Estava um sol abrasador, apesar da brisa que chegava à aldeia . O tempo aquecera repentinamente. A manhã passara rapidamente. Eram já horas de almoço!
Luísa saiu do supermercado carregada com sacos e ao arrumar tudo no porta-bagagens, viu-a caminhando, lentamente, na sua direção, coxeando, apoiada numa bengala e vestida de branco com um grande chapéu de palha. Conhecia-a de vista há muito tempo e sabia que tinha um filho doente. Nunca se tinham falado. Resolveu oferecer- he boleia até à estrada onde ela morava, que até lhe ficava em caminho. A senhora agradeceu, um tanto surpreendida. Apresentaram-se e logo ali se estabeleceu uma relação de simpatia espontânea e aquela mãe africana, em confidência natural, como se se conhecessem de toda a vida, contou- lhe como receava pelo futuro de seu único filho…
“… sim, a senhora já deve ter visto aquele rapaz grande, sempre a andar aí pela berma da estrada, ou sentado nas paragens de autocarro, com olhar perdido… ? É meu filho, pouco fala, parece uma criança grande… mas já tem 40 anos e é a minha grande preocupação! Eu não sei o que será dele, quando eu partir deste mundo e já tenho 86 anos… a senhora não pode imaginar… ele era o melhor aluno da escola onde estava, e também estava a trabalhar num restaurante para me ajudar; todos gostavam muito dele, mas um dia, uns colegas e amigos organizaram um almoço lá no restaurante, e por maldade, ou por gozo, nem sei dizer…a certa altura, mandaram-no ir buscar qualquer coisa, e quando ele voltou e se sentou à mesa, deram-lhe não sei o quê a beber, ou a comer… nunca soube o que foi, mas logo ali se sentiu muito mal, a boca e estômago a arder… só sei que deram-lhe cabo da saúde… e a cabeça dele avariou para sempre…os médicos não puderam fazer nada! Aquilo foram as más companhias e diziam-se amigos…mas eu estou certa que Aquele que está lá em cima não dorme…”
Luísa sentiu muita pena daquela mãe tão só, velha, cansada e amargurada. Não percebeu exatamente o que teria acontecido… talvez nem ela já soubesse explicar muito bem, mas o que ali corria na aldeia é que tinha sido tudo um problema de drogas. Despediram-se e Luísa arrancou com o carro, deixando a senhora à porta de sua casa. Poderia fazer alguma coisa por aquela mãe e seu filho? Tinha de averiguar…não queria esquecer-se…
E a caminho de casa, Luísa lembrou- se de outras mães e pais com filhas e filhos igualmente desencaminhados por más companhias, tantas vezes ‘apanhados’ num convite de amigos, aparentemente inocente…
“…bora lá, não sejas betinho, experimenta! Vem daí connosco! Só uns copos e uns charros…Vais ver como vais gostar! Não digas nada em casa…ninguém vai saber! Esta noite ficas connosco…”
Luísa fora professora até há bem pouco tempo numa escola pública…gostava de conversar com os alunos e de os observar nos seus grupos alegres e ruidosos, fora das aulas! Sempre sentira que ser professora era também ser educadora e era mais do que transmitir conhecimentos científicos…às vezes até gozavam com ela por ser tão preocupada… e alguns colegas diziam:
“ Deixa lá, Luísa, tu não és mãe deles… os pais que os aturem e eduquem…”
Luísa porém, nunca pensara assim. Estava ali para ajudar os seus alunos a crescerem bem e a colaborar com os pais!
Lembrava-se de ter visto muita coisa ao longo dos seus anos de trabalho em diferentes escolas: gente miúda que ia estudando, brincando e crescendo, aparentemente de forma tão pacífica, mas que se transformava, do dia para a noite, ao chegarem à adolescência… alunas de 16 anos e até mais novas, que apareciam grávidas de namorados imberbes… e ali se desencadeavam grandes dramas e autênticas tragédias, que muitas vezes se traduziam em abortos e abandono escolar; alunos que bebiam e entravam em coma alcoólico, quinta ou sexta-feira à noite… e os pais muito convencidos de que eles estavam em casa a dormir, ou em casa de algum amigo, até receberem telefonema do hospital; outros que apareciam com uma grande ‘pedrada’ , estendidos no chão, à porta da escola, em manhãs de aulas… muitas vezes eram filhos de pais com situações familiares complicadas, outras vezes eram apenas filhos muito mimados, a quem desde pequenos, ninguém dissera ‘não’, nem estabelecera regras ou limites… mas também se lembrava de alunos que vinham ter com ela e com outros professores, a pedir ajuda, porque viam colegas em sofrimento e não sabiam o que fazer… e recordava- se ainda, de ter encontrado pais heróicos, atentos e preocupados, quantas vezes extenuados pela dureza da vida, mas que se juntavam para falar com a direção da escola e pediam palestras e cursos de Orientação Familiar com gente bem preparada para lhes ensinarem como atuar, como educar melhor e defender seus filhos…
No último ano antes de se reformar, Luísa ainda se lembrava bem do grande escândalo da abertura de uma loja de conveniência, de porta aberta, noite e dia, mesmo em frente à entrada principal da escola, com máquinas onde se podiam comprar preservativos e outros ‘artigos’ sexuais, no meio de inocentes bebidas e ‘snacks’; ali bastava pôr uma moeda nas máquinas, ou utilizar um cartão, e os produtos ficavam disponíveis… quando os pais da escola tinham dado conta do livre acesso de seus filhos a tudo aquilo, alguns tinham-se reunido com a Direção e queixado, e tinham mesmo organizado abaixo-assinados de moradores para a Junta de Freguesia e Ministério … mas em vão …a loja lá continuava, dando mostras de ser um grande negócio…e uma perdição para tanta gente jovem…
Ao chegar a casa, embrenhada nestes pensamentos, Luísa buzinou e pediu ajuda para descarregar as compras…logo apareceram vários netos. Todos andavam muito atarefados a ajudar a preparar a casa para a festa familiar do dia seguinte. E Luísa, ao vê- los, deu graças a Deus por aquela família…mas por breves momentos sentiu como que uma pergunta a ensombrar-lhe o pensamento…que seria dos seus queridos netos, quando crescessem? E se mudassem? E se os amigos os desviassem…?
Mas não era dia para preocupações…
Com maior, ou menor boa vontade – era verdade – naquela manhã, pais e filhos lá estavam todos a ajudar… um acabava de pintar o poço com o avô, outras lavavam as louças e os vidros das janelas, outros ainda transportavam cadeiras, mesas e chapéus-de-sol…até os mais pequenos com um panito de pó fingiam limpar o pó e as teias de aranha na porta da rua…e em agradecimento, a avó Luísa fora buscar pizzas e gelados para todos comerem sentados lá fora no jardim!
Com um grande sorriso, mostrou-lhes o que trazia e chamou-os a todos:
“ Meninos, toca a comer e a descansar…”


