“A função da vergonha, ou embaraço, é sinalizar a pessoa para algo que não devia ter sido feito daquela forma”

Bernardo Almeida

Pausa Mental. Entrevista a Luís Azevedo

Esta semana trago o tema dos momentos e memórias embaraçantes que teimam em ser objecto de ruminação. “O cérebro percebe quando algo funciona, ainda que o evitar destes pensamentos seja uma estratégia de curto prazo e, portanto, da próxima vez que estes pensamentos surgirem, ele volta a evitar.”

Entrevistei o psicólogo Luís Azevedo, formado em Psicologia pela Universidade de Porto, com Mestrado em Psicologia Clínica pela Universidade de Varsóvia. Actualmente, dá consultas a adultos com problemas emocionais e é também formador.

O que são estes momentos embaraçantes?
São pensamentos repetitivos que surgem associados a emoções difíceis. A vergonha e o embaraço em momentos específicos. Há três factores possíveis para isto. Pode ter a ver com o tipo de gatilhos que despoletam estes pensamentos. Uma pessoa pode ter propensões que trazem aquelas memórias à mente. A outra pode ser pela intensidade da emoção associada, quanto mais a vergonha estiver associada a essa memória, mais desconfortável ela vai ser, e maior será a tendência para evitá-la. O terceiro factor são as estratégias que se utiliza para lidar com esses pensamentos. Quando uma pessoa tem este tipo de pensamentos, existe uma tendência imediata para, por exemplo substituir por outra memória que quando é sistemático, começa a ser um problema porque a nível do subconsciente começa a aprender que não tem capacidade para lidar com aquela experiência. Ao fazer o esforço para que o pensamento desapareça, é preciso verificar e isso retroalimenta.

É possível que estes pensamentos sejam uma consequência de expectativas irrealistas?

Sem dúvida. Todas as emoções têm uma função muito específica. A função da vergonha ou embaraço é basicamente sinalizar a pessoa para algo que não devia ter sido feito daquela forma e assume uma prescrição social e moral. Em situações onde penso para mim mesmo sobre as expectativas de sucesso ou desempenho e essas expectativas são veiculadas e reforçadas por outras pessoas, eu começo a cristalizar determinadas ideias como por exemplo, eu tenho de conseguir isto e temos aqui um ideal que começamos a romantizar. Depois as coisas acontecem e nós sentimos que ficamos aquém. Estas expectativas de sucesso podem ser relacionais, sexuais ou profissionais.
Eu costumo dizer que o veneno está na dose. O cérebro percebe quando algo funciona, ainda que o evitar destes pensamentos seja uma estratégia de curto prazo e, portanto, da próxima vez que estes pensamentos surgirem, ele volta a evitar. Só que nós sabemos que a longo prazo estamos a criar as condições ideais para sofrer cada vez mais com esta ou aquela memória.

É mais fácil acreditar nesta espécie de prisão mental tendo em conta o desconhecido?

Sim, a curto prazo é muito mais fácil, porque a alternativa é eu expor-me.

E aquela voz interna que nos leva à cobrança que carrega toda esta vergonha?

Essa voz todos nós temos. Ela começa a utilizar linguagens diferentes quando nós começamos a permitir que isso aconteça, embora possa parecer injusto. Dou-lhe um exemplo. Tenho uma cliente minha. Ela estava a ver um jogo de futebol do namorado, ele marcou um golo e ela levantou-se a festejar, mas a voz interna dela disse-lhe “olha a figura que estás a fazer, és uma palhaça”. Naquele momento ela sentou-se, com vergonha. E voz interna “ganhou”.
Muitas vezes são esses pequenos momentos que nós não nos apercebemos do impacto que podem ter e sem saber, escolhemos alimentar essa voz interna. Ao alimentar e obedecer a esta voz, ela vai ganhando espaço e vai criando uma jaula.

Esta voz no fundo quer a nossa segurança, quer proteger-nos de situações das quais nós já não precisamos de proteção. Porque é que isto é assim?

De facto, esta voz, que todos temos, tem esse propósito que é proteger-nos das eventualidades. À medida que vamos crescendo e ganhando capacidade para elaborar, vamos chegando a algumas conclusões acerca das nossas experiências e vamos criando crenças sobre nós, sobre o mundo e sobre os outros. Quando essas experiências são negativas ou traumáticas, vamos começar a criar essas tais conclusões e alimentamos essas crenças ainda que de forma inconsciente, mas que formam a ideia de que somos inadequados. Isto acontece mais ainda quando estamos perante experiências imprevisíveis ou incontroladas. Eu vou ter de criar um significado para isso, e perante um passado com crenças negativas, estas experiências vão confirmar mais ainda aquilo em que já acreditamos.

É possível que o ruminar destas memórias seja um sinal de algo mais grave como, por exemplo, o transtorno obsessivo-compulsivo?

Sim. Quando eu noto que tenho estes pensamentos repetitivos aparecem com muita frequência, isso pode ser um sinal de alerta, não sendo um diagnóstico em si, uma vez que a ruminação é um processo transdiagnóstico.

E nessa altura é melhor ir falar com um especialista

Sim, e não é só para tentar resolver, mas também para avaliar o significado da ruminação.

Isto leva-me à minha última pergunta, que é se faz para mitigar ou gerir o impacto que estes pensamentos têm?

Pegando naquilo que falei no início desta conversa, sobre os gatilhos, emoções e estratégias, há aqui algo muito claro. Se eu percebo que existem gatilhos específicos, como pessoas com quem estou ou situações onde me envolvo, poderá existir alguma vantagem em tentar controlar a presença desses estímulos ou a frequência como me envolvo, embora isso seja uma estratégia de evitamento que como já falei, não é ideal. Funciona com contrapeso e medida e não de uma forma rígida.

Depois existe a intensidade da emoção. Para não utilizar o evitamento, devo escolher expor-me a esse pensamento e utilizar uma linguagem onde expõe o próprio pensamento, como por exemplo uma mãe que falou mais alto com o filho e fica a ruminar que é má mãe. Ao utilizar palavras que coloquem o pensamento de volta ao local e ao momento que o gerou, pode observá-lo e assim perceber que essa ruminação é apenas um pensamento sem importância em si.

Finalmente, algo que em psicoterapia acontece muito, já que a pessoa tem dificuldade em expor a sua vulnerabilidade e lidar com situações associadas a vergonha, fracasso ou ansiedade, vamos criar situações para a pessoa se expor a essas situações de forma intencional, para que a pessoa possa aprender, nesse exercício, que pode lidar com isso. É uma ginástica emocional, é uma boa metáfora, ninguém começa logo nos pesos pesados. A partir destes exercícios paulatinos a pessoa vai conseguir re-significar as suas experiências e ir mudando o seu sistema de crenças.

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