Conto. Estranho encontro

Fátima Fonseca, Professora de Línguas. Especialista em Orientação Familiar

Chovia a cântaros naquele fim de tarde, quando Mathilde, ao fim de quatro horas de espera, saiu finalmente, da consulta no hospital. Desolada, ante a perspetiva inesperada de uma nova cirurgia e de mais uma bateria de exames, Mathilde, como um autómato, caminhou, apressada, até à paragem de autocarro, onde uma pequena multidão se procurava abrigar da intempérie. Não conseguia imaginar-se a ter de passar por tudo o que já vivera, uma vez mais…sentia- se em estado de choque e só lhe apetecia chorar…

A seu lado, um homenzarrão de meia-idade, pobre, pingando água, procurou dar-lhe lugar e Mathilde agradeceu.
Quando pôde, por fim, entrar no autocarro, não havia lugar sentado, e todos os passageiros, molhados, se amontoavam, encostados uns aos outros, procurando caber no pouco espaço do corredor. Os lugares para grávidas, idosos e deficientes já estavam ocupados. De novo, aquele homem grande e pobre lhe fez sinal para que se sentasse, quando na paragem seguinte vagou um lugar.

Mathilde agradeceu, sentou- se e tirou o chapéu molhado, que guardou num pequeno saco de plástico e meteu na carteira preta, deixando à vista o pouco cabelo branco que recomeçara a crescer ainda há tão pouco tempo. Contudo, mesmo quase sem cabelo, Mathilde era uma mulher sexagenária ainda bonita e com um ar distinto. A sua expressão de indizível tristeza também não passava despercebida. Tirou o cachecol molhado e ficou à vista um cordão de ouro ao pescoço, com uma pequenina medalha de S. José, também em ouro e cheia de amolgadelas.

Cansada de hospitais e tratamentos, e profundamente desanimada, fechou os olhos. Era longa a viagem até casa, o autocarro ora andava, ora parava, por causa do trânsito caótico naquele fim de tarde e o bafo quente no interior do autocarro convidava a passar pelas brasas. Quase sem dar conta, Mathilde começou a rezar interiormente e adormeceu.

Em dado momento, apareceu o revisor, tocou-lhe no braço, e ela estremeceu. Estranhou ver o fecho éclair da carteira aberto, mas tirou o porta-moedas e mostrou-lhe o passe. De pé, o homem grande e pobre estava agora mesmo ao seu lado, apoiando as duas mãos enormes e escuras no varão, e sorria-lhe. Mathilde desviou o olhar. O cheiro das suas roupas andrajosas e encharcadas incomodava-a.
Fechou os olhos de novo, distraída.

De repente, lembrou- se que era o Dia do Pai, Dia de S José, e não tinha deixado nada preparado, nem sequer uma sobremesa para o jantar do marido. Os filhos estavam fora no estrangeiro, um a estudar e a outra a trabalhar; tinham telefonado ao pai logo de manhã cedo para o felicitar.
Só Mathilde poderia celebrar aquela data com ele. Mas como poderia chegar a casa e contar as más notícias ao marido, bem mais velho do que ela e a recuperar de um AVC?

Não – pensou Mathilde – naquele dia nada lhe diria… era Dia do Pai e ele tinha direito a sentir alguma alegria… de algum modo, ela tinha de lhe fazer festa…
Quando abriu os olhos, viu que a carteira estava de novo aberta e pensou que se tinha esquecido de correr o fecho éclair. Lá estavam à vista, as receitas dos medicamentos e os pedidos de exames. Tornou a correr o fecho.
Entretanto, a pessoa a seu lado, levantou- se, pediu-lhe licença e saiu do lugar junto à janela, para descer na paragem seguinte. Mathilde logo aproveitou para mudar de lugar, mas o homem grande e pobre sentou- se a seu lado, obrigando- a a encolher- se contra a janela.

Mathilde fechou de novo os olhos, desagradada pela presença do companheiro de banco que, teimosamente, parecia continuar a sorrir-lhe, quando por acaso se cruzavam os seus olhares.
Pouco a pouco, o autocarro ia-se esvaziando.

Aproximava-se agora a paragem junto do supermercado.
Mathilde lembrou-se: e se fosse comprar um gelado ‘Haagen daz’ para o marido? O supermercado ainda estava aberto, talvez até ainda pudesse comprar- lhe uma salada de salmão de que ele tanto gostava e os seus chocolates favoritos- uns ‘after eight’ .

