Ouvir a Voz de Alguém – o Papel da Literatura na Educação do Papa Francisco

Ricardo Formigo, Professor de Português

Há cerca de um ano o Papa Francisco ofereceu ao mundo um documento pastoral muito útil, que se mostrou não só uma agradável leitura como também um frutuoso ensinamento. Estou a referir-me à carta que assinou a 17 de julho com o título O Papel da Literatura na Educação1

Como o próprio autor refere no princípio desta carta, inicialmente “tinha escrito um título alusivo à formação sacerdotal, mas depois pensei que o que se segue pode ser dito, de modo semelhante, em relação à formação de todos os agentes pastorais e de qualquer cristão. Refiro-me ao valor da leitura de romances e poemas no caminho do amadurecimento pessoal.”2 Portanto, o Papa Francisco considerava que a leitura de bons livros constitui um benefício não só para os seminaristas e padres, mas para todos os cristãos. Quando o papa fala, todo o mundo ouve. No entanto, o papa convida também todos os agentes pastorais a prestarem uma especial atenção ao que escreve.

“Muitas vezes, no tédio das férias, no calor e na solidão dos bairros desertos, encontrar um bom livro para ler torna-se um oásis, afastando-nos de outras escolhas que são nocivas. Na verdade, não faltam momentos de cansaço, irritação, desilusão, fracasso e, quando nem sequer na oração conseguimos encontrar o sossego da alma, pelo menos um bom livro ajuda-nos a enfrentar a tempestade, até que possamos ter um pouco mais de serenidade.”3

Antes da omnipresença dos meios de comunicação e das redes sociais, a experiência de ler um livro no tédio e no calor das férias era uma experiência comum.

Deve ser dedicado tempo de leitura nos lugares de aprendizagem (o Papa Francisco refere os seminários, no caso da formação sacerdotal). A leitura não surge só como uma forma de passatempo (se tenho tempo livre, faço; se não tenho, não faço) ou uma expressão longínqua da vida adulta, que tende a ser considerada como um devaneio pueril dos fáceis encantamentos e ausência de preocupações da infância. O Papa Francisco é perentório ao afirmar que essa perspetiva não é boa e que está na origem de “uma forma de grave empobrecimento intelectual e espiritual dos futuros sacerdotes que ficam assim privados de um acesso (…) ao coração do ser humano.”4

Segundo o Papa Francisco, estes são os benefícios da leitura:

Ajuda-nos a enfrentar a tempestade do tédio e a reencontrar a serenidade;
Abre novos espaços interiores;
Liberta-nos das ideias obsessivas que nos enredam inexoravelmente;
O leitor reescreve e amplia a obra literária;
Faz desabrochar a riqueza da sua própria pessoa e expande o seu universo pessoal.

Vantagens cognitivas da leitura:

Desenvolve vários aspetos da inteligência;
Estimula a imaginação e a criatividade;
Permite que as pessoas aprendam a exprimir as suas narrativas de uma forma mais rica;
Melhora a capacidade de concentração;
Reduz os níveis de défice cognitivo;
Acalma o stress e a ansiedade.
Prepara-nos para compreender e enfrentar as várias situações que podem surgir na vida.

O Papa Francisco cita alguns bons autores, que devem ser tidos em conta: Marcel Proust, autor de Em Busca do Tempo Perdido; T. S. Eliot, autor de Coros de “A Rocha” e “Assassínio na Catedral” e C.S. Lewis, autor d’ As Crónicas de Nárnia e de Vorazmente Teu.

A literatura serve para “fazer eficazmente experiência da vida” 5 , “para escutar a Voz através de muitas vozes”6 e “para dar nome aos seres e às coisas”.7

As férias de verão, tal como refere o Papa Francisco, é uma altura excelente para pôr a leitura em dia, através de bons livros. Faço aqui um singelo encorajamento à leitura neste verão, com algumas sugestões:

Amor de Perdição, Camilo Castelo Branco

Nos 200 anos de Camilo Castelo Branco, nada como ler o seu livro mais conhecido, mas não faltam a este autor outros livros que expressem bem o que foi o Romantismo em Portugal (para saber mais, clique aqui).

A Minha História, Marcos Pou

A história de um seminarista de Barcelona que morreu dez dias depois de entrar no seminário, que escreveu em primeira pessoa os passos de consciência que deu, no seu caminho de encontro com Cristo.

O Rapaz do Pijama às Riscas, John Boyne

Nos 80 anos do fim da II Guerra Mundial, uma história que desvela alguns mistérios deste conturbado período histórico através dos olhos de uma criança. Bruno é um rapaz alemão, filho do Comandante de Acho-Vil (Aushcwitz), que, não tendo ninguém com quem brincar na sua casa nova, torna-se amigo de um rapaz judeu chamado Shmuel que vive do lado da vedação. A pouco e pouco, os dois descobrem que não são assim tão diferentes como o mundo parece indicar. Uma sugestão para falar de guerra e amizade às crianças.

Percy Jackson e os Ladrões do Olimpo, Rick Riordan

Para os jovens fãs de mitologia, esta saga é uma história dos deuses do Olimpo nos tempos modernos, em que o centro do mundo ocidental já não é a Grécia Antiga, mas sim a cidade de Nova Iorque. Ao longo dos séculos, os deuses conviveram com os mortais e geraram filhos com dons especiais. Nos nossos dias, Percy Jackson, um rapaz disléxico que é expulso de todas as escolas, descobre que é filho de Poseidon, o deus do mar, e um novo mundo abre-se para ele quando conhece outros iguais a ele, que vivem numa colónia especial para semideuses que os ensina a lidar com os seus poderes e os protege dos monstros que os querem devorar.

A Casa dos Olhares, Daniele Mencarelli

A experiência, na primeira pessoa, de um jovem poeta que lida com uma “doença invisível”, que o leva a procurar refúgio no álcool, nas drogas, o que o leva a um internamento num hospital psiquiátrico que o leva a dar um mergulho na sua consciência, cuja experiência é descrita com a mestria de um poeta.

Vorazmente Teu (Cartas de um Diabo ao seu aprendiz), C.S. Lewis

Escritorpe, um diabo experimentado, escreve ao seu sobrinho novato, Absintox, uma série de cartas sobre como afastar um homem recém-convertido do Inimigo e a trazê-lo para junto do “Nosso Pai que está nos Infernos”. Com a mestria da linguagem e da imagética de C.S. Lewis, a lógica do bem e do mal inverte-se nesta correspondência, fazendo-nos entrar na mente malévola deste diabo.

Marcel Proust descrevia a leitura como um telescópio, que nos leva a ver cada vez mais e melhor. A literatura oferece-nos a porta para o coração da cultura humana. Lendo estes (ou outros ) livros, cada um poderá espreitar pelo telescópio da cultura humana, isto é, conhecer-se mais a fundo.

1 https://www.vatican.va/content/francesco/pt/letters/2024/documents/20240717-lettera-ruolo-letteratura-formazione.html
2 Idem, 1;
3 Idem, 2;
4 Idem, 4;
5 Idem, 30;
6 Idem, 41;
7 Idem, 43;

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