Imaginemos que olhamos o rio Amazonas, ou o Nilo, ou qualquer outro, de vários pontos muito diferentes. Não é o rio, o mesmo rio, seja visto de cima ou de baixo, da esquerda ou da direita, quando se estende ou encurva? Assim também o é o “rio” da existência que flui no tempo atravessando todos os lugares.
O que nos dizem esta guerras e conflitos do Médio Oriente de hoje? O que reclamam realmente os Árabes alinhados com o Irão? São todas as violências gratuitas, ou haverá sofrimentos que clamam por justiça?
Quando falamos em guerra Israelo-Árabe, dos conflitos entre Israel e a Palestina, geralmente pensamos em questões geopolíticas, direito internacional, ambições territoriais e de poder. No entanto, não posso deixar de pensar que a questão vai muito além disso e a raiz do problema radica em questões mais profundas, de ordem religiosa.
Para além do pretenso laicismo asséptico ou do ateísmo de muitas pessoas dos nossos dias, parece-me que atualmente há três visões que aqui se confrontam, gerando estes conflitos, este problema no Médio Oriente. A saber: a visão do Judaísmo, a visão do Islamismo e a do Cristianismo. Claramente, esta última ainda não conseguiu alcançar o diálogo sanador com as outras duas, para seu grande pesar.
Quando há várias entidades, o consenso verdadeiro não resulta da anulação do outro, mas sim na convergência de todas as partes num mesmo entendimento.
Estas três visões correspondem a três identidades religiosas que têm em comum proclamarem-se adoradoras do que chamam Deus único. Todas elas têm o seu Livro sagrado e as três radicam a sua fundação em Abraão, a quem Deus falou e prometeu, além de uma terra abundante, uma incontável descendência.
Era o princípio da religião como fenómeno de relação pessoal e intransmissível com um único Deus. Talvez o que as separa seja mais a visão que elas têm desse Deus. Até aí, na Antiguidade, adoravam-se deuses vários. Falava-se dos deuses, a quem se pedia intercessão e proteção, conforme as características que lhes eram atribuídas. Mas estas três religiões, em particular, referem-se à existência de uma divindade única, fonte eterna de toda a criação, na qual o ser humano se inclui.
Não se sabe exatamente quando Abraão terá vivido, terá sido por volta do século XIX a.C. Era filho de Terá, descendente de Adão, e de Sem, filho de Noé. Nasceu na cidade caldeia de Ur, na Mesopotâmia, (antiga cidade da Suméria), situada a sul da Babilónia. Após Deus lhe ter aparecido, deixou a sua terra em Ur, com a sua família e bens, partindo para a terra prometida, Canaã, terra dos Cananeus. Foi sacerdote de Malquisedec, o rei-sacerdote de Salém, cananeu, sem descendência, que prestava culto a El Elion, o Deus Altíssimo em Hebraico. Abraão era casado com Sara e foi o pai de Isaque. Isaque casou com Rebeca, de quem teve Jacob, cujos 12 filhos deram origem à 12 tribos de Israel.
Jesus Cristo terá nascido por volta do ano 6 ou 4 a.C., (não se sabe bem por causa de uns cálculos mal feitos no passado), e morreu com 33 anos, crucificado, em Jerusalém. Era neto de Joaquim, da linhagem do rei David, homem muito rico e pio, e primo direito de João Baptista, filho de Zacarias, um sacerdote do Templo da classe de Abias. A sua Mãe Maria foi educada no templo. Até começar a sua vida de pregação pública aos 30 anos, Jesus terá trabalhado como carpinteiro, mais precisamente como tekton em grego, que era o ofício de José, seu pai terreno, também ele um descendente de David.
Maomé nasceu em Meca, em 570 d.C, na tribo árabe dos Hachemanitas. Foi educado dentro das tradições beduínas do seu clã. Viveu também com o avô Abedal Motalibe, que ocupava em Meca o importante cargo de siqáya e, dois anos depois após a sua morte, foi viver com o seu tio, Abu Talibe, novo chefe do clã hachemita. Trabalhou como mercador e pastor até que, com cerca de 40 anos, recebeu a aparição do Anjo Gabriel numa das cavernas do monte Hira, que o enviou, como o último profeta do Deus de Abraão, aos povos árabes, ainda politeístas, a recitar os versos enviados por Deus (Allāh em Árabe). Depois da sua morte, estes versos foram compilados pelos seus seguidores e constituíram o Alcorão.
Após ter sido rejeitado e perseguido por alguns habitantes de Meca, estabeleceu-se em Medina em 622 d.C, onde se tornou o líder da primeira comunidade Islâmica. Criou uma organização militar com que travou as batalhas entre os habitantes de Meca e Medina, as quais ganhou, bem como as que travou com as tribos da Arábia. À data da sua morte, em Medina, em 632 d.C. tinha unificado praticamente todo o território sob o signo do Islão.
Portanto, a passagem ao monoteísmo foi um fenómeno religioso que aconteceu num contexto histórico e cultural concreto, dentro de cerca dos últimos quatro mil anos da nossa História.
O que poderá levar estes três “irmãos” na fé no Deus único, a se desvalorizarem e a se desentenderem tanto?