Depois, na verdade, teria que andar um pouco mais a pé até casa, o que não lhe estava a apetecer… agora que já se fizera noite e ainda pingava; além disso, esquecera -se do telemóvel e não gostava de andar sozinha na rua aquela hora, mas chegada à paragem, sem mais hesitações, Mathilde levantou- se de repente, pediu licença ao homem grande, e saiu, atrás de outra senhora que também seguia em direção ao supermercado. Deu conta então, que o homem grande saíra também.
Ao entrar no supermercado, Mathilde olhou para trás, já não o viu e respirou aliviada.
Fez as suas escolhas, dirigiu-se sem demora à caixa para pagar, mas, ao abrir a carteira, por mais que procurasse não conseguia encontrar o porta-moedas. Lembrou – se então do homem grande e pobre do autocarro e pensou de imediato: Foi ele! Roubou-me!

Nesse preciso momento, porém, o homem grande e pobre apareceu-lhe de repente junto à caixa, perguntando se seria dela aquele porta-moedas que acabava de encontrar no chão junto à porta do supermercado. Incapaz de falar, Mathilde ficou como que petrificada e limitou- se a acenar com a cabeça um agradecimento. Pegou no porta-moedas, abriu- o e nada faltava: lá estavam os cartões e cinquenta euros. Entretanto, o homem desaparecera … Mathilde pagou as compras com o cartão bancário, colocou-as num saco e quando chegou à porta, olhou para todos os lados, mas não viu ninguém. Um tanto assustada e intrigada, dirigiu- se para casa apressadamente. Quando estava quase a chegar, viu um vulto no umbral de uma porta e, estremecendo, reconheceu- o, quando ele se lhe dirigiu.

-Não tenha medo, minha senhora, que eu não lhe faço mal! Sim, se eu quisesse tinha-lhe levado tudo o que a senhora tinha na carteira… porque abri o fecho éclair da sua carteira por duas vezes e a senhora nem notou…mas olhe, eu só queria mesmo era pedir- lhe uma esmola… se me quiser dar alguma coisa… Sabe? Eu vim a protegê-la! Em tempos fui carteirista, sim, mas agora já não sou. Vi a senhora sair do hospital e logo percebi que vinha muito triste, …calculei que tem a doença da minha mãezinha, que Deus tem! E ainda por cima com essa medalhinha de S José que tem ao pescoço, eu nunca assaltaria a senhora, mas lá atrás no autocarro vinham dois antigos ‘colegas’ meus de olho em si… eu bem os conheço! E fiz-lhes sinal que se fossem embora… que a sua carteira era para mim e eles respeitam-me.

-Olhe, então muito obrigada por me ter protegido, mas agora o senhor já viu o meu porta-moedas e sabe o que lá tenho. Só quero ir para casa! Olhe, leve tudo…tem aqui cinquenta euros! Leve para si!

-Não! Não! Eu fui carteirista, mas já não sou desde que a minha mãezinha partiu… fiz-lhe um juramento solene que me ia emendar e eu nunca faria mal a quem está doente… além disso, hoje é dia do meu santo protetor …é que eu também sou Zé! Por favor… dê-me só essa notinha de dez euros para eu ir jantar…e já faço uma festa!

-Leve o dinheiro todo e estes chocolates …obrigada, Sr. Zé!

– Obrigado, eu, mas então só levo vinte euros… não quero que a senhora chegue a casa sem nada… outro dia me ajuda de novo, combinado? Eu ando por aí…Boa noite, minha senhora! Desejo as suas melhoras! Olhe e já agora, um conselho: mude de carteira… que esses fechos são muito fáceis de abrir… e uma tentação para os carteiristas! – disse-lhe o homem grande e pobre, com um enorme sorriso.

-Adeus, Sr. Zé! – e Mathilde estendeu-lhe a mão, sorrindo, sem medo.

Seja Apoiante

O Estado com Arte Magazine é uma publicação on-line que vive do apoio dos seus leitores. Se gostou deste artigo dê o seu donativo aqui:

PT50 0035 0183 0005 6967 3007 2

Partilhar

Talvez goste de..

Apoie o Jornalismo Independente

Pelo rigor e verdade Jornalistica