O Teatro do Aloés apresenta nos Recreios da Amadora a peça Os Rústicos, de Carlo Goldoni (1707 – 1793), uma comédia em três actos, considerada a obra-prima deste fabuloso dramaturgo italiano e que contém «algumas das mais belas cenas do teatro cómico de todos os tempos».
Em cena até 3 de dezembro na Amadora e de 13 a 15 de dezembro na Academia de Artes do Estoril.
A encenação e a tradução da peça tem a assinatura de José Peixoto, com a assistência da atriz e encenadora Elsa Valentim. Juntos, deram vida às personagens através de um elenco de luxo marcado por nomes sonantes como a própria Elsa Valentim. André Nunes, Carla Chambel, Jorge Silva, Marco Trindade, Marques D Arede, Patrícia André, Rodrigo Machado, Victor Santos e a revelação da talentosa jovem Mariana Lobo Vaz – cuja personagem Margarita é o centro do enredo –, compõem o elenco.
Esta sátira trata das relações inter-geracionais, igualdade de género e violência doméstica e o que torna esta obra destinta é a narrativa escrita. Segue a linha tradicional da comédia de enganos, equívocos e mal-entendidos.
A ação situa-se no Carnaval, em Veneza, onde ressalta uma revolução de costumes para a qual os personagens mais conservadores deixam de ter argumentos para resistir. Com realismo e humor, sensibilidade e ironia, a guerra dos sexos e a resistência à mudança por parte dos homens e a luta constante das mulheres pela afirmação e liberdade. No entanto, elas conseguem mudar a mentalidade dos homens rústicos.
O Teatro dos Aloés implementa uma política de sustentabilidade na gestão dos seus recursos cénicos. Na montagem de Os Rústicos, a companhia reutilizou elementos cenográficos, figurinos e adereços de produções anteriores, contribuindo para a redução do impacto ambiental.
Desde 1914, os Recreios da Amadora têm sido um espaço de encontro para as artes do espetáculo, afirmando-se como um importante ponto cultural na cidade. Este equipamento cultural, pertencente à Câmara Municipal da Amadora, apoia e promove diferentes produções artísticas, como por exemplos, do Quorum Dance Company e do Teatro dos Aloés, entre outros.
Com uma programação diversa, o espaço busca atender públicos variados, refletindo a natureza multicultural da cidade e oferecendo aos seus visitantes a oportunidade de desfrutar de uma ampla gama de espetáculos e iniciativas culturais desde o teatro, dança, musica e cinema.
Entrevista
Os actores em entrevista comentam a sociedade de Veneza no séc. XVIII, revelam como a “igualdade de género é uma discussão antiga, permanente e crucial”.
Numa época em que a igualdade de género e a violência doméstica estão no top dos temas mais falados, qual é a mensagem principal que passam para o público?
André Nunes: Em primeiro lugar, penso que a peça demonstra que há temas sociais e conflitos que são circulares, que se repetem. Mas já no séc. XVIII, num local avançado para a época, havia mentes conservadoras. E no outro lado, as mulheres e a sua luta constante pela afirmação e Liberdade. E apenas com os seus argumentos e sentimentos elas conseguem mudar a mentalidade dos homens Rústicos. Portanto, no fundo fala da nossa capacidade de mudança e na nossa humanidade.
Carla Chambel: No dia 25 de novembro em que se assinalou o Dia Internacional para a Eliminação da Violência Doméstica, estávamos em cena. E no 3º ato vemos os homens a discutir entre si como irão castigar as mulheres depois de terem agido nas suas costas. As ideias avançadas vão desde a reclusão à aniquilação, passando pelo cacete e outras repressões. Mas rapidamente se demovem e percebem que nenhuma dessas será a solução. O Goldoni através do exagero expõe as mentalidades e o público ri deste extremo, mas também tem a oportunidade de ver de fora, de analisar, refletir, o quão ridículas são cada uma das opções. A verdade é que algumas delas são reais nos dias que correm, por isso o teatro pode também ter este papel transformador, de análise dos comportamentos, para que construamos uma sociedade mais justa, com mais respeito entre os pares.
