Foi a 20 de julho de 1988 que o cinema americano ficou mais rico depois de que lançou para a tela um dos melhores filmes de acção de sempre e que está sempre no topo das preferências do público. Falo de Die Hard ou, no seu nome português, Assalto ao Arranha-Céus.
Die Hard é (para quem não sabe) baseado no livro do escritor Roderick Thorp intitulado “Nothing Lasts Forever”. Por seu turno, este livro é uma sequela de uma outra história do mesmo autor, escrito em 1966 de nome “The Detective”, que foi também adaptada para o cinema, dois anos depois, e protagonizado por Frank Sinatra no papel de Joe Leland, tendo sido um sucesso de bilheteira do ano 1968.
Porém, Die Hard tem bastantes diferenças da obra original. Realizado por John McTiernan, Die Hard tinha muitos dos ingredientes dos filmes do mesmo género da década de 80 e ao mesmo tempo desafiava muitas convenções. Mas já lá vamos.
Antes de analisar o filme, começo pelos actores. Bruce Willis não era nesta altura a escolha obvia para o papel de John Mclane. Este é primeiramente sugerido a Frank Sinatra, que na sua idade avançada, teve o bom senso de declinar. Depois vieram as rejeições de actores firmados como Clint Eastwood, Harrison Ford, Mel Gibson, Arnold Schwarzenegger e até Richard Gere. Willis era até então conhecido pela série Moonlighting e, portanto, era uma aposta de risco.
O mesmo acontece para o papel do seu antagonista, Hans Gruber, intepretado pelo falecido Alan Rickman. O actor britânico era até então um performer de teatro e alguns papeis em séries e filmes em televisão.
Estamos, portanto, a falar de duas estreias em dois papeis cruciais para o sucesso deste filme. Como sabemos agora, correu tão bem que, de um filme vieram mais quatro, uns com mais sucesso que outros.
McTiernan tinha estado ao leme do filme Predator no ano anterior e após algum convencimento por parte do produtor Joel Silver (também produtor de Predator) aceita realizar Die Hard, mas o filme teria forçosamente que fugir ao livro de Thorp. E assim Joe Leland torna-se John Mclane, Holly Gennaro, que no livro era a filha que morre, torna-se na mulher que é salva e os terroristas do livro são uns assaltantes de banco.
A trama deste filme é um polícia de Nova York que na véspera do Natal vem ter com a mulher a Los Angeles na esperança de reatar a sua relação. Subitamente o local onde ela trabalha é invadido por pretensos terroristas que querem os mais 600 milhões de dólares escondidos no cofre da empresa do edifício Nakatomi. John é assim lançado para uma violenta batalha para salvar a sua mulher e o seu casamento.
Porém, Die Hard é muito mais que isto. Fazendo uma análise às duas personagens principais, entende-se uma das razões do sucesso do filme.
Comecemos por John Mclane e a forma como ele é caracterizado. Logo no início do filme e ainda no avião, este polícia que, segundo as convenções e filmes da mesma década, deveria ser duro e invulnerável, é substituído por um homem que tem medo de voar e recebe um conselho de um estranho para se acalmar. Chegado ao aeroporto percebe-se que John nunca andara de limousine, nem está habituado a esse mundo, escolhendo ir no lugar da frente ao lado do motorista, também ele um novato.
Esta vulnerabilidade é explorada várias vezes durante o filme. John é um homem em conflito com as suas emoções e a forma como elas são comunicadas e isso está expresso na conversa inicial com a mulher e depois com a autocondenarão que faz no primeiro diálogo interno que tem e que se torna um hábito durante o filme e que nos deixa algumas frases e takes memoráveis.
Outra forma de demonstrar esta vulnerabilidade é a indumentária, ou neste caso, a falta dela. John passa a maior parte do filme descalço, sem camisa e conforme o filme continua, a roupa vai ficando cada vez mais ensanguentada.
As implicações desta vulnerabilidade têm obviamente uma razão de ser. Os anos 80 foram bastante profícuos em filmes de acção. Porém a larga maioria destes filmes caracterizavam os heróis de uma forma cada vez menos realística assente na invulnerabilidade masculina muito parca na dimensão emocional e na imperfeição.
Assim John Mclane é um polícia mais perto do homem real e por isso representa, ainda que através da violência, a superação e êxito, fruto da determinação. Nesse sentido John é encorpar do sonho americano e da ideia de que o homem comum consegue chegar ao seu objectivo se fizer por isso.
Se analisarmos o seu inimigo, encontramos outra razão do sucesso de Die Hard. Esta personagem é polida, culta e com gostos sofisticados como se vê quando reconhece a marca do fato do malogrado Takagi.
Ao contrário de John, Hans Gruber raramente levanta a voz, parece ter tudo programado e tem por isso um comportamento quase maquinal, da mesma forma que é implacável como assassino. No entanto, são as expressões faciais e a forma como fala (e aqui o mérito é totalmente do actor) que fazem de Hans um dos melhores vilões de sempre.
