Obstetrícia. Nascer em Risco: A Roleta das Urgências na Grande Lisboa

José Padrão Mendes, Médico Neurologista

Um parto na berma da estrada, bebés perdidos e uma crise de confiança no Serviço Nacional de Saúde (SNS). O fecho recorrente das urgências de obstetrícia em Lisboa e Vale do Tejo está a criar um cenário de medo e incerteza para milhares de grávidas. Enquanto a responsabilidade política é diluída, um hospital em Almada mostra que existem soluções – se houver vontade para as aplicar.

A imagem de um bebé a nascer dentro de um carro na via rápida IC21, no Barreiro, é o retrato mais recente e cru da crise que assola o SNS na região de Lisboa e Vale do Tejo. Aconteceu na passada quinta-feira. Uma grávida de 33 anos, com 37 semanas de gestação, entrou em trabalho de parto e, com a urgência de obstetrícia do Hospital do Barreiro encerrada, a família tentava a todo o custo chegar ao Hospital Garcia de Orta, em Almada. Não conseguiram. O bebé nasceu ali mesmo, na estrada, assistido pela própria família antes da chegada do INEM.

Este caso, que por sorte teve um desfecho feliz, não é um evento isolado. É um sintoma grave de uma doença que corrói a confiança da população no sistema: o fecho sistemático e imprevisível das urgências. Para muitas famílias, a experiência tem sido trágica.

Com poucos dias de diferença, a região de Setúbal foi abalada pela morte de dois bebés em circunstâncias alarmantes. Numa das situações, relatada pela imprensa, uma mulher de 37 anos perdeu a filha após uma autêntica peregrinação por cinco hospitais: Garcia de Orta, Barreiro, Setúbal, Cascais e, finalmente, Santa Maria, onde a bebé acabou por morrer após uma cesariana de urgência. As versões contradizem-se: o hospital alega que não havia critério para internamento; a família afirma que não havia vagas.

Pouco depois, o jornal Expresso noticiava um novo drama. Uma mulher de 38 anos, grávida de 31 semanas, perdeu o bebé a caminho do hospital. Naquela noite, nem Setúbal, nem Santa Maria, nem a Maternidade Alfredo da Costa tinham vagas em Neonatologia. O Garcia de Orta, para onde poderia ir, estava com o serviço fechado. O socorro demorou mais de duas horas e meia a chegar ao destino final, em Cascais, mas já era tarde demais.

Os Números por Detrás da Tragédia
Estes casos não são meras fatalidades. São o rosto de uma estatística fria e preocupante. Em 2024, a taxa de mortalidade infantil em Portugal aumentou 20%, o que se traduz em 252 mortes de crianças com menos de um ano. O distrito de Setúbal, de onde eram estas duas mães, apresenta o pior registo do país, com uma taxa de 4,9 mortes por cada mil nascimentos.

A realidade expõe uma falha sistémica grave, especialmente em zonas carenciadas como a Península de Setúbal, onde a oferta privada de obstetrícia é inexistente. As grávidas dependem exclusivamente de um SNS que, demasiadas vezes, lhes fecha a porta. Face a isto, as declarações da Ministra da Saúde e do Diretor Executivo do SNS, a descartar responsabilidades antes mesmo das conclusões das investigações, soam a uma tentativa de normalizar o inaceitável.

Uma Luz ao Fundo do Túnel: A Solução do Garcia de Orta
No meio da crise, surge um exemplo de que é possível encontrar caminhos. Confrontado com a mesma falta de especialistas que afeta outros hospitais, o Hospital Garcia de Orta, em Almada, tomou uma medida pragmática e eficaz: contratou uma equipa inteira de médicos especialistas ao setor privado.
Esta decisão permitiu ao hospital garantir o funcionamento ininterrupto da sua urgência de ginecologia e obstetrícia, 24 horas por dia, durante todo o ano. É uma solução que representa um investimento, sim, mas que responde diretamente ao problema, assegurando previsibilidade e segurança às utentes. Prova que, com gestão focada e vontade de resolver, é possível estancar a sangria de recursos humanos e garantir a continuidade dos cuidados.

Um Desígnio Nacional
O fecho de urgências não pode ser visto como um inevitável “novo normal”. Os dramas vividos por estas famílias devem servir de gatilho para uma reflexão séria e uma ação política determinada. O modelo do Garcia de Orta aponta uma direção. O aumento do investimento em zonas carenciadas e a criação de condições para fixar profissionais no SNS são outras peças fundamentais do puzzle.
Um país que não consegue garantir a segurança das suas grávidas e recém-nascidos é um país que está a falhar no mais básico dos seus deveres. O direito a nascer em segurança em Portugal tem de ser, mais do que uma aspiração, um desígnio nacional inegociável. A sociedade e o poder político não podem voltar a fechar os olhos.

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