Alguém explica à 10ª figura do Estado que é inaceitável que, no ano de 2024, com tanta discussão e debate sobre as enormes dificuldades com que o país se depara por não nascerem crianças suficientes, e em pleno compromisso do Estado Português com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (#ODS5, que pretende acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e raparigas), venha a PGR pôr em causa o direito à maternidade e à parentalidade?
É a 10ª entidade na lista de precedências do protocolo do Estado Português. É a quem compete “defender a legalidade democrática”. Falo da Procuradora-Geral da República.
É uma das mais nobres funções definidas na nossa Constituição da República. Justifica-se assim que a escolha seja feita com base no acordo entre o Primeiro-ministro, que propõe, e o Presidente da República, que nomeia. Essa conjugação de vontades, que muitas vezes é feita por representantes de partidos políticos diferentes, deveria ser considerada pela 10ª figura do Estado como um fator de responsabilização. Mas não tem sido assim.
Pergunto-me por que, depois das últimas nomeações, em que manifestamente se demonstram incompetências e incapacidades, nunca se encontrou uma forma de fiscalizar a PGR.
Como se permite que a violação do segredo de justiça, à qual assistimos constantemente — um claro alerta da incapacidade de garantir a legalidade democrática — se mantenha sem que nada aconteça?
Na verdade, essas fugas de informação, acompanhadas dos ficheiros com a transcrição de conversas telefónicas, além de alimentarem notícias falsas, têm permitido que dúvidas e suspeitas recaiam sobre eleitos/as, membros do governo, o Primeiro-ministro e o Presidente da República, sem que haja qualquer tipo de escrutínio. Como?
Será que a voz de tantas e tantos que debateram este assunto, que escreveram, discutiram publicamente e propuseram soluções, não foi suficiente para alertar e mostrar a urgência de uma resposta clara, evidente e séria sobre a ausência de fiscalização?
Finalmente, sob proposta do PAN (o meu agradecimento à deputada Inês Sousa Real), foi pedida uma audição à PGR, que não se disponibilizou a comparecer em julho, alegando ser necessário esperar a produção de mais um relatório.
Lá foi, a muito custo, na segunda semana de setembro ao Parlamento, dizer que tudo está bem quando acaba bem, e que, aliás, está até melhor em alguns itens do que no passado.
Foi no meio do seu discurso que verdadeiramente conhecemos sua índole. Seus valores. Aqueles que servem de base e norteiam sua atuação.
Disse, quando confrontada sobre a eventual falta de recursos humanos no Ministério Público, que não há um aumento líquido de procuradores e que, pasmem-se, há vários constrangimentos, como o fato de 90% dos magistrados abaixo dos 30 anos serem mulheres, o que “constitui um fator de agravamento de constrangimentos em razão de situações de gravidez”, cito.
Por partes:
No balanço social do Ministério Público de 2023, logo na página 2 (nem é preciso procurar muito), lê-se: “O número de ausências prolongadas (consideradas de 60 ou mais dias consecutivos), em número de 69, representa cerca de 3% do total de magistrados”. Mais à frente, num dos gráficos, podemos verificar que, abaixo dos 30 anos, há 26 mulheres magistradas.
Estaria distraída a PGR? Nunca frequentou as disciplinas de matemática? Acha mesmo que ninguém vai procurar os dados? Que pode continuar a atirar areia aos olhos dos que lhe pagam o salário? Como é que acha que 3% é um número elevadíssimo que causa constrangimentos?
Alguém explica à 10ª figura do Estado que é inaceitável que, no ano de 2024, com tanta discussão e debate sobre as enormes dificuldades com que o país se depara por não nascerem crianças suficientes, e em pleno compromisso do Estado Português com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (#ODS5, que pretende acabar com todas as formas de discriminação contra todas as mulheres e raparigas), venha a PGR pôr em causa o direito à maternidade e à parentalidade?
Claro que podemos continuar a dizer que esses assuntos não são pertinentes para a governação da coisa pública. “São coisas de mulheres”, dirão muitas e muitos. Não sejamos hipócritas! Não devemos assinar convenções, tratados, agendas, e depois fazer de conta que as mais altas figuras do Estado podem dizer essa insensatez, e nada se passa.
Parece que não aprendemos a lição. Nomeia-se e mantém-se em lugares de Estado quem não defende os direitos que estão afinal consagrados na Constituição, e que são o tal garante da legalidade democrática.