Erros meus, má fortuna, amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a fortuna sobejaram,
Que pera mim bastava amor somente.
Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que as magoadas iras me ensinaram
A não querer já nunca ser contente.
Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa [a] que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.
De amor não vi senão breves enganos.
Oh! quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!
Camões sintetizou a sua vida neste magnífico soneto. Os erros que praticou foram de facto muitos. De temperamento brigão, atacou um oficial do paço, que lhe valeu ser preso. O facto de ter sido em dia de Corpo de Deus agravou o crime e, portanto, a pena. Esteve na prisão quase um ano, até o Rei, D. João III, lhe conceder uma Carta de Perdão, isto é, uma amnistia. Em troca, foi servir o Rei na Índia.
Camões era desmedido em tudo: um talento excecional que o levou a deixar uma obra vastíssima: além dos Lusíadas, que só por si valem uma literatura inteira, escreveu as suas Rimas, que contêm todos os géneros da literatura lírica do seu tempo, três peças de teatro e Cartas escritas de Ceuta, da Índia e de Lisboa.
Se a quantidade é grande, maior é a qualidade. Este talento, que não lhe cabia na alma, tinha o contraponto de uma vida boémia, desregrada, gastando o que tinha e o que não tinha. Exerceu o cargo de Provedor-mor de Defuntos e Ausentes em Macau, em que todos enriqueciam. Mas ele não.
Pedro de Mariz, seu contemporâneo, que fez a sua biografia, diz: era grande gastador, muito liberal e magnífico, não lhe durando os bens mais do que enquanto ele não via ocasião de os despender a seu bel prazer. Além disso interveio a sua Má Fortuna e foi preso, não se sabe exatamente por que razão. Regressa à Índia, onde vive à custa de amigos. Mas nesse tempo, isso era comum. Não era vergonhoso.
Os amigos pagam-lhe as dívidas e custeiam-lhe a viagem de regresso a Portugal, onde vai publicar os seus Lusíadas, única obra publicada em vida. O Rei D. Sebastião concede-lhe uma pensão de 15.000 reais por ano. Em dinheiro atual seriam cerca de 20.000 euros. `Dizem os seus biógrafos que era uma pensão modesta paga irregularmente. Mas o problema não era o valor da pensão. Não é difícil imaginar a vida de Camões enquanto o dinheiro durava. Camões a fazer contas?! Não!
Aquela imensidade de talento, de força, de gosto pela vida não se coadunava com contas certinhas. A lenda e também o gosto romântico de verem o artista incompreendido pela sociedade exageram-lhe os tormentos. E a verdade é que as coisas não eram assim tão más.
Quando Camões morreu, a pensão passou para a mãe, Ana de Sá. Ao lado dos erros temos de facto a má fortuna. Perdeu um olho numa batalha em Ceuta, antes de partir para a Índia. Sofreu um naufrágio na foz do rio Mekong, quando regressava de Macau, salvando a custo os Lusíadas. Nesse naufrágio, com poucos sobreviventes, perde também a sua amada de momento, a chinesa Dinamene. Sofre invejas, incompreensões.
D. Sebastião não é a ele que escolhe para o acompanhar a Alcácer Quibir para cantar a batalha, que acabaria em desastre. Assiste ao desmoronamento da Pátria. Estamos em 1580. Atribui-se-lhe a frase: Pátria ao menos morremos juntos. E os amores?
Camões foi o poeta do amor. Cantou a mulher de forma sublime. Cantou a saudade da mulher amada. Cantou o próprio amor. Cantou o amor impossível. Teria tido Camões um amor impossível? Dois dos seus biógrafos contemporâneos atribuem-lhe uma paixão, que seria correspondida, pela Infanta D. Maria, filha de D. Manuel, mas não há qualquer prova.
Na sua obra lírica e em certas passagens de Os Lusíadas, há indícios de que Camões sofreu, efetivamente, um amor impossível.