SNS (Serviço Nacional de Saúde) ou SNS (Sistema Nacional da Saúde)? Eis a questão Alemã!

José Padrão Mendes, Médico Neurologista, Médico Intensivista, com especial interesse na Patologia Cardiovascular, Neuropsiquiatria, Doenças do Movimento, Cefaleias e Tonturas

Talvez o único ponto onde se considere que o estado alemão possa estar algo melhor e ser um exemplo a seguir (e aqui também não tenho a certeza) é na questão dos médicos de família.

Listas de espera de 6 ou mais meses, urgências fechadas ao fim de semana ou à noite, ou então urgências “apenas” com médicos internos residentes de primeiro ou segundo ano a trabalhar sem a devida supervisão, camas de enfermaria e de cuidados intensivos restringidas ou mesmo encerradas por falta de profissionais de saúde. Médicos tarefeiros a trabalhar pagos à peça para suprir as necessidades das depauperadas equipas médicas, e com remunerações consideravelmente superiores às dos seus colegas efetivos dos hospitais.

Equipas desmotivadas, médicos e enfermeiros que se despedem e reduzem cada vez mais as equipas onde trabalhavam. Horas extra em cima de horas extra para conseguir atender todos os utentes, levando à exaustão, física, mental  e emocional dos profissionais de saúde…

Parece que acabei de enumerar os problemas de um qualquer hospital de Portugal, mas o que acabo de descrever acontece num dos maiores hospitais da Alemanha, o Santa Maria lá do sítio, onde eu trabalho, por isso falo por experiencia própria e pelo que senti na pele.

Este desabafo, se assim se pode dizer, vem na sequência de um tempo de antena de um partido português que vai a eleições no próximo dia 10 de março, e que olha para o futuro de Portugal, um futuro risonho em que os problemas do país se resolvem copiando outros países da Europa, países estes denominados “liberais”. O problema do nosso Sistema Nacional de Saúde resolve-se “copiando” o Sistema alemão, um sistema baseado num sistema de seguros privados e estatais (único na Europa), em que não há saúde pública apenas privada, nalgum que noutro sítio com iniciativas apoiadas pelo estado (pronto, vulgo PPPs), mas em que a administração dos hospitais tem tal autonomia que se pode considerar todo o sistema um sistema privado de saúde, com seguradoras que controlam efetivamente o sistema, definindo os custos e o tempo de estadia dos doentes nos hospitais.

Imagine o que era em Portugal as pessoas terem a Médis, a Medicare, a Tranquilidade, Multicare, ou outro qualquer seguro privado (na Alemanha existem mais de 100…) e ainda haver uma ADSE, mas os hospitais serem controlados todos pela Luz Saúde e/ou pela CUF. Outro ponto fulcral e central no sistema de saúde alemão é o “princípio da auto-gestão”. Ou seja, enquanto na Suécia, Grã-Bretanha, Portugal, Espanha, o Estado garante os serviços e organizações básicas na saúde, na Alemanha são os próprios hospitais e clínicas, em colaboração com as seguradoras e sindicatos dos profissionais de saúde que se organizam e têm a gestão hospitalar sobre a sua exclusiva responsabilidade, mas sempre de acordo com parâmetros balizados e estruturados pela lei estatal.

Sendo um Estado moderno, desde 1883 com Otto von Bismarck que o acesso à saúde está garantido a todas as pessoas residentes legais na Alemanha, em que os mais desfavorecidos têm um seguro pago pelo estado. Mas também há diferenças entre seguro público e seguro privado, sendo estes mais caros, mas tendo um tratamento mais célere e alas reservadas no hospital mais “luxuosas” ou mesmo quartos individuais, exceto nos cuidados intensivos e unidade de AVCs, aí em situações de vida ou morte são todos iguais. Extremamente resumido e simplificado é isto o sistema de saúde alemão.