Há também outras personagens a destacar que trazem consigo o seu próprio arco e com isso fazem de Die Hard um filme mais completo. A actriz Bonnie Bedelia interpreta uma mulher moderna que rompe com as convenções de uma fada-do-lar e obtém sucesso no mercado de trabalho ao receber um prémio pelo seu desempenho. É interessante como esta narrativa não a torna numa personagem odiada como mulher que escolhe a carreira a despeito da vida familiar. É claramente John que é o responsável pela separação. Holly é ainda uma líder oficiosa no que toca a lidar com os supostos terroristas e até provoca Hans perto do fim ao chamá-lo de ladrão comum.
Al Powel protagonizado por Reginald VelJohnson é também uma personagem com arco. Começa por ser um protótipo do polícia gordo que inesperadamente é posto em acção, e é também, em paralelo com John que se vulnerabiliza quando diz que não consegue usar a arma, algo que para um polícia é impensável e se pensarmos na arma com um símbolo, Al é uma história de redenção (ainda que através da violência) uma vez que é ele que salva os Mclane no fim do filme, disparando precisamente a arma que disse não saber usar.
Não se pode falar neste filme sem mencionar o papel de Karl interpretado por Alexander Godunov. Tendo já entrado em filmes de sucesso como “Um dia a casa veio abaixo” ou “A Testemunha”, Godunov era um ex-bailerino que não tinha ainda nenhum papel de destaque em filmes de acção, muito menos como o que interpreta em Die Hard. No entanto é mais uma aposta bem-sucedida de Silver e McTiernan. Karl é um assassino descontrolado desesperadamente à procura de vingança a subir e descer um edifício de arma em punho até encontrar o polícia que matou o seu irmão. Esse descontrolo separa-o de Hans e de certa maneira aproxima-o de John no que toca a deixar as emoções virem ao de cima. Godunov é absolutamente credível e um daqueles “maus” que todos nós gostamos.
No que toca ao grupo europeu de falsos terroristas, nunca é demais mencionar que têm várias nacionalidades desde a italiana, alemã e até japonesa, como é o caso do actor/quase sempre figurante, Al Leong, um daqueles que todos sabemos quem é, mas quase nunca fala e morre em quase todos os filmes.
Tem de se falar de Ellis (Hart Bochner), o drogado de cocaína. Uma personagem unidimensional, mas que representa o empresário idiota e uma certa arrogância americana perante aquilo que ele considera ser o “Euro Trash”. Como idiota que é, o seu fim não surpreende ninguém.
Não tendo propriamente grandes personagens em termos das suas longevidades e desenvolvimentos individuais, há que mencionar a forma como a polícia de Los Angeles e o FBI são caracterizados. Em poucas palavras, são vistos como idiotas e fanfarrões. Na figura de Dwayne T. Robinson (Paul Gleason) a polícia comete erros atrás de erros e por um lado desrespeita o trabalho de John e por outro menospreza o plano de Hans. O mesmo acontece com o FBI cujos agentes aparecem nos seus fatos e gravatas e não são mais do que isso, um uniforme, como é mostrado através dos seus nomes, Johnson e Johnson.
Logicamente que a fanfarronice dos agentes de autoridade vêm reforçar o heroísmo de John que sendo ele um polícia, é ainda assim um outsider desconsiderado por todos.
Depois das personagens temos o próprio filme, ou seja, a forma como este se desenvolve, que traz mais uma razão do sucesso. Este começa com todas as peças e enredos a serem introduzidos de uma forma gradual sem a pressa de mostrar tudo. Passam mais de 20 minutos do filme até que se ouve o primeiro tiro e começa a acção. O primeiro encontro entre os Némesis acontece já numa fase onde John já não é só um polícia despejado no meio de profissionais mais capazes e mais bem armados. O seu heroísmo produz uma força determinada e cada vez mais sagaz. Talvez a melhor forma de ilustrar esta sagacidade é a forma como John mata o primeiro inimigo, quase por acidente ao cair de umas escadas, e os dois últimos tiros disparados da sua arma já no terceiro acto.
Uma outra componente deste filme é a quantidade de one liners, murder jokes e referências populares do imaginário americano. Nomes como John Wayne, Gary Cooper, Roy Rogers, e mesmo Arnold Schwarzenegger fazem parte dos diálogos do filme trazendo consigo arquétipos de western e acção. Este tema do western é ainda mais visível quando, depois dos disparos, John sopra em cima da sua arma.
Os one liners, frases de relevo que são normalmente faladas após a morte de alguém transformam-se em murder jokes. Em Die Hard, estas frases, repetidas ao longo dos anos pelos fãs, trazem um elemento de comédia ao filme em consonância com o estilo de representação de Bruce Willis.
Die Hard não é um filme perfeito e tem uma ou duas cenas que desafiam a credibilidade e facilidade de identificação, concretamente a cena do poço do elevador. Aceita-se que, no crescendo do arco de John, este se vá superando, mas talvez esta cena seja um pouco demais.
Ainda assim há um claro esforço para John Mclane seja considerado um homem comum que, ao ser testado numa situação limite, consegue ultrapassar os obstáculos e as suas imperfeições e salvar o dia.
E para acabar com as dúvidas, Die Hard é um filme de Natal, ainda que lançado no Verão de 88, mas pode e deve ser visto em qualquer altura do ano.


