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Europa. Herança de Atenas, Jerusalém e Roma

Susana Mexia, Professora de Filosofia

O dia da Europa ou dia da União Europeia é uma data comemorativa celebrada anualmente na Europa no dia 9 de Maio. A data escolhida reflete o dia 9 de Maio de 1950, em que o estadista francês Robert Schuman avançou com a proposta de uma entidade europeia supranacional.

Werner Jaeger nasceu em Lobberich. Frequentou a escola nesta cidade e o Gymnasium Thomaeum, em  Kempen . Estudou na Universidade de Marburg e na Universidade de Berlim. Doutorou-se em 1911, com uma tese sobre a  Metafísica  de  Aristóteles .
Apenas com 26 anos, Jaeger foi convidado para ser catedrático na Universidade de Basileia, na  Suíça, indo no ano seguinte para Kiel , e em 1921 voltou a Berlim, onde permaneceu até 1936, ano em que emigrou para os  Estados Unidos , insatisfeito com a ascensão do  Nacional Socialismo .
Nos Estados Unidos, Jaeger trabalhou em dedicação exclusiva como professor na Universidade de Chicago de 1936 a 1939. Depois mudou para a  Universidade de Harvard  e finalmente para a cidade de  Cambridge (Massachusetts) , onde permaneceu até ao fim da sua vida.

Werner Jaeger na introdução do seu livro “Paideia: a formação do homem grego”, defende que «a nossa história – na sua mais profunda unidade – começa com a aparição dos Gregos.” Há uma unidade de sentido entre todos os povos ocidentais e a Antiguidade Clássica, uma história “que se fundamenta numa união espiritual viva e activa e na comunidade de um destino […] uma comunidade de ideais e de formas sociais e espirituais que se desenvolvem e crescem independentes das múltiplas interrupções e mudanças.”
“O início da história grega surge como princípio de uma valoração nova do Homem, a qual não se afasta muito das ideias difundidas pelo Cristianismo sobre o valor infinito de cada alma humana, nem do ideal de autonomia espiritual que desde o Renascimento se reclama para cada indivíduo. E teria sido possível a aspiração do indivíduo ao valor máximo que os tempos modernos lhe reconhecem, sem o sentimento grego da dignidade humana?

É historicamente indiscutível que foi a partir do momento em que os gregos situaram o problema da individualidade no cimo do seu desenvolvimento filosófico que principiou a história da personalidade europeia. Roma e o cristianismo agiram sobre ela”.

De Atenas nos veio o amor pela liberdade política, a democracia, a filosofia que busca educar o Homem no uso da razão; na busca da Verdade, do Bem e do Belo. De Roma nos veio o Direito, a organização do Estado, o primado da lei acima de tudo e de todos, ricos, pobres, escravos e governantes. O Estado não está ao serviço do governante, mas ao serviço da “Res publica”, literalmente coisa pública, ou seja, o que é de todos; daqui deriva o sistema de governo República.

De Jerusalém nos veio o judaísmo por intermédio do Cristianismo, o monoteísmo que veio substituir o politeísmo que reinava tanto em Atenas como em Roma. O monoteísmo veio servir de suporte aos valores ocidentais, ao primado da lei por exemplo; todos são iguais perante a lei porque todos são filhos do mesmo Deus, criador do Céu e da Terra, um ser pessoal amoroso e bondoso e não caprichoso como os deuses das mitologias grega e romana.

Neste contexto em que nos inserimos, um indivíduo projecta-se como ponto de ruptura e de modelagem no tempo e no espaço, Jesus Cristo. A Sua mensagem dividiu a história secular traduzindo assim a exponencial curva que se verificou a partir dele em termos de moralidade e dignificação do ser humano.

O significado histórico, portanto, do advento do Cristo é o que precisaria primeiramente ser retomado no que tange às tentativas de resgatar a nossa própria imagem perante nós mesmos, o que em nada, por óbvio, diminuiria o significado eterno da Sua palavra. Daí a importância da relação explicitada por Jaeger na Paideia nos seguintes termos:
«É necessário reconquistar paulatinamente a nossa própria história das mãos enganadoras daqueles que viram na construção do ideal do Ocidente apenas uma concessão ao desvario de mentes religiosas e fanáticas, pois, na verdade, fanáticos são aqueles que tecendo intelectualmente teorias supostamente morais, desobrigaram-se da moral individual que sustenta cada um de nós e qualquer sociedade minimamente desenvolvida».