Elsa Valentim: A igualdade de género e a violência domestica estão no top dos temas mais falados, não porque sejam novos, mas porque finalmente estão a deixar de ser tabu. A velha formula de que “entre marido e mulher ninguém mete a colher” vigorou pacificamente por milénios e só agora em pleno sec. XXI começa a ser desmoronada, pelo menos no Ocidente. Não nos esqueçamos que numa boa parte do mundo as mulheres continuam a não ter acesso a direitos básicos de liberdade e de dignidade. Na minha opinião a função do Teatro não é passar mensagens mas colocar criadores e espectadores a reflectir sobre o mundo, a “verem-se ao espelho” quando ficamos frente a frente com a imagem refletida do nosso semelhante numa determinada circunstancia, temos a capacidade de nos colocarmos na sua pele, de sentir empatia e eventualmente modificar alguma coisa no nosso comportamento. Se chegarmos ao público desta forma, teremos atingido o nosso propósito.
Patrícia André: De uma maneira leve, pegando neste texto do sec XVIII, mostramos como a igualdade de género é uma discussão antiga, permanente e crucial!
Rodrigo Machado: Fazer este texto nos dias de hoje, tem muito que se lhe diga. É preciso sensibilidade para perceber que por mais genial que o Goldoni possa ser, falamos sobre violência doméstica. As palavras ditas pelos homens rústicos desta peça já eram, presumo eu, difíceis de ouvir no século XVIII e hoje em dia podem cair no erro de serem mal recebidas pelo público, é uma linha muito ténue. Tentámos ridicularizar estes homens, para que, aos olhos dos espectadores, os rústicos da vida real possam ser diminuídos e perder a força que, sem compreendermos como, ainda lhes resta numa sociedade tão avançada como parece ser a nossa. Se lidarem com situações de violência doméstica, ou assistirem a alguma, tentem sempre expor o agressor, para que possa ser diminuído e derrotado como as personagens desta peça.
Vêem a peça como uma sátira eclética?
André Nunes: Sim, penso ser um texto muito à frente do seu tempo, com variados e sofisticados truques humorísticos e diálogos versáteis. As personagens têm mais densidade do que aparenta. Revelando um grande conhecimento das pessoas daquela época por parte do Goldoni.
Carla Chambel: Poderá ser uma sátira eclética no sentido de criticar vários aspectos dos costumes e atitudes da época. Expõe a burguesia no expoente máximo dos negócios e dos interesses acima do amor e das relações afetivas, critica a igreja leviana, a nobreza decadente, mostrando que todos têm telhados de vidro. No entanto, também mostra que é possível o bom senso, a conciliação, apelando aos valores da empatia e de uma sociedade mais igual entre os géneros.
Patrícia André: Nesta peça, não só os homens são Rústicos, mas também as mulheres não são isentas de defeitos: são vaidosas, egoístas, mexeriqueiras. Goldoni com o seu olhar apurado sobre a sociedade, põe a nú as imperfeições do Homem, seja Ele homem ou mulher…
Rodrigo Machado: Como actor, com certeza que consigo encontrar papéis mais desafiadores que o meu. Como espectador diria que todas as personagens de “Os rústicos” são necessárias.
Consideram algum papel mais desafiador ou têm todos a mesma importância?
André Nunes: Todos são importantes para a trama, mas claro que há uns mais desafiantes que outros. Até pela carga de texto. Como se costuma dizer: não há pequenos papéis, apenas pequenos actores.
