Podemos dizer que as sementes do nosso atual Serviço Nacional de Saúde surgiram de um aspeto negativo dessa época: a guerra colonial. Explico: com a guerra colonial, os jovens estudantes de medicina e jovens médicos eram obrigados a fazer o serviço militar obrigatório e, durante esse tempo em zonas remotas, inteiravam-se das grandes carências e necessidades da população rural em termos de saúde e outros aspetos básicos.
Gostava apenas de referir, que essas “zonas remotas”, muitas vezes encontravam-se a pouco mais de 15km de um grande centro urbano.
Cumprimos 50 anos do 25 de Abril e nos últimos dias vemos muitos estudos e questionários efetuados há população sobre o que, segundo a opinião pública, alcançou uma evolução notável no nosso país nos últimos 50 anos. Nos vários estudos e questionários houve sempre um tema em destaque: a saúde. Nos últimos 50 anos o sector da sociedade que teve a evolução mais notável, para mais de 60% dos questionados, foi a o acesso e a qualidade da nossa saúde.
De facto, esta impressão e noção, que se tem é mesmo uma realidade! O nosso SNS, é mesmo a Grande Conquista de Abril. De passarmos de ser um país com alguns dos piores indicadores de saúde a nível europeu a termos atualmente o décimo segundo melhor Sistema de Saúde do Mundo. Antigamente, em 1.000 recém-nascidos morriam 75 bebés em Portugal e em que por cada 100 mil partos havia 59 mães que perdiam a vida. Agora, temos níveis de melhor do mundo, estando mesmo à frente em muitos aspetos dos países mais ricos do mundo, como os Estados Unidos.
Mas para que esta revolução tivesse ocorrido, houve toda uma evolução e uma mudança de paradigma que foi surgindo ainda antes do 25 de Abril. Por isso, gostaria de falar um pouco de história e de como as sementes do nosso SNS foram semeadas por jovens médicos formados nas grandes cidades que decidiram ir para as periferias fazer medicina e ajudar as pessoas.
De referir que na altura, a parte da população que tinha acesso à Saúde era muito reduzido e muito díspar na nossa sociedade. Há 50 anos, 3/4 da população vivia fora dos grandes centros urbanos, nas chamadas periferias, mas menos de 1/4 dos serviços de saúde encontrava-se à disposição dessa população. 3/4 dos médicos e profissionais de saúde encontravam-se a trabalhar nos grandes centros urbanos deixando uma grande parte da população desatendida.
Tudo isso começou a mudar com a geração de estudantes de medicina dos anos 70, quando, por própria iniciativa decidiram servir as populações rurais mais desfavorecidas.
Em último caso, podemos dizer que as sementes do nosso atual Serviço Nacional de Saúde surgiram de um aspeto negativo dessa época: a guerra colonial. Explico: com a guerra colonial, os jovens estudantes de medicina e jovens médicos eram obrigados a fazer o serviço militar obrigatório e, durante esse tempo em zonas remotas, inteiravam-se das grandes carências e necessidades da população rural em termos de saúde e outros aspetos básicos.
Gostava apenas de referir, que essas “zonas remotas”, muitas vezes encontravam-se a pouco mais de 15km de um grande centro urbano.
Durante o serviço militar obrigatório, muitos médicos tomaram consciência das enormes injustiças que eram estruturais no Portugal pré-25 de Abril e, assim surgiu o Serviço Médico à Periferia. Este serviço, que germinou antes do 25 de Abril e tomou forma já depois da revolução, nasceu depois de longas negociações dos estudantes de medicina com o Ministério da Saúde. Uma das condições que surgiu dessas conversas e negociações, era que esse tempo de Serviço Médico à Periferia, fosse obrigatório para poder aceder à formação específica.
Este serviço durou 7 anos, de 1975 a 1982 e ajudou a que o nosso SNS tomasse forma e servisse de maneira eficaz e exemplar a população, além de dar uma formação de excelência aos jovens médicos recém-licenciados.
Naquele tempo, os Centros de Saúde ainda não eram uma realidade expandida e muita da medicina feita na periferia era em consultórios privados. Por tudo isso quando chegavam estes médicos, jovens, motivados e revolucionários geraram muitos anticorpos e foram, inicialmente, vistos com maus olhos pelos médicos que já se encontravam lá.
Mas a população sentiu-se, finalmente, atendida e sempre apoiou este movimento. Com o tempo, quanto mais este movimento crescia, mais inspirava António Arnaut. Estes jovens médicos, com uma dedicação e motivação enormes inspiraram Arnaut a criar o Sistema Nacional de Saúde com a lei n.º 56/79, de 15 de setembro ainda no âmbito do Ministério dos Assuntos Sociais.