Ainda não referi o custo que implicam os seguros para os alemães, que não é uma questão menor, e isso foi uma das problemáticas que não ficou esclarecida no referido tempo de antena e muito menos no programa do referido partido. Esses seguros não são “baratos” como os nossos de cá no nosso retângulo à beira mar plantado. Quando eu digo o que se paga de prémio de seguro de saúde em Portugal (em média menos de 100 euros), os alemães ficam incrédulos. Mas o que eles não sabem, é que nós pagamos “tão pouco” (em comparação com os alemães) porque os portugueses ainda utilizam muito o nosso SNS e um pouco menos os prestadores privados, mas se essa utilização se inverter e começar a usar-se mais este tipos de seguros, os prémios sobem, como já aconteceu este ano (Caos no SNS faz disparar custos dos seguros de saúde | Jornal Económico (jornaleconomico.pt)).

Como exemplo, eu pago de prémio de seguro por mês quase 700 euros (metade eu e a outra metade o meu empregador). Este é um sistema de seguro solidário, em quem ganha mais paga mais e os indivíduos saudáveis pagam pelos doentes. O contributo direto dos impostos do estado alemão é residual, enquanto no nosso caso, todo o nosso SNS é financiado com dinheiro de impostos. Se realmente um projeto para o nosso serviço de saúde como este avançar, baixariam os impostos em proporção?  Mas alguém neste país acredita que se a saúde deixar de ser, em grande parte, financiada pelos nossos impostos, estes descem?

Talvez o único ponto onde se considere que o estado alemão possa estar algo melhor e ser um exemplo a seguir (e aqui também não tenho a certeza) é na questão dos médicos de família. No referido tempo de antena, o avô está a ler um jornal onde se refere que há 1,7 milhões de Portugueses sem médico de família. Na Alemanha a grande maioria dos utentes tem médico de família e pode escolher esse médico de família, desde que esse médico de família tenha vaga para o receber.

Na Alemanha há mais liberdade, uma liberdade que é gerada pelo facto de TODAS as pessoas terem seguro de saúde, e com esse seguro de saúde poderem escolher o médico que querem desde que o médico tenha acordo com sesse seguro (normalmente os médicos têm acordos com mais de 90% dos seguros). A liberdade neste caso acaba, quando o médico não tem vaga para receber a pessoa e a pessoa tem de se sujeitar ao que tenha vaga. Mas pelo que sei, de momento não há pessoa que procure e não encontre médico de família, nem que para isso tenha de se deslocar à cidade vizinha, pode é não ser aquele que desejava. Na Alemanha se se quiser abrir uma clínica médica ou consultório, tem de se ter uma licença especial, uma licença que de momento é bastante cara, nalguns casos ultrapassa o meio milhão de euros e no caso de clínicas de radiologia pode chegar ao milhão. Essa licença seria equivalente à licença que têm as farmácias para operar em Portugal. Este poderia ser um entrave para a abertura de novos consultórios e clínicas devido ao elevado custo, mas o retorno é seguramente maior. E com isso o mercado consegue suprir essa necessidade de médicos de família.

Mas na questão dos hospitais, onde os médicos têm de fazer grandes sacrifícios, trabalhando imensas horas, fazendo horas extra em cima de horas extra, trabalhando noites seguidas sem ter tempo para a família, a situação é muito similar à portuguesa. Já trabalhei nas urgências e tive de deixar pessoas quase 8 horas na sala de espera (infelizmente era humanamente impossível atender essas pessoas em tempo útil), porque entravam doentes urgentes com AVCs uns atrás dos outros e não tinha tempo para outros pacientes (muitas vezes estava eu sozinho a trabalhar nas urgências, tendo de atender TODOS os pacientes neurológicos desde AVCs a dores de cabeça); a população médica também sofre do problema da demografia da população geral: está muito envelhecida e não há suficientes jovens para substituir os que se reformam.

Eu estava a trabalhar numa unidade de cuidados intensivos com 15 camas (reduzidas, entretanto para 12 por falta de enfermeiros) que há 4 anos contava com 14 médicos na equipa e agora, erámos 8. Outra questão nos hospitais da Alemanha e um pouco por toda a Europa é que a grande parte da força de trabalho jovem é feminina. Por um lado, é muito bom e positivo, mas por outro tem consequências negativas nos horários e na elaboração de escalas, pois grande parte das médicas na Alemanha trabalha em part-time (muitas vezes menos de 70%), preferem fazer menos noites ou mesmo não fazer noites e quando engravidam e são mães podem ficar até 3 anos!! de licença. Esta liberdade é excelente e é extremamente positiva, mas a verdade é que num grande hospital com falta de médicos uma situação desta pode ser desastrosa e causar grandes transtornos e sobrecargas nos colegas e uma impossibilidade de elaborar as escalas.