Salientamos o materialismo histórico, o marxismo e as suas mil facetas que não escondem o solo débil de onde provêm: a carência de uma religiosidade autêntica e de uma espiritualização sincera, por meio da qual qualquer indivíduo poderá dar-se por capaz de sustentar em si uma moralidade, negada por aqueles que se julgam capazes de construir – com tal negação – um mundo mais justo e moral.
Este paradoxo do pensamento socialista precisa de ser sempre lembrado e explicitado.

Agora, porém, sentimos a necessidade de reaver o terreno perdido da interpretação histórica e mostrar que há, que sempre houve, uma real aliança entre a civilização ocidental antiga e a actual, mesmo que essa linha se tenha perdido no tempo entre tantos despautérios teóricos.

Paideia é uma palavra grega que não encontra noutra língua um termo equivalente, podendo, na sua abrangência, aproximar-se de termos como educação, civilização, cultura, literatura, tradição.
A Paideia grega fala-nos, de um ideal de cultura como princípio formativo e do ideal de formação de um tipo elevado de Homem. A história da Paideia é, então, a história das transformações dos valores na Grécia, o que equivale ao processo histórico e espiritual por meio do qual os gregos elaboraram o seu ideal de humanidade.
As normas que regiam a vida social e individual eram derivadas da percepção das leis profundas que governam a natureza e o processo de formação da juventude assentava no ideal de formar o espirito do Homem tal como ele deveria ser.

Mas o ideal grego de homem era dinâmico e não estático, tendo sido capaz de acolher progressivamente as transformações enriquecedoras do seu desenvolvimento histórico. É assim que de um conceito de arete (excelência, virtude) baseado no heroísmo, na destreza e na força que busca ser sempre o melhor e distinguir-se dos demais, integra também um ideal mais elevado do ponto de vista espiritual, quando a justiça passa a ser considerada a arete por excelência.
Na constituição da Polis já pairava entre os cidadãos um sentimento nobre de elevada estima pelo direito e de amor pela justiça. Se na Grécia cantada por Homero a juventude se modelava pelo exemplo do herói Aquiles, nos tempos áureos da democracia ateniense procurava-se formar a juventude no ideal político.

Aconteceu que, no meio desse processo da formação cultural grega, apareceu um indivíduo cujo discurso e exemplo provocaram uma verdadeira revolução na concepção do saber, que será determinante na história da filosofia e na cultura ocidental – Sócrates.

Na opinião de Werner Jaeger, “o mais espantoso fenómeno pedagógico da
história do Ocidente”- afirmará a sua fé no valor infinito da alma de cada
homem, fazendo com que a Grécia se defronte com uma nova força de
autoafirmação, com a inversão de valores que converte a força heroica em força interior, indo do heroísmo externo à conquista de si próprio.
Se o mais específico do homem é a sua alma imortal, então é no cuidado
dessa alma que a Paideia socrática encontrará o seu fundamento. E
essa Paideia é a exigência de uma vida superior, uma vida cuja condição é
posta em questão sob a perspectiva de sua adequação ou não aos bens
supremos da vida. Não se trata de oferecer uma cultura superior para a
formação do estadista, como buscavam os sofistas, mas de oferecer ao indivíduo um remédio contra a ignorância de si mesmo e da verdadeira finalidade da vida, que é melhorar a alma, tornando-a mais Bela e apta para o conhecimento do Bem e da Verdade.

Essa nova ordenação de valores, pregada e vivida por Sócrates, foi sistematizada ou fundamentada metafisicamente nas obras de Platão, por cujo ideal se dará a assimilação da filosofia grega por parte da religião cristã.
A civilização grega influenciou profundamente a tradição cristã, a ponto
de serem a cultura e a filosofia gregas elementos determinantes da história do Cristianismo.
A civilização ocidental tem como berço as culturas e civilizações do Crescente Fértil, dependentes do trigo e outros cereais que ali se cultivavam. Suméria, Creta, Mesopotâmia, Egito, Israel, Síria, Fenícia,
Babilónia e o Império Persa estão na base da cultura grega e da cosmovisão religiosa de Jerusalém.

No Crescente Fértil, sucederam-se culturas, civilizações, hegemonias de povos sobre outros povos e assim o centro do poder e da cultura foi passando de mão em mão e de geração
em geração. Cada nova cultura e civilização herdava e assimilava os
avanços da cultura anterior como património, propondo as suas próprias
inovações.