Desde 1979 até 1982 houve um período de transição em que o Serviço Médico à Periferia foi essencial para a implementação do SNS e de jovens médicos na província. Ainda agora temos resquícios desses anos de transição, em que os jovens médicos após o curso de medicina, têm de fazer o ano comum, um ano de transição entre a faculdade de medicina e a especialidade médica.
Uma das razões porque o nosso SNS tem tanto sucesso e é essencial no nosso sistema social, tem mesmo a ver com a sua génese. Foi um sistema construído de baixo para cima, da experiência de inúmeros e anónimos médicos jovens, em contacto com as populações mais necessitadas e com experiência no terreno que depois levaram essa informação ao Ministério e daí se desenvolveu o resto. Foi um trabalho de equipa, em que se ouviram todas as partes para resolver o maior problema que a nossa sociedade tinha no século XX: o acesso a cuidados de saúde.
Esta pequena história também nos permite ver que, como de situações e circunstâncias negativas, neste caso como a guerra colonial e um serviço militar obrigatório, foram fulcrais no nascimento do SNS devido ao contexto que criaram e que levaram muitos jovens médicos a conhecer a realidade do país. Eu diria mais, foi essencial, pois naquela época estudar estava destinado às elites e essas elites não teriam ido para a província e tido contacto com realidades diferentes senão tivessem de fazer o serviço militar. Foi retirado algo positivo, de uma situação extremamente negativa como a guerra colonial.
Nestes tempos conturbados, depois de 50 anos de liberdade, em que vivemos uma crise social com especial incidência na habitação, educação e saúde, temos de saber manter o espírito aberto para o diálogo e a resolução de problemas.
A Direção Executiva do SNS, que começou o seu trabalho de reforma do SNS no dia 1 de janeiro de 2023 demitiu-se em bloco em desacordo e confrontação com a atual Ministra da Saúde. Ministra da Saúde esta, que foi nomeada pelo atual diretor executivo, o Professor Fernando Araújo, no ano passado para ser diretora do maior Hospital do Pais, o Hospital Santa Maria em Lisboa, mas demitiu-se em dezembro em total desacordo com as politicas empreendidas pela Direção Executiva.
Não faço juízos de valor, de que uma Direção Executiva do SNS seja supérflua ou um pretexto para proteger o Ministério da Saúde das decisões que toma. Ao longo do ano passado o Ministério da Saúde parecia ter uma direção bicéfala. Mas este tipo de cargos, pode dar a impressão à sociedade que foram criados para dar “jobs for the boys”. Eu acredito que esta Direção Executiva era necessária para implementar as difíceis e necessárias reformas pois seria politicamente independente (de preferência) e, de alguma forma, protegeria politicamente o Ministério da Saúde. De facto, seria uma instituição extremamente necessária na reforma estrutural do SNS.
Na minha opinião, esta tomada de posição política da Direção executiva do SNS não augura nada de bom. O SNS necessita de uma reforma estrutural, ainda está demasiado orientado para um país do século XX, quando já estamos bem entrados no século XXI. O SNS necessita de modernização, mais recursos humanos e tecnológicos e, o mais importante, necessita de se adaptar às necessidades atuais da nossa população tendo em conta a situação demográfica, diametralmente oposta à situação da década de 70 do século passado. Passaram 50 anos e o SNS estagnou. Quando parecia que ia começar uma grande reforma no SNS, passado pouco mais de 1 ano e uma crise política, tudo para ou volta para trás.
O SNS é demasiado importante para todos nós para ser tratado com tamanha leviandade. Uma reforma de um pilar da nossa sociedade não pode, não deve!, ser feita por um só partido. Ainda para mais se tivermos em conta o atual panorama na Assembleia da República, sem maiorias parlamentares, bem se pode depreender que não há força para mudanças e reformas há muito necessárias.
É necessário um amplo consenso entre todos os partidos políticos e também personalidades da sociedade civil e academia que aportem as suas ideias e melhorias. Senão for assim, corremos o risco de perder o acesso Universal à Saúde em Portugal, fazer com que haja uma saúde para ricos e outra para pobres com crescentes desigualdades, tudo isto indo frontalmente contra o espírito de Abril.
Como na década de 70 foram os jovens médicos que de maneira totalmente voluntariosa e com sentido de missão criaram a semente para o nosso SNS, por isso, é muito possível que a semente da (r)evolução que o nosso SNS atualmente necessita esteja nas suas bases e nos atuais profissionais de saúde que nele trabalham, apenas necessitam que sejam ouvidos.