Recentemente, o caso de um dermatologista que auferiu 400.000 euros em 10 dias através do programa SIGIC, para recuperação de listas de espera cirúrgicas em horário pós-laboral, reacendeu o debate sobre as perversões no Serviço Nacional de Saúde (SNS). Contudo, este não é um problema novo. Já no início do milénio, vários membros da sociedade já avisavam contra os riscos deste tipo de programas, prevendo que os cirurgiões poderiam ser incentivados a não operar durante o horário normal de trabalho para aumentar as listas de espera e, consequentemente, os seus ganhos extra.
As Falhas Estruturais do SNS: Um Sistema Cronicamente Doente
O nosso SNS foi concebido em 1979 com os pilares da gratuitidade e da transformação dos profissionais de saúde em funcionários públicos assalariados, mas padece de disfunções estruturais profundas.
A Gratuitidade Perversa: contrariamente ao seu propósito, o sistema revela-se injusto: os mais ricos, que menos contribuem para o financiamento via impostos (maioritariamente pagos pelos trabalhadores), são os que mais usufruem dos serviços, utilizando os seus conhecimentos e recursos para aceder a cirurgias atempadas e gratuitas, enquanto os mais pobres enfrentam longas listas de espera. Ou seja o SNS é pago sobretudo pelos pobres, e consumido gratuitamente sobretudo pelos ricos.
O Assalariamento e a Desresponsabilização: a crença de que o assalariamento garantiria a produção de serviços adequados mostrou-se ingénua. A falta de incentivos e a “vista grossa” perante o mau desempenho levam à desresponsabilização. Quem menos trabalha no setor público tem mais disponibilidade para o setor privado, onde é melhor remunerado, criando um flagrante conflito de interesses que tem sido tolerado desde a criação do SNS.
Um Diagnóstico de Problemas Crónicos: As Questões Centrais Apontadas desde o início do milénio
Desde o início do milénio já se identificavam problemas cruciais, muitos dos quais persistem:
• Sistema pouco centrado no cidadão: Os profissionais são penalizados por se dedicarem mais aos utentes, pois isso acarreta maior carga de trabalho sem aumento de remuneração.
• Problemas de atitude e relações interpessoais: A ausência de regras éticas claras e a promoção da desresponsabilização minam as relações e a qualidade do serviço.
• Estrutura e estatuto do SNS: A rigidez do sistema e a permissão do trabalho simultâneo nos setores público e privado criam um incentivo objetivo para a degradação dos serviços públicos.
• Organização e gestão dos serviços: Nomeações baseadas em critérios de antiguidade, sem exigência de planos de gestão ou avaliação de desempenho, perpetuam a ineficácia.
• Financiamento: A dissociação entre financiamento e qualidade do desempenho desincentiva a melhoria.
O Caminho Perdido da Contratualização e as Propostas para o Futuro
Também desde há quase 3 décadas que se desvirtua uma reforma “silenciosa”, que visava a contratualização e a avaliação do desempenho dos profissionais e serviços. Essa reforma, embora experimental, promovia a autonomia e a responsabilização, indexando remunerações à produtividade. Contudo, em vez de aprofundar essas medidas, os governos subsequentes optaram por uma política infrutuosa e desvirtuosa, focando-se apenas em programas pontuais de combate às listas de espera que, ironicamente, criavam mais oportunidades para as perversões.
O que se deveria ter feito:
• Pacto de Regime: um acordo entre os principais partidos nacionais para garantir a continuidade da reforma do SNS ao longo de cerca de 10 anos.
• Avaliação de Desempenho: implementar a avaliação de hospitais, centros de saúde e seus responsáveis, com metas, prazos e consequências para o incumprimento.
• Opção Setorial para Profissionais: obrigar os profissionais de saúde a optar entre o setor público e privado para eliminar conflitos de interesse.
• Controlo de Custos: incentivar medicamentos genéricos e controlar gastos com exames complementares de diagnóstico.
• Responsabilização dos Dirigentes: avaliar e substituir Conselhos de Administração e dirigentes inaptos.
Para os Centros de Saúde, devemos seguir com a politica de remunerações indexadas à produtividade, autonomia e responsabilização dos diretores e a implementação de programas de melhoria da qualidade e satisfação do utente com avaliações independentes. As Unidades de Saúde de Tipo C vão neste sentido.
Para os Hospitais, temos que promover o aprofundamento dos centros de responsabilidade integrados (CRI), a avaliação de experiências de gestão privada e a autonomia dos Conselhos de Administração para avaliar o desempenho dos serviços, com divulgação obrigatória dos resultados.
Não acredito que seja necessária uma total privatização do SNS, que provou ser mais dispendiosa e prejudicial aos mais desfavorecidos noutros países (como nos EUA). Em vez disso, temos que saber integrar as ofertas de saúde num Sistema Nacional de Saúde, aprofundando o que de bom já foi feito e implementando uma reforma sólida baseada na avaliação, responsabilização e na eliminação das perversões que minam a saúde pública há décadas.