O silêncio ensurdecedor da violência

Ricardo Sardo, Advogado

O silêncio, por vezes ensurdecedor, da vítima é também o silêncio da Justiça, é a falha de todos nós, a falha do Estado. O silêncio tem consequências, para as vítimas, para quem as rodeia, para a sociedade (numa perspetiva economicista, tem custos no sistema de saúde e nas empresas, por redução da produtividade e da assiduidade). A violência doméstica é crime e o silêncio é impunidade, é a fase invisível de uma realidade escondida que sempre existiu.

Teresa Caeiro fica conhecida pelo seu papel na política, mas era também Advogada, profissão que exerceu durante 30 anos. Foi essa experiência que contribuiu para que tivesse deixado uma marca indelével na sociedade, como pessoas próximas têm apontado desde o seu falecimento.

A este propósito, destaca-se um artigo de um jornalista, que, entre os merecidos elogios, aludiu a uma alegada situação de violência doméstica que a própria lhe teria confessado. Experiência, entretanto, negada pelos familiares de Teresa Caeiro, mas que nos conduz a uma discussão antiga mas atual: quantos casos de violência doméstica existem e que não são denunciados?

Não se sabe (nem há como saber, de forma fidedigna) os números de casos não denunciados. Estima-se que dois terços dos casos fiquem ocultos. Provavelmente, todos sabemos de um caso em que suspeitamos existir violência. Hesitamos, receamos em denunciar, até porque pode ser apenas uma perceção errada. Mas existem.

Trazendo à liça a Estratégia da Procuradoria-Geral da República em matéria de violência doméstica, publicada em fevereiro, subscrevemos a qualificação desta realidade como um “fenómeno criminal de alarmante persistência e terríveis consequências” e que deixa a vítima numa situação de especial vulnerabilidade, com impacto nos planos físico, psicológico, social e económico, e, nos casos mais extremos, com risco de vida ou de incapacitação.

A Comissão para a Cidadania e Igualdade de Género, com base na experiência e literatura científica, já apresentou as consequências traumáticas mais comuns, numa longa lista.
A lista é extensa, mas também o são os danos, que podem ser duradouros e cruéis para a saúde da vítima. E sem ajuda e o inerente processo de reabilitação, podem tornar-se definitivos e fatais. É, pois, crucial pedir ajuda.

Contudo, muitas vezes não é fácil, porquanto o pedido de ajuda exige assumir a realidade e as consequências da ação. Uma queixa desencadeia uma sequência de eventos que em muitos casos condiciona uma tomada de decisão, impede que se tome uma ação.

O medo, pela própria vítima e/ou pelos filhos, é travão para que se avance. Ou a dependência económica. Ou ainda a vergonha ou o receio de ser mal vista, pois ainda temos na sociedade uma cultura de “estava a pedi-las” ou pior. Não deveria ser, não deverá ser. Todas as vítimas deverão sentir que, por trás de si, têm um sistema que as protege, que as ampara, que as conduz a uma vida melhor, mais segura, mais saudável. Porém, esse sistema não existe. Quem nele trabalha sabe que temos um problema sistémico de falta de meios que provocam atrasos em diligências urgentes e que exigem medidas imediatas, que por vezes falta sensibilidade e até discernimento em avaliar o grau de risco, que a sobrecarga dos profissionais proporciona mais erros.

Um contexto que desmotiva, em vez de fomentar as denúncias. O contrário do que o nosso ordenamento jurídico preconiza!
O silêncio, por vezes ensurdecedor, da vítima é também o silêncio da Justiça, é a falha de todos nós, a falha do Estado. O silêncio tem consequências, para as vítimas, para quem as rodeia, para a sociedade (numa perspetiva economicista, tem custos no sistema de saúde e nas empresas, por redução da produtividade e da assiduidade). A violência doméstica é crime e o silêncio é impunidade, é a fase invisível de uma realidade escondida que sempre existiu. Há que a destapar, porque só assim ajudamos quem sofre, impedimos que se perpetue o ciclo de violência e vida de sofrimento.

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