Lord Darlington, o anfitrião de muitas e prestigiadas conferências internacionais nos anos 30, cujo objectivo era o de “abrandar em vários aspectos o vexante tratado de Versalhes, que teria sido exagerado, maltratando em excesso um inimigo, que tinha sido derrotado”.
Lord Darlington, tinha combatido na primeira Guerra Mundial e procurou, por todos os meios, encontrar uma forma de se evitar a segunda guerra, a qual ele previa que fosse de uma violência extrema. “ O destino da Europa poderá depender, efectivamente, da nossa capacidade para convencermos o Dupont deste ponto.”(…) Mr. Lewis, senador americano durante o jantar afirmou:
“ Dupont odeia os Alemães. Odiava-os antes da guerra e odeia-os agora com um ódio tão profundo que os cavalheiros teriam dificuldade em compreender”.
Os ingleses tinham uma maneira de ver as coisas muito diferente dos franceses e Lord Darlington defendia que “não ficava bem continuar assim a odiar um inimigo depois de terminado o conflito. Quando atiramos um homem às lonas, as coisas devem terminar aí. Não devemos, depois de o derrubarmos, aplicar-lhe pontapés. Aos nosso olhos o comportamento dos Franceses tem-se tornado cada vez mais bárbaro”.
Chegado o dia da Conferência internacional, na última semana de Março de 1923, já era notória uma certa cumplicidade velada entre o senador americano Mr. Lewis e o francês M. Dupont. Após o lauto jantar foram trocadas algumas opiniões de forma mais acalorada. Num silêncio constrangedor, Mr. Lewis levantou-se, sorrindo agradavelmente como lhe era habitual e disse:
“Bem, já que toda a gente faz discursos, acho que também tenho o direito de fazer um – disse, e tornou-se logo aparente, pela voz, que bebera demasiado. – Não tenho nada a dizer quanto ao que o nosso amigo francês proferiu. Ignoro, pura e simplesmente, esse tipo de conversa. (…) – Mr. Lewis calou-se e, por momentos pareceu não saber como continuar. Até que voltou a sorrir e continuou: – Como disse, não vou perder o meu tempo ali com o nosso amigo francês. No entanto, tenho uma coisa a dizer. Já que estamos todos a ser francos, serei franco também. Vocês, cavalheiros presentes, desculpem que o diga, não passam de um grupo de sonhadores ingénuos. E, se não teimassem em intrometer-se em assuntos importantes que afectam o Globo, seriam realmente encantadores. Vejamos, por exemplo, o nosso bom anfitrião. É um cavalheiro. Nenhum dos presentes, estou certo, discordará. É um cavalheiro inglês clássico. Decente, honesto, bem-intencionado. Mas é um amador. É um amador e hoje os negócios internacionais já não são para cavalheiros amadores. Quanto mais depressa compreenderem isso aqui na Europa, melhor. Permitam-me que pergunte a todos vocês, cavalheiros decentes e bem-intencionados: fazem alguma ideia do tipo de lugar em que o mundo que os cerca está a tornar-se? O tempo em que podiam actuar guiados pelos vossos nobres instintos, acabou. Só que, evidentemente, vocês, aqui na Europa, parecem não o saber ainda. Cavalheiros como o nosso bom anfitrião ainda acreditam que lhes compete intrometerem-se em assuntos que não compreendem. Foram aqui ditas tantas tolices nestes últimos dias! Tolices ingénuas, bem-intencionadas. Vocês, aqui na Europa, precisam de profissionais para dirigirem os vossos assuntos. Se não se convencerem disso depressa, correm para a tragédia. Um brinde, cavalheiros. Permitam-me fazer um brinde. Ao profissionalismo”.
Após um silêncio, Lord Darlington levantou-se, – “Não tenho desejo algum de entrar numa discórdia nesta última noite juntos, que todos merecemos desfrutar como uma ocasião feliz e triunfante. Mas é por uma questão de respeito com as suas opiniões, Mr. Lewis, que me parece não devermos pô-las, simplesmente, de parte, como se tivessem sido expressas por algum excêntrico orador da praça publica. Permita-me que diga o seguinte: o que o senhor descreve como ´amadorismo` é aquilo a que a maioria de nós ainda prefere chamar ´honra`.