Carla Chambel: Cada papel nesta peça representa um espectro da sociedade burguesa da Veneza do século XVIII e fazem contrapontos entre eles. A Marguerita é a mais sensível e honesta, a Marina é a mais reprimida e por isso tem os seus vícios, a Felice é a voz da modernidade e a Lucietta é a jovem irreverente. Já nos homens temos um Lunardo severo e antipático, um Simon avaro mas com sentido de humor, um Maurizio amargo, um Canciano sensato e tolerante, um Filipetto inexperiente e um conde Riccardo que representa a nobreza decadente que se pendura numa sociedade capitalista.
O grande desafio foi dar-lhes humanidade, porque os rústicos também se emocionam e as mulheres são dissimuladas para conquistarem os seus objetivos. No caso da Felice, que eu represento, o grande desafio foi construir com o André Nunes (Canciano) um casal que se admirasse e que fosse realmente moderno. Representar uma Felice mandona e um Canciano banana seria muito redutor. O Canciano é o homem mais decente nesta história, o que admira a mulher pela fibra que tem. A Felice gosta do seu marido e valoriza-o publicamente. Curiosamente, à vista dos homens e também das mulheres, o Canciano é um cão rafeiro, quando na verdade é o que pratica uma relação mais equilibrada.
Patrícia André: Todos os personagens têm um papel específico nesta trama, logo todos são únicos e importantes.
Rodrigo Machado: Como actor, com certeza que consigo encontrar papéis mais desafiadores que o meu. Como espectador diria que todas as personagens de “Os rústicos” são necessárias.
Como se preparam para um papel?
André Nunes: Descodificando o texto – o que a personagem diz. Estudando as suas ações e os seu comportamentos. É uma mistura de busca das nossas memórias e imaginação. Assim se cozinha este novo ser.
Carla Chambel: A época veneziana do século XVIII é muito rica em livros, pinturas, documentários, filmes, que retratam os costumes e nos ajudam a compreender alguns pormenores da peça. Inspiram-nos também na fisicalidade dos corpos e comportamentos sociais. Depois, tratando-se de uma comédia, o rigor dos tempos e do ritmo da peça é fundamental para construir a partitura do espetáculo, daí a importância da intensidade dos ensaios, para encontrar soluções felizes, principalmente quando estão muitos atores em cena. A descoberta do jogo entre os atores é a fase mais empolgante do processo. Por último, a fase dos pormenores, a afinação dos pequenos momentos que falam para além do que é dito, que traduzem várias camadas do personagem.
Patrícia André: Primeiro que tudo, gosto de saber o que o encenador pretende com a peça e depois qual o papel que desempenho nesse objectivo. Assim, parto para o texto com essa ideia do que existo com um propósito. Quando este não é definido à partida, encontro-o através do texto ou do próprio jogo encontrado em cena. Gosto particularmente de pesquisar sobre a época em questão, costumes, vícios e especificidades para me alimentar o jogo em cena.
Rodrigo Machado: Depois do trabalho de mesa e da dramaturgia passada pelo encenador. É começar a pensar na personagem em casa, discutir ideias, trocar opiniões e ensaiar para perceber o que é que serve a personagem e a peça.
O que sente um actor/actriz ao ouvir o primeiro riso e a primeira gargalhada da plateia?
André Nunes: É um bálsamo para o actor. Sentimos que o publico está connosco. E por vezes somos surpreendidos nas zonas do texto onde se riem, não é o que esperávamos.
Carla Chambel: Quando o público está connosco costumamos dizer que é um público quentinho. Quem está nos bastidores a acompanhar o que se passa em cena torce pelos colegas. Quando temos a primeira reação, todos nós cá atrás vibramos, celebramos. Cada dia é diferente e o público reage na maioria às mesmas situações, mas por vezes somos surpreendidos por reações inesperadas. E isso também é muito divertido. A reação do público neste tipo de espetáculo influencia-nos positivamente a energia, como que nos galvaniza, sem contudo perdermos o chão e o rigor. Quando o público reage é como se tivéssemos a confirmação do nosso trabalho, que escolhemos o caminho certo, e claro que isso nos dá confiança, alimenta a auto-estima do espetáculo.
