PAUSA MENTAL – A azia emocional que a personalidade traz e o carácter atenua

Bernardo Almeida

A minha personalidade anda muitas vezes em paralelo com uma outra coisa que por vezes não é fácil de explicar, que é o carácter. Se a primeira me remete com facilidade para um lugar onde não quero estar, é o carácter que me lembra do compromisso, da maturação e profissionalismo.

As palavras que hoje escrevo são consequência de um evento desportivo de domingo. Não será necessário, na cultura portuguesa, explicar do que estou a falar. Escusado será também dizer que não me correu bem.

Enquanto digeria, ou, para ser mais assertivo, não conseguia digerir o que tinha acabado de ver, consegui vislumbrar a forma como me estava a afectar e como uma certa descoloração, assim para o escuro, começava a preencher a minha sala, o meu momento e a minha cabeça.

Nem uns dez minutos depois eu já estava na afã. A minha tranquilidade tinha desaparecido e a revolta e raiva formaram um manto que cobriu e tolheu qualquer possibilidade racional de aceitar um resultado desfavorável.

Como tenho alguns grupos digitais onde estou inserido, ainda mais alimentei a minha azia e mergulhei mais um pouco na frustração e incredulidade. Os comentários deste ou daquele que descreviam as suas opiniões pareciam me todas disparatados e embora eu soubesse que se ligasse a televisão ainda ia ser pior, está claro que o fiz e claro está que me senti ainda pior.

Tentei-me distrair e consumir uma série qualquer mas conforme as imagens passavam menos atenção recebiam de mim. Fui dormir. Ou pelo menos tentar.

Acordei pesado e embora menos zangado a caminho da conformação, a minha motivação para trabalhar não estava nas melhores condições e pensei até que nada me iria aparecer como assunto para escrever.

Começaram a chover na minha cabeça inúmeras desculpas para enviar à minha chefe. “Não tenho tempo esta semana”, “dormi muito poucas horas”, ou melhor ainda, “os meus filhos estão doentes”, esta que seria uma desculpa indesculpável, mas indetectável.

Conforme a manhã ia passando fui-me dando conta da estupidez que era ficar aziado com um evento desportivo (ok, pronto foi um jogo de futebol), e que isso mais depressa seria a superfície de algo mais profundo.

Toda esta energia era consequência da minha personalidade básica, em que algo que eu valorizo corre mal e começa a salpicar para os outros lados que compõem o meu dia.

Nela estão os meus traumas de infância, todas as vezes que não pude exteriorizar as minhas emoções e a recorrência que a raiva tem na minha vida. Está lá, como traço de personalidade, uma enorme dificuldade em lidar com essa emoção primária. E mesmo a procura de fontes para lhe dar gasolina é algo que observo fazer parte deste cardápio reactivo e habitual. Faz parte de mim, o que não é o mesmo que dizer que é quem eu sou.

A minha personalidade anda muitas vezes em paralelo com uma outra coisa que por vezes não é fácil de explicar, que é o carácter. Se a primeira me remete com facilidade para um lugar onde não quero estar, é o carácter que me lembra do compromisso, da maturação e profissionalismo.

O carácter, na minha opinião, é totalmente construído por nós e por aquilo que nós escolhemos valorizar, e é também ele que nos lembra que conseguimos mentir a toda a gente menos a nós mesmos. Tentar enganar-nos só leva a piores sensações emocionais.

No meu carácter aparecem umas palavrinhas que me conseguem trazer de volta ao caminho da mente mais sã. Elas são algo como, “tu consegues se quiseres”, “o que estás a sentir já passa, se quiseres”. É uma voz bastante mais dócil do que a minha personalidade quer.

É preciso é querer. E a questão é simples, prefiro ficar raivoso cujo gatilho foi uma derrota de uma equipa que eu apoio, mas nem sequer lá jogo e não tenho controlo absolutamente nenhum no que toca a resultados, ou é melhor realizar que isto nada tem a ver com o gatilho, mas sim com a perpetuação de emoções mal resolvidas?

Imagino que possa haver pessoas com reacções ainda piores que a minha que foi, no fundo ficar zangado, dormir, acordar e escrever sobre o meu estado mental. A essas pessoas com reacções mais nocivas para si ou para outros, venho aqui lembrar que a raiva dá cabo de nós.

Ainda ontem de manhã a minha filha na sua já sábia leitura das minhas expressões faciais e sonoras, pergunta-me enquanto veste o seu casaco para ir para a escola, “Pai ´tás zangado?” e isto dói. Dói, porque é verdade. Eu estou zangado muitas vezes e lido muito mal com isso. Às vezes respondo que não, outras vezes respondo que sim, mas não com ela. O meu carácter não deixa, os valores e universo onde quero que a minha filha cresça não se compadecem com instabilidades emocionais. Isto não quer dizer que não falhe e por vezes redondamente.

A verdade é que quando ela me pergunta isso, embora doa, pouco depois fico melhor, porque lembro-me que o tempo é curto demais para me perder num moinho de negativismo.

Se calhar podia ter escolhido ser adepto de uma equipa que ganhe mais vezes. Mas como disse, não é por aí, o estado momentâneo em que fico é bastante mais antigo do que qualquer jogo de futebol do Sporting.

Não pode é servir de desculpa para se lá ficar. Esse é que é o verdadeiro embate em que eu, frequentemente, me observo estar a jogar. O jogo entre a personalidade e o carácter. Entre a vontade de nada fazer, porque tenho um problema crónico e a escolha que faço em manter os compromissos que assumo, rumo ao calejo que isso me dá.

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