A Advogada Nubia Alves, defensora do caso da criança Marta, diz ao Estado com Arte Magazine que quando há acusações de abuso e, simultaneamente, conflitos familiares, “tende a haver uma leitura redutora por parte das autoridades, que os veem apenas como disputas parentais.”
Para a advogada esse “é um erro grave”. Comenta que em vários casos, situações de abuso “são inicialmente desvalorizadas por virem acompanhadas de denúncias de alienação parental. É importante lembrar que o conceito de alienação não pode ser instrumentalizado como defesa estratégica.”
Defende que, nos casos em que há suspeitas fundadas de abuso, “o princípio da precaução deve prevalecer”.
O processo-crime da criança Marta sobre suspeitas de abuso sexual aguarda que o tribunal se pronuncie. O que pode atrasar tanto este processo?
Infelizmente, atrasos em processos de abuso sexual contra crianças não são incomuns, embora inaceitáveis, considerando os interesses que estão em causa e que devem prevalecer. Este tipo de crime tem particularidades que tornam a sua investigação extremamente complexa: frequentemente ocorre em ambientes privados, sem testemunhas, e muitas vezes não deixa vestígios físicos visíveis. Quando envolve crianças pequenas, a situação agrava-se ainda mais.
Contudo, processualmente falando, a lei estabelece prazos legais para a investigação e tramitação dos processos que não podemos ignorar. Acontece que, na prática, a escassez de recursos, a sobrecarga dos tribunais, a morosidade pericial e a complexidade emocional destes casos contribuem para atrasos substanciais.
A dificuldade em constituir o suspeito como arguido também pode comprometer a produção de prova, atrasando diligências como perícias médico-legais, exames psicológicos ou mesmo interrogatórios. E quanto mais o tempo passa, mais difícil se torna reconstituir os factos com rigor.
O facto de a criança ser muito pequena torna difícil o apuramento de provas?
Sem dúvida. Crianças pequenas têm uma capacidade limitada de comunicar, interpretar e reter experiências traumáticas, especialmente quando se referem a crianças muito pequenas, as quais tendem a apresentar relatos menos detalhados.
Além disso, o trauma pode bloquear ou distorcer memórias. Muitas crianças evitam falar sobre o abuso por vergonha, medo de represálias ou por não compreenderem o que aconteceu. A literatura mostra que, em média, as vítimas de abuso sexual infantil só revelam o ocorrido anos mais tarde. Isso compromete a possibilidade de obter provas físicas e torna a palavra da criança a principal ou às vezes única prova, exigindo maior sensibilidade e cuidado judicial.
Considera que há resistência em constituir suspeitos como arguidos?
Sim, e isso é particularmente preocupante em crimes contra crianças. A constituição de arguido permite assegurar direitos, mas também impõe deveres, como o de se submeter a perícias. Muitas vezes, há receio de que isso possa parecer uma antecipação de culpa, mas o sistema jurídico português reconhece que a constituição de arguido pode ser uma medida essencial para o esclarecimento da verdade.
No entanto, noto que, por vezes, há uma relutância institucional, seja por medo de erro, pressão social ou receio de que se trata apenas de conflito familiar, o que leva a uma atuação tardia. Essa lentidão pode comprometer o processo todo, pois o tempo é um fator crucial tanto na obtenção da prova como na proteção da criança.
A seu ver nada justifica uma demora tão acentuada?
Processualmente, não. O Código de Processo Penal estabelece prazos máximos para inquérito e julgamento. O problema está na aplicação prática. Há, sim, questões complexas — como a necessidade de perícias especializadas e de escuta de crianças em ambiente seguro —, mas isso deve ser resolvido com prioridade e não justificar inércia.
A Convenção sobre os Direitos da Criança, da qual Portugal é signatário, determina que todos os procedimentos que envolvam crianças devem ser céleres, especialmente quando o bem jurídico em causa é a sua integridade física e psicológica.
Como analisa o pedido de visitas por parte do pai, alegando alienação parental?
Não comento casos concretos, mas posso dizer que, infelizmente, quando há acusações de abuso e, simultaneamente, conflitos familiares, tende a haver uma leitura redutora por parte das autoridades, que os veem apenas como disputas parentais.
Esse é um erro grave. Em vários casos, situações de abuso são inicialmente desvalorizadas por virem acompanhadas de denúncias de alienação parental. É importante lembrar que o conceito de alienação não pode ser instrumentalizado como defesa estratégica.
Acresce que, nos casos em que há suspeitas fundadas de abuso, o princípio da precaução deve prevalecer. Isto significa que, mesmo que não haja prova definitiva, o risco para a criança deve ser o fator determinante. É mais prudente suspender o contato do que permitir o risco de revitimização.
Então o direito de visita pode ser restringido mesmo na dúvida?
Sim, e deve ser. O direito de visita é importante, mas não é absoluto. Ele não se sobrepõe ao direito fundamental da criança à proteção contra abusos.
A lógica do “na dúvida, protege-se a criança” é não só moralmente acertada, como juridicamente sustentada. A reversibilidade de uma medida cautelar (como suspender visitas) é mais aceitável do que o dano irreversível de permitir o contato com um abusador, caso o abuso venha a confirmar-se.
Em casos assim, a estratégia de ataque é comum?
Sim. Quando o suspeito teme uma acusação séria, muitas vezes a melhor defesa é o ataque. Tentar descredibilizar o outro progenitor, acusá-lo de manipulação ou alienação é uma forma de lançar dúvida sobre a acusação e proteger-se.
Esse tipo de estratégia é recorrente e perigosa. Cria ruído no processo, retarda a sua tramitação e, sobretudo, afeta ainda mais a criança, que vê os adultos ao seu redor a disputar poder, em vez de a proteger.


