Era a véspera do casamento da primeira filha, Mimi, de 28 anos. Num pequeno restaurante em frente de casa, a mãe e os seus quatro filhos, a noiva e os três irmãos rapazes, apenas um pouco mais novos, conversavam num ambiente misto de emoções e brincadeiras, naquele que era o último jantar apenas dos cinco.
Cada um recordava cenas engraçadas de infância em que a mana mais velha mandava em todos eles como uma mãezinha…e atropelavam- se na conversa, entre gargalhadas e recordações…Mimi e a mãe também riam a bom rir…
‘… lembram-se, quando a Mimi ficou danada, porque nos foi encontrar a mexer na secretária dela, nos bilhetinhos do namorado e a comer-lhe os chocolates que ela tinha escondidos?’
‘… e daquela vez que o Miguel deixou a casa de banho toda suja e a Mimi o obrigou a lavar tudo com lixívia, antes que a mãe chegasse, e ele furioso, a espirrar imenso por causa do cheiro, ali de gatas a limpar…?’
‘… e aquele dia em que ela ficou tão zangada, porque tinha estado toda a noite a fazer resumos de História para o Manel e ele no dia seguinte, em vez de querer ter explicação com ela, foi-se embora para o futebol, não estudou nada, e teve uma nota miserável…?’
‘… e vocês lembram-se daquele remédio horrível que ela nos obrigou a tomar, no dia em que convenceu a mãe a que tínhamos todos de fazer uma purga de primavera, para limpar os intestinos, porque tinha visto um diário da nossa bisavó alemã que defendia muitos princípios higiénicos… entre os quais esse óleo de rícino … e depois ficámos cheios de dores de barriga e estávamos sempre a correr para a casa de banho? Ahaha…’
O ambiente estava muito animado até que, chegado o momento das sobremesas, a mãe, subitamente, ficou muito séria e lhes disse:
‘… desculpem interromper, mas eu também queria recordar outros acontecimentos, não tão divertidos, mas que tiveram uma influência decisiva na família que hoje somos! Estou certa de que a Mimi, como mais velha, se lembrará bem…’
Então, comovida, com dedos trémulos, a mãe abriu a carteira, tirou umas fotos do pai em jovem, que foi passando de mão em mão, e começou a recordar aquela noite fatídica em que uma tempestade no Alentejo, derrubara uma árvore de grande porte sobre o carro que o pai guiava, no regresso a casa, e o vento ciclónico o arrastara por uma ribanceira abaixo. Depois, fora a notícia daquele terrível acidente através de um telefonema dos bombeiros e da polícia, as dificuldades para o desencarcerarem, a longa permanência em coma no hospital, e por fim o regresso a casa … dependente de todos e sem falar, apesar de consciente, até ao seu fim, alguns anos mais tarde…
A mãe quis lembrar-lhes, como num ápice, as suas vidas se tinham transformado: o pai, de grande gestor de uma empresa em franco crescimento, que pagava excelentes ordenados para a época… passara a doente necessitado de cuidador dia e noite e desempregado…um homem jovem, bonito e de porte atlético, transformado num quase farrapo humano…
E lembrou como tinham tido de mudar de uma bela moradia num condomínio de luxo em Cascais para uma casa muito pequena num bairro social nos arredores de Lisboa … e tinham passado do colégio privado para a escola pública… por outro lado, também a partir de então, já não havia dinheiro para empregadas, nem para fins de semana fora, ou férias na praia…ou no estrangeiro…
De um dia para o outro tudo mudara radicalmente, e a mãe tivera de procurar outro emprego também para conseguir horários compatíveis com os cuidados que o pai precisava… e ao fim de semana até cozinhava para fora, para juntar mais alguns euros…
E quando, muitas vezes, às escondidas dos filhos, já deitada, chorava a pensar quem lhe dera que tudo aquilo fosse apenas um pesadelo, vinham-lhe então à cabeça as orações e citações da avó alemã, sobrevivente da guerra, que deixara um diário escrito onde lhes ensinara:’ …dá-me, Senhor, Serenidade, para aceitar o que não posso mudar, dá-me Coragem, para mudar o que posso, e Luz, para discernir entre uma coisa e outra…’; ‘não há um elevador para o sucesso; tens mesmo de subir as escadas; ‘ e ainda ‘ quando os tempos forem difíceis (wenn die Zeiten schwierig sind, geh in kleinen Schritten weiter…), avança com passos pequeninos, faz o que deves, mas devagar. Não penses no futuro… cozinha a sopa, limpa o pó, passa a ferro, escreve uma carta… mas dá um pequeno passo de cada vez…; nunca desistas… não desanimes, nem desesperes, porque depois da tempestade, vem a bonança!’
E naquela noite, a mãe foi lembrando aos seus filhos, como cada decisão e cada mudança fora difícil, mas como eles, a quem sempre explicara tudo e a quem pedira ajuda, se tinham pouco a pouco transformado em excelentes pessoas, crianças e depois adolescentes responsáveis e bons alunos, que ajudavam tanto, colaborando no que podiam para apoiar a mãe, cuidar do pai, da casa e sem exigências, nem birras, nem egoísmos…
De lágrimas nos olhos, abraçando sua filha Mimi, a mãe desejou-lhe as maiores felicidades, dizendo que confiava que ela saberia levar para o seu novo lar na mala de viagem, o verdadeiro tesouro de família, aquela experiência de vida, para a partilhar com o marido e os filhos que viessem a nascer!
O restaurante esvaziara-se, entretanto, e aproximava-se a hora de fechar e regressar a casa. Então os rapazes, pegando numa viola, propuseram acabar aquele delicioso encontro familiar, com uma saúde e a música preferida do pai, que sempre cantavam em ocasiões especiais : ‘You are my sunshine, my only sunshine, you make me happy, when skies are grey… you’ll never know, dear, how much I love you… please don’t take my sunshine away…’ ( tu és o meu sol, meu único sol, tu fazes-me feliz quando o céu está cinzento, nunca saberás, meu amor, quanto te amo, por favor não me tirem o meu sol…).