– Mais Sir, creio fazer uma boa ideia do que refere com ´profissionalismo`. Parece que significa conseguir o que se pretende por meio de muita impostura e manipulação. Significa ordenar as prioridades de acordo com a ganância e a vantagem, em vez de com o desejo de ver a bondade e a justiça prevalecerem no mundo. Se é esse o ´profissionalismo` a que se refere, Sir `, não sinto grande interesse por ele e não tenho desejo algum de o adquirir”.
Lord Darlington era um cavalheiro de grande estatura moral e o seu mordomo que o serviu durante 35 anos, recorda com orgulho e gratidão por ter sido privilegiado no seu trabalho. “ Cada um de nós acalentava o desejo de dar o seu pequeno contributo para a criação de um mundo melhor e compreendia que, como profissional, a maneira mais segura de o conseguir era servindo os grandes cavalheiros do seu tempo a cujas mãos a civilização fora confiada”. (…)
“Quem quer que insinue que Lord Darlington teve ligações secretas com um inimigo conhecido está apenas a esquecer, muito convenientemente, o verdadeiro clima desses tempos”.
Mas assim aconteceu, algumas suspeitas infundadas e divulgadas por jornais ambiciosos, que aumentando a tiragem, alimentaram esta mentira, quando a guerra começou, em 1939.
Stevens, ao serviço do Sr. Lewis, o novo dono americano de Darlington Hall, aceita a sua sugestão para dar um passeio pelo campo, apanhar ar e conhecer um pouco do país, disponibilizando o seu automóvel, um Ford e oferecendo-se ainda para suportar os gastos com a gasolina.
Nesta viagem, o mordomo perfeito, reflecte sobre o seu passado, num esforço de se convencer de que serviu a Humanidade servindo um «grande homem», Lord Darlington. Faz uma retrospectiva de toda a sua vida, recordando a profissão, as pessoas com quem colaborou, a sua relação com uma governanta, num misto de paixão e respeito, a morte do pai entre tantos outros acontecimentos, duma vida íntegra, contida e de fidelidade no servir com profissionalismo e orgulho.
É uma obra esplendorosa que nos recorda como todo o esforço para se evitar uma guerra é atributo dos grandes homens, que amam a vida, o país, a humanidade.
Estará démodé, porém nunca foi tão premente a sua intervenção como nos nossos dias…
Recordemos que o autor dos Despojos do Dia, Kazuo Ishiguro, nasceu em Nagasaki, no Japão, em 1954, e vive no Reino Unido desde os cinco anos.
É um nipónico que jamais poderá esquecer a barbaridade da II Guerra Mundial, com consequente lançamento da bomba atómica na sua terra natal.
Na cerimónia de entrega dos Prémios Nobel 2017, em Estocolmo na sua intervenção, Ishiguro fez um apelo à comunidade literária: “É difícil mudar o mundo, mas pensemos no modo como podemos mudar o nosso ‘pequeno mundo’ da literatura, onde escrevemos, lemos, recomendamos, criticamos e premiamos os livros. Se pretendemos ter um papel relevante neste futuro incerto, se pretendemos obter o melhor dos escritores de hoje e de amanhã, temos de ampliar a nossa diversidade”.
“Em primeiro lugar, devemos ampliar o nosso mundo literário, para incorporar muitas mais vozes provenientes de outras, que não as ‘zonas de conforto’ do primeiro mundo. Temos de procurar mais energia para descobrir o melhor de culturas literárias desconhecidas, tanto de escritores de países distantes, como nas nossas próprias comunidades”.
“Em segundo lugar, temos de ser cuidadosos com o que consideramos boa literatura; não podemos ser conservadores, nem estreitar a nossa definição. A próxima geração trará todo o tipo de novos modos, importantes e maravilhosos, de contar histórias. Temos de manter a mente aberta, em especial no que diz respeito a género e forma, para poder apoiar e aplaudir os melhores”.
“Num tempo de divisões perigosamente crescentes, devemos escutar. A boa escrita e a boa leitura derrubam barreiras. Temos de encontrar uma nova ideia, uma grande visão humanista em torno do que congregamos”, disse o autor de “Os Despojos do Dia”.
“Muito obrigado à Academia Sueca, à Fundação Nobel e ao povo sueco que, ao longo dos anos, tem sabido fazer do Prémio Nobel um resplandecente símbolo de justiça pela qual lutamos, os seres humanos”.