Outro dos problemas da Alemanha é que os jovens médicos abandonam o país na procura de melhores condições salariais e laborais (SIM! Também!!!), muitos emigram para a Noruega, para a Suécia, Dinamarca ou para a vizinha Suíça onde encontram uma melhoria salarial e condições laborais mais “amenas” – para se perceber melhor, na Alemanha para se ser enfermeiro só é necessário fazer uma formação profissional de 3 anos. Ora isto leva a que muito do trabalho que é feito pelo enfermeiro em Portugal seja realizado pelo médico na Alemanha, por exemplo sou eu que coloco as vias venosas e faço a recolha do sangue dos doentes. A figura de auxiliar de enfermagem é praticamente inexistente na Alemanha – . Isto leva a que o sistema nacional de saúde alemão ainda só funcione recorrendo a mão de obra estrangeira. E cada ano a tendencia é mais vincada. Quando comecei a trabalhar, no meu serviço erámos 20 médicos internos residentes a fazer a especialidade de Neurologia, e destes 20, 11 erámos estrangeiros, entre um português, albaneses, gregos (muitos!!), egípcios, jordanos, árabes… a minoria era alemã. Atualmente, são 2 alemães e o resto são estrangeiros.

Há serviços em que só o chefe é alemão, e em hospitais do interior já existem serviços em que não há alemães… isto não seria realmente um problema, se a profissão médica não envolvesse um constante contacto com outras pessoas em situação de sofrimento. Muitos dos colegas estrangeiros vindo de países tão distintos e com uma cultura e idioma tão marcadamente diferente da alemã, como os países subsaarianos ou mesmo os países árabes, sentem um enorme choque cultural que acaba por afetar negativamente a prática clínica. A comunicação, sendo uma parte essencial da prática médica, perde-se ou é incompreendida levando ao não acolhimento de terapias por parte do doente ou pior, um mau entendimento que pode levar a consequências perniciosas para a saúde das pessoas. Estes problemas foram identificados e estão sendo tratados pelo sistema, mas isto leva a que a integração dos médicos estrangeiros seja mais lenta do que o desejado.

Mas aplicando diretamente este sistema em Portugal, além de ser praticamente impossível pelo exposto acima, também traria o problema de a curto prazo esvaziar completamente o sistema público de saúde português. De momento existe uma total opacidade de como atuam os provedores privados na saúde. Não sabemos salários, nem que tipo de condições oferecem aos técnicos de saúde. Por outro lado, no nosso SNS tudo é transparente e qualquer pessoa pode saber quanto ganha um médico ou enfermeiro. No nosso país existe uma competição desleal, um canibalismo por parte dos provedores privados do nosso SNS. Enquanto o SNS não poder concorrer de igual para igual com os provedores privados, a sangria e degradação do SNS será constante. Uma cooperação exige-se! Uma cooperação pensada, não precipitada e desordenada, pois as melhores condições salariais e de trabalho dos provedores privados levaria a um êxodo total dos trabalhadores do SNS. Neste momento já 8 mil milhões de euros, ou mais de metade (51%) do orçamento do SNS vai para organismos privados. Se se abre uma competição/colaboração livre, esta percentagem poderia explodir para níveis a roçar ou superar os 90%, ficando o Estado refém dos privados e sem uma legislação como a Alemã que protegesse os interesses dos consumidores.

Uma transformação deste tipo, não se faria num ano, num orçamento de estado, não sejamos ingénuos. E possivelmente nem seria a solução para o nosso país. As nossas idiossincrasias e a nossa cultura são muito díspar da alemã. Não se pode mudar um sistema que funciona há 50 anos, para outro totalmente diferente sem haver consequências graves e, normalmente, sempre para os mesmos. Temos de fazer mea culpa e assumir que o nosso SNS parou no tempo.