Esta sucessão de impérios e deslocações dos centros do poder, expandiu-se geograficamente de sul para o norte e de uma forma mais apreciável de leste para oeste.

A Grécia assimilou todas as culturas
anteriores a ela, ao derrotar o Império Persa, mas Roma ao assimilar a
Grécia, expandiu-se mais para norte e para oeste, aproximando-se do fim
do mundo conhecido – “Onde a terra acaba e o mar começa” (Lusíadas, de
Camões).
Quando o poder e a cultura já se tinham deslocado para Roma e para os
confins do mundo conhecido e parecia que o Oriente já não tinha mais
nada para dar, nasceu Jesus de Nazaré e, com ele, a cidade de Jerusalém
transformou-se no terceiro pilar da cultura europeia.

Foi o cristianismo que influenciou a cultura e civilização ocidentais a partir
do momento em que se transformou na religião do Império Romano, no
reinado Constantino, no século IV, e pela queda do Império no século V,
causada pela invasão de povos bárbaros, sobretudo pelos godos e pelas tribos germânicas, o poder político passou para os povos primitivos nórdicos que reconheceram e respeitaram o papel da Igreja na Europa, herança da cultura ocidental.

Nas obras apologéticas de São Justino, mártir, encontram-se várias referências a Sócrates e a Platão, pressupondo uma espécie de plano pedagógico da providência divina, levando a considerar Sócrates como uma antecipação do Logos que encarnara em Cristo, sendo pois, de fundamental importância para a história do Cristianismo a fusão conceitual entre a noção grega de Logos e o Filho de Deus.

O cristianismo buscará, a partir de então, na tradição grega a possibilidade de fundamentar a sua própria universalidade. Com muita erudição nos
primeiros séculos cristãos as teorias de Platão e outros filósofos que se tornaram doravante aliados na fundamentação das verdades reveladas, principalmente com as obras de Orígenes (teólogo, filósofo neoplatônico patrístico e um dos Padres gregos), a conversão da Paideia grega em
paideia Cristã, tem em Jesus o grande mestre e modelo em quem se encarnara o Logos divino.

A herança espiritual da doutrina cristã obtida por meio do diálogo profícuo com o que havia de mais espiritual na
filosofia grega fincará as bases de uma nova civilização, a civilização cristã.

Para Orígenes o Cristianismo será o maior poder educativo da história, a
paideia da humanidade, sendo Cristo o coroamento de uma série de passos cujo objectivo era a elevação intelectual, moral e espiritual do homem.

Um dos graves problemas que a Europa actual enfrenta é a incapacidade
de conhecer e assumir a sua história, com tudo o que ela tem de melhor e de pior, mas como lugar de construção do que agora somos. Há no ar um preconceito, que impede a sociedade de pronunciar algumas palavras e de ler a história com objectividade. Este é o primeiro sintoma da perda deuma identidade europeia que reside na rejeição dos valores provenientes da confluência multimilenar das culturas simbolizadas pelas cidades da Grécia, Jerusalém e Roma formando uma mundividência cristã, impondo em seu lugar dogmas culturais que são o resultado dos consensos das maiorias, e, muitas vezes, o resultado da força prepotente dos lóbis ou das minorias.
Estamos a viver uma ruptura deliberada com o passado que nos deixa numa profunda crise de identidade, sem nada de objectivo a que nos possamos agarrar, num subjetivismo que nos deixa perdidos e sem referências, como órfãos que não conhecem os seus pais, não sabem de
onde vêm, nem têm segurança das suas convicções individuais.
A perda dos fundamentos éticos conta-se entre as mais decisivas mudanças operadas no nosso mundo e, ao mesmo tempo, aquelas que maiores consequências trazem para o presente. Ao ficarmos com uma moral fundamentada na razão, no estado, no consenso da maioria ou na consciência individual, caímos num relativismo que prescinde da busca da verdade e se transforma num subjetivismo.
Ao prescindir-se da referência à História e, concretamente no caso da Europa, que inclui a tradição religiosa cristã, ficamos sem critério de discernimento da verdade e do bem, restando só uma mera e falível
opinião.

Enquanto Europa ficámos em crise, porque os valores que supostamente
nos unem são vagos, superficiais para a convivência humana, não aprofundando a identidade que deu sentido ao progresso intelectual e moral que nos une, a nós ocidentais, desde a Grécia Antiga.

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