Patrícia André: Uma sensação de realização quando acerta numa altura em que se esperava uma gargalhada ou uma enorme surpresa quando é em sítios onde não se esperava de todo! O que acontece a maior parte das vezes!
Rodrigo Machado: Sendo esta peça uma comédia, as gargalhadas são quase como um boost de oxigénio para os actores. Aquilo que sinto ao ouvir a primeira gargalhada é quase como o disparo de partida numa corrida de 100 metros. “Ok, começou agora, bora lá”.
O que sentem quando acaba o último acto? E no último dia em cena?
André Nunes: O último acto é o culminar de várias emoções, a recompensa são os aplausos do público. Felizmente estes aplausos não têm corte de 25% do Estado.
Carla Chambel: A beleza e a tragédia do Teatro é ele ser efémero. Cada dia é único e, no fim do espetáculo há um misto de emoções: alegria, satisfação, alívio, prazer, gratidão, extenuação. No último dia em cena tudo isto ainda é mais intenso. E faz-se o luto ao desmontar o palco e ver a plateia e o palco vazios. Faço sempre esse ritual. Não me vou embora sem ver o fim do percurso. Ajuda a fechar o processo. Só lamento que as carreiras dos espetáculos sejam cada vez mais curtas, questionando a razão de tanto trabalho e investimento.
Patrícia André: Depende das peças e dos espectáculos, mas geralmente uma sensação de dever cumprido misturada com um toque de luto.
Rodrigo Machado: Cada projecto tem o seu processo. Mas no geral, para mim, é sempre nostálgico chegar ao fim de cada espetáculo, porque a consequência é que estamos cada vez mais perto do fim da temporada.
Uma mensagem que os actores queiram deixar ao vosso público
André Nunes: O último acto é o culminar de várias emoções, a recompensa são os aplausos do público. Felizmente estes aplausos não têm corte de 25% do Estado.
Carla Chambel: Um agradecimento a todos os que já tiveram a oportunidade de nos ir ver aos Recreios da Amadora. A cidade precisa da prática cultural, de público a encher a sala, para que mais e mais espetáculos possam continuar a agitar as emoções. E se gostaram, agradecemos que sejam também agentes da cultura passando a palavra. Aos que ainda não vieram podemos garantir um serão bem disposto, divertido, cheio de movimento e reviravoltas, com espaço para uma lagriminha no canto do olho para os mais sensíveis.
Patrícia André: Ainda falta uma semana. Venham ver-nos, estamos até dia 3 dezembro nos Recreios da Amadora e depois 13, 14 e 15 de dezembro na Academia de Artes do Estoril.
Rodrigo Machado: Venham ter connosco. Venham ao teatro!
A actriz e encenadora Elsa Valentim referiu-se à comédia como “é para se fazer todos os dias”. É uma idiossincrasia mútua?
Elsa Valentim: Não tenho a certeza de ter percebido a pergunta … não me lembro em que contexto fiz essa afirmação. Fazer todos os dias a denuncia da violência contra as mulheres? Ou em relação a ser necessário rodar muitas vezes a comédia para que ela encontre o seu ritmo? Em todo o caso, sim ambas são necessárias!
É muito importante manter a “chama” do teatro bem viva. O que faz falta ao teatro de modo geral?
Elsa Valentim: Que o estado e os municípios reconheçam a importância do Teatro como catalisador para uma cidadania plena, que estimula o pensamento critico e promove a empatia e a solidariedade. Que coloquem à disposição dos criadores condições de trabalho dignas e equipamentos para que o seu trabalho possa ser usufruído pelos cidadãos. O direito à criação e usufruto da cultura estão consagrados na nossa constituição.
A adesão do público tem superado as expectativas?
Elsa Valentim: As nossas expectativas eram altas! Tínhamos muita fé neste espectáculo e sentimo-nos muito felizes pela maravilhosa adesão do público.