O SNS foi idealizado e preparado para uma situação demográfica totalmente distinta da atual. Na década de 70 do século passado a distribuição demográfica da nossa população era totalmente distinta da atual e o nosso SNS não se adaptou aos novos tempos. E enquanto na última década foram inaugurados 33 hospitais privados, o leitor sabe quantos foram os hospitais públicos inaugurados/construídos? ZERO! O SNS precisa de uma reforma, mas não é imitar o que fazem noutros países, isso é a morte do nosso SNS como o conhecemos e entrar em peripécias que podem levar à destruição de uma das maiores conquistas de abril. Uma das consequências relevantes do sistema de saúde alemão é a possibilidade real da falência dos hospitais. Na zona onde trabalho faliram 3 hospitais este ano devido à crise energética. Estas falências deixaram uma parte da população sem atendimento médico e levaram à sobrecarga dos já sobrecarregados hospitais da região.

Nestes aspectos não se deve copiar ninguém. São temas demasiados sensíveis para ir à aventura e propor mudanças radicais, além do mais sem saber como e sem fazer as contas. E não nos podemos esquecer que o original é sempre melhor que a cópia e se de momento, como exposto, o sistema de saúde alemão já tem imensos problemas, como é que ficaria um SNS português igual ao alemão?

Não nos podemos esquecer que o nosso SNS, com todos os seus problemas, ainda é dos melhores que há e se medirmos em termos de produtividade, fazemos mais que os alemães, mas com menos recursos. Outra questão que também se impõe: os problemas graves, cancros, AVCs situações extremas de vida ou morte, onde costumam ser tratadas? Em Portugal ainda é o SNS que trata a maior parte dos cancros e AVCs, ficando os privados com os tratamentos e diagnósticos mais lucrativos. Se houvesse um equilíbrio neste aspecto, quanto não custariam os prémios do seguro? O SNS pretende (ou esse deveria ser o objetivo) que os utentes apresentem um elevado nível de saúde, mas será que o privado também é assim? No privado haverá sempre o lucro, que sempre terá influência nos tempos de estadia dos pacientes e das terapias utilizadas. Enquanto o uso dos provedores privados não se massificar, não se notará, mas com um uso mais intensivo de serviços privados, veremos o que acontece.

E na Alemanha também há falta de professores e, em relação ao mercado imobiliário, se é verdade que os preços de compra e venda desceram em média mais de 10% no último ano, as rendas subiram e em alguns locais de maneira acentuada. Num País com mais de 50% da população a arrendar casa, também esta é uma questão não resolvida e de emergência. Será que a Alemanha é mesmo o país que queremos imitar? E já agora, chamar a Alemanha de país liberal, também será um eufemismo. Só se for em comparação com Portugal. Pois a quantidade de regulamentações, leis e restrições à liberdade e iniciativa privada não é nada desdenhável.

E só mais um exemplo de um país “liberal” com outro tipo de sistema de saúde. Trabalhei 6 meses na Irlanda, enquanto fazia a minha formação em Psiquiatria. Aqui o sistema é um misto do português e do alemão com um mistura muitas vezes incompreensível de um sistema público e um sistema privado baseado em seguros. Mas o serviço “público” na Irlanda é caro, qualquer consulta sem um seguro ou uma consulta de medicina geral e familiar mesmo no hospital público custa no mínimo 100 euros. Isto só da consulta, se for necessário fazer análises a outro tipo de procedimento diagnóstico já são mais 50 euros e se precisar fazer exames mais elaborados já são mais 200 ou 300 euros. Muitos irlandeses simplesmente não vão ao médico porque o custo de vida no país já é elevado e com esses custos associados fica mais difícil ainda.

Não sei se será o novo CEO do SNS que resolverá o problema, ou se esta reforma iniciada pelo governo socialista é só mais uma maneira de arranjar trabalho para os boys dos sistemas. Mas de certeza que não é a obrigar os médicos a ficar no SNS por “x” anos após a conclusão do curso e da especialidade ou obrigando-os a pagar uma soma equivalente à sua formação se emigram ou vão para o privado que se começa a resolver o principal problema do SNS: a falta de recursos humanos e a falta de condições oferecidas aos mesmos!

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