Os descendentes israelitas de Abraão, (também chamados de Hebreus e mais tarde de Judeus), receberam a promessa de Deus e ancoraram a sua identidade nela. Nela e no facto de se verem como o povo eleito pelo Deus único, por oposição aos outros povos da Antiguidade que adoravam vários outros deuses. Após um acidentado percurso, que durou vários séculos, e da fuga do Egipto liderada por Moisés, a que se sucederam quarenta difíceis anos de sobrevivência no deserto, o povo de Israel, liderado por Josué, conseguiu finalmente chegar e estabelecer-se na região de Canaã.
A coroação do rei Saúl, (primeiro dos três reis de Israel), terá acontecido no final do século XI a.C. Este foi o responsável pela centralização do poder do reino de Israel. Sucedeu-lhe o rei David, fundador do Templo em Jerusalém, e depois o rei Salomão, famoso pela sua grande sabedoria. Posteriormente o reino foi divido em dois: o reino de Israel a norte e o reino de Judá a sul. Deste modo ficou mais vulnerável a invasões. Foi conquistado pelos Assírios no século VIII a. C. e pelos Caldeus no fim do século VI a.C. Em 598 a.C. o rei caldeu Nabucodonosor invadiu e Jerusalém caiu em 597 a.C. Seguiu-se o cativeiro da Babilónia.
Foram ainda invadidos pelos Persas, pelos Macedónios e pelos Romanos. Estes últimos esmagaram muitas rebeliões judaicas, o que culminou na destruição do Templo de Jerusalém em 70 d.C., e no abandono da Palestina, (nome dado pelos Romanos àquela província do seu império), ou seja, na diáspora do povo Judeu, a partir do século I d.C.
É já no contexto da ocupação romana que nasce, em Belém, Jesus Cristo. A sua mensagem religiosa de amor incondicional e universal era tão radical e inesperada, que contagiou o mundo, transformando a visão que a humanidade tinha de si mesma, mas não foi compreensível para o povo Judeu, que não reconheceu nele o messias e o libertador guerreiro que esperava.
Assim, em vez de ver em Jesus Cristo o desenvolvimento do plano divino, – que o seu Deus tinha iniciado consigo, escolhendo-o para ser o seu Deus, na promessa que fizera a Abraão e na aliança que fizera com Moisés, – Israel viu Cristo como uma esperança falhada, como um dissensor da cultura e do povo judaico. Porque Cristo revelava que o plano de Deus era de amor, salvador para toda a humanidade, e não de guerra contra os restantes povos em favor do Povo eleito.
Não amará o Criador toda a sua criação? Acaso quando um casal tem um filho deixa de amar o primogénito ou os demais filhos que já tinha? A mensagem de Jesus mandava reconhecer os irmãos, viver com eles, e não defender-se deles, oprimi-los nem desprezá-los, mas sim amá-los. Mas Israel, o povo Judeu, estava focado apenas em ser o eleito do seu Deus, e não em dividir essa “atenção” divina com os outros povos. Qual filho primogénito zangado por ter que dividir a atenção dos pais com outros irmãos, por não continuar a ser o único.
Assim viveu até hoje revoltado, fora de “casa”, com o sentimento de abandono e de ser vítima dos outros povos, que no fundo considera inferiores na sua “não eleição”. Sem perceber que a “casa” é o coração de Deus, da sua palavra, da fidelidade do seu amor, por ele e pelos outros irmãos também. Que o Templo já não é necessariamente aquela construção arquitetónica de pedra, naquele sítio. Agora é em todo o sítio, porque todos os sítios são de Deus, que os criou. E é sobretudo em cada coração humano. E em todo o lado se pode adorar a este Deus, pai de todos, de toda a humanidade e fonte de tudo.
O Islamismo trouxe também a sua visão de Deus, que fez lei e quer impor ao mundo. Qual filho mais novo que sabe tudo.
Imaginemos que olhamos o rio Amazonas, ou o Nilo, ou qualquer outro, de vários pontos muito diferentes. Não é o rio, o mesmo rio, seja visto de cima ou de baixo, da esquerda ou da direita, quando se estende ou encurva? Assim também o é o “rio” da existência que flui no tempo atravessando todos os lugares.
O que nos dizem esta guerras e conflitos do Médio Oriente de hoje? O que reclamam realmente os Árabes alinhados com o Irão? São todas as violências gratuitas, ou haverá sofrimentos que clamam por justiça?
Não seria altura de se reconhecerem todos irmãos? Todos filhos e todos amados. Não poderia já ser tempo de fazerem as pazes, de construírem a paz? A paz, esse dom que a humanidade experimenta quando, como Abraão, ouve o seu Criador, confia e se compromete com Ele. Quando aceita fazer a Sua vontade amorosa, que nos dá esta terra para vivermos, e vivermos em abundância, como prometeu.
A Mãe chora os seus filhos; a terra está farta de guerra. Faça-se o que o Deus Pai manda, que manda amar, as pessoas e a vida. A guerra é um absurdo, um insulto à inteligência humana e à sua capacidade de se organizar em comunidade. No fundo a guerra é a incompreensão do novo mandamento de Cristo. Constitui uma atitude de arrogância e de orgulho autossuficiente. A verdade é que cada pessoa é um ser único e necessário, e que somos feitos para precisarmos uns dos outros. Somos como Deus quis. Possamos viver na paz de Cristo e aprender a viver na alegria do amor, que é isso que Deus é, e para o que nos criou.