(…Curioso como em cada esquina, em cada pessoa, me parece reconhecer um daqueles com quem me encontrei ao longo da semana passada, lá no norte, tão longe daqui! …) .
Assim pensava Letícia, ao caminhar a passo rápido para a Faculdade, e sorrindo, ao cruzar-se com tanta gente desconhecida…
Voltava agora às aulas, depois de uma fantástica experiência na sua primeira ‘Missão País’ e tinham-na avisado que seria como deixar o Monte Tabor, e voltar à rotina diária. À sua volta nada tinha mudado, fora ela, apenas ela – e cada um dos outros que lá tinham estado!- que tinham mudado.
Interiormente olhava tudo com um olhar diferente, como se com óculos novos, ou como se os seus olhos fossem outros…como era possível no espaço de uma semana sentir-se uma outra Letícia?
Lembrou-se então de como os pais lhe tinham relatado algo de semelhante, alguns anos antes, quando tinham ido a Israel com uns casais amigos que os tinham desafiado para peregrinarem à Terra Santa. Lembrava-se da conversão dos pais, que por essa altura viviam mais uma crise no seu casamento, que até então sofrera vários altos e baixos.
Letícia fora sempre a filha tão desejada e por isso muito mimada e protegida… os pais tinham perdido três bebés seguidos durante as gravidezes, o que muito abalara a saúde física da mãe e a saúde psicológica dos dois. Por fim nascera Letícia, apenas com oito meses de gestação e cujo nome fazia jus à enorme Alegria dos pais e Avós!!!
Sabia que os pais viviam para ela e se mantinham unidos por causa dela, o que lhe dava uma sensação por vezes de ‘prisão dourada’. Nada lhe faltava, a mãe deixara o trabalho profissional fora de casa, quando das gravidezes seguidas, apenas dava umas explicações para ter o seu próprio dinheiro, e o pai era um empresário de sucesso. Todos os dias os avós maternos almoçavam com eles, porque viviam no mesmo prédio de luxo. Letícia sentira até àquela peregrinação dos pais, há cinco anos atrás, que se vivia como que um ambiente artificial e triste lá em casa. Todos dependiam dela. Todos demasiado debruçados e ‘focados’ nela, dependentes da sua saúde e alimentação, dos seus êxitos nos estudos e no desporto, das suas amizades e namoricos. Das horas de chegada e de saída de casa, sufocavam-na , com a melhor das intenções, e sem darem conta, não a deixavam crescer…
Quando os pais tinham regressado, haviam-lhe contado muita coisa, entre elas a subida e descida do Monte Tabor, em pequenos jeeps a velocidade estonteante, numa estrada cheia de curvas (‘parecia mesmo aquela estrada do Luso, sabes?’). Contaram-lhe que o guia israelita e o sacerdote católico que os acompanhavam, várias vezes lhes tinham dito, convictos, que também para eles, peregrinos, se voltaria a cumprir a passagem do Evangelho (‘ que bem se está aqui, Senhor! Façamos três tendas…) ’e sim… já prestes a terminar aquela semana de peregrinação, já no aeroporto de Telavive, enquanto esperavam sentados em cadeiras afastadas, o pai e a mãe, tal como outros companheiros de viagem, tinham pedido para se confessar ao padre da sua paróquia que os acompanhava… assim acontecera por entre lágrimas, indiferentes à presença de outros passageiros estrangeiros.
Confissões de pé, ou sentados a sós com o padre, igualmente emocionado, em cadeiras mais afastadas, no meio das bagagens de mão e do ruído do aeroporto. Tinham sido muitos a sentir necessidade de mudança e saudade de deixar para trás o Monte Tabor e tudo o resto. À chegada, Letícia bem notara um brilho novo nos olhos dos pais. Vinham de mão dada, quando os fora esperar, cheios de uma alegria contagiosa e desde então, muita coisa mudara para melhor lá em casa.
Agora era a vez de Letícia viver a mesma experiência!
À hora do almoço o seu grupo de colegas já tinha marcado encontro. Era importante não perder o élan! Queriam combinar como actuar para levarem a sua alegria a outros, e no seu pequeno grupo, naquele dia, era suposto já levarem ideias.
Letícia lembrara-se de que era possível fazer alguma coisa não só em sua casa com a sua família, mas também na Universidade com outros colegas mais distantes e até no prédio, pensando numa vizinha pouco acessível, de muita idade, médica, que vivia sozinha. Sem família, sem amigos, sem visitas, e pensara também num senhor de muita idade que vivia no prédio em frente e apesar de tão frágil e sempre sozinho, vinha diariamente ao café da esquina, comprar o jornal, e depois, sempre arrastando os pés, apoiado numa bengala, levava as migalhas do bolo inacabado para dar aos pombos à porta de casa.
No final das aulas da manhã encontraram-se os seis jovens. Estava um dia frio, mas de sol radioso. Tinham decidido fazer um picnic lá fora nos jardins da Faculdade.
Letícia e os seus amigos pegaram numa viola e cantaram algumas das músicas da sua Missão País, depois cada um contou a reação das respetivas famílias à sua chegada e falaram da sensação comum a todos de trazerem uma enorme alegria para comunicar a outros, assim como a clara impressão de agora olharem em volta com olhos novos…
‘Até as aulas de hoje me soaram diferentes, ó pá! Ouvi tudo com ouvidos novos…mano!’
‘Também me aconteceu o mesmo, meu!’
‘…Olhem e eu que nunca estava atenta com aquela chata, afinal até já me parece que ela é bem porreira…’
Rindo e conversando, combinaram novo encontro no dia seguinte, pois estava na hora de regressar ao trabalho…
Letícia magicava já numa carta para enviar à vizinha inacessível… (…talvez um simples cartão anónimo a dizer ‘Gosto de si!’. Para suscitar nela, mesmo sem ver, um breve sorriso naquela cara sempre dura…há quanto tempo não ouviria essas palavras – gosto de si? Tinha lá em casa uns postais daqueles artistas com alguma deficiência que pintavam com a boca e os pés e ia escolher um com uma paisagem bonita. Talvez pudesse pôr o envelope na caixa do correio com um bombom. Sem assinar de momento…começaria assim, semanalmente, uma mensagem… para quebrar o gelo! Isso mesmo, Letícia! Depois, um dia, bater-lhe-ia à porta…)
A Missão País mudara-a muito. Letícia compreendia agora claramente que vivera anestesiada e fechada sobre si própria. Descobrira finalmente, aos 19 anos, que não era ela, nem os seus caprichos, o centro do mundo. Percebera no contacto com os mais velhos, muito pobres e solitários, naquelas terras distantes de tudo e de todos, nos muitos pequenos e grandes serviços prestados, nas visitas que lhes fizera, em tudo o que ouvira ao padre e aos colegas, nas novas amizades com gente tão diferente, na experiência deveras cansativa mas fantástica que vivera, que nascera para levar uma outra Alegria – afinal a verdadeira ‘laetitia’- aos outros…porque tinha muitos à sua espera… e não podia perder tempo…


