Violência Doméstica. O padrão “comum” do agressor e o conluio do sistema judicial

Bernardo Almeida

Grande Entrevista a Daniela Cosme

Psicóloga com mais de 20 anos de experiência, Daniela Cosme dedicou-se, nos anos mais recentes, a ajudar as vítimas de violência doméstica que, de acordo com a sua descoberta, são agredidas por um perfil padronizado de homens, os narcisistas. Estes, por sua vez, tendem a ser protegidos pelo sistema judicial, que abandona as verdadeiras vitimas, e não poucas vezes, tenta transformá-las em culpadas das suas situações e estatutos.

Como começou este caminho?
Há cerca de seis anos, comecei a dedicar-me ao estudo da Perturbação da Personalidade Narcisista. Criei o meu Instagram e comecei a publicar sobre o modo de funcionamento dos indivíduos no espectro narcisista, as estratégias manipuladoras que utilizam para destruir psicologicamente as suas vítimas, e como usam os filhos para satisfazer as suas necessidades e causar sofrimento à mãe. Abordei também as consequências traumáticas que estas vítimas sofrem, nomeadamente na expressão da perturbação de stress pós-traumático complexo e no desenvolvimento de sintomatologia associada (ansiedade, ataques de pânico, insónia, híper vigilância, ideação suicida, entre outros).

De repente, comecei a surpreender-me com os inúmeros contactos de mulheres a dizerem que o que eu escrevia nos posts era exatamente o que viviam.
Como este tipo de perfil, quando tem filhos, acaba inevitavelmente por estar envolvido em processos judiciais — não falha — devido ao seu carácter altamente conflituoso, é frequente encontrá-los em tribunal. Pela própria patologia, não conseguem manter-se estáveis. Estabilidade, paz e harmonia são, para eles, algo entediante; para se sentirem vivos, precisam de criar conflito.
Também não suportam a felicidade, a espontaneidade e a alegria. Como genuinamente carecem destas qualidades, invejam-nas nas outras pessoas e, por isso, tendem a destruir datas especiais. E, claro, têm empatia nula. Por isso, são frequentemente caracterizados por um perfil malévolo e, consoante o grau do espectro em que se encontram, podem cometer diversos crimes — altamente elaborados, graças ao seu nível de inteligência superior — mas sem escrúpulos nem empatia, o que os torna propensos a cometer crimes, sobretudo sem deixar marcas, que depois são difíceis de provar em tribunal.
Iñaki Piñuel chama-lhes “psicopatas integrados”, pois, socialmente, parecem pessoas normais, com até certos atributos de carisma e charme. Contudo, é na privacidade que todo o desprezo e maldade vêm ao de cima. Raramente tocam nas vítimas (agressão física), pois não precisam: a manipulação destes indivíduos é tão destrutiva que acaba por criar instabilidade nas parceiras e nos filhos. Ou seja, a médio prazo, estas pessoas adoecem psicologicamente ou desenvolvem doenças psicossomáticas.
O contacto com estas vítimas, em contexto de consulta psicológica, trouxe-me um conhecimento cada vez mais aprofundado dos processos em tribunal, uma vez que partilhavam comigo requerimentos dos seus advogados, perícias e pareceres psicológicos. Fiquei chocada como estas mulheres eram desconsideradas e humilhadas e, pior ainda, como as crianças foram traumatizadas e colocadas em risco, nas mãos de progenitores abusivos e agressivos.
Os processos são, essencialmente, dois: Violência Doméstica e Suspeita de Abuso Sexual Infantil Intrafamiliar.

Existe um padrão comportamental que identifique estas pessoas, quer as vítimas, quer os agressores?

Sim, existe um padrão comum. É precisamente por isso que se trata de uma patologia, que pode ser identificada e categorizada clinicamente.
Tanto o narcisista como a vítima são frequentemente produtos de uma dinâmica familiar abusiva e agressiva. Estas dinâmicas tendem a ocorrer em famílias disfuncionais com traços narcisistas — onde ambos os progenitores podem apresentar características de personalidade narcisista ou psicopática, ou em que um é claramente abusivo e o outro assume um papel submisso, permissivo e facilitador do abuso.
Os estudos em psicologia do desenvolvimento e trauma relacional indicam que, quando as crianças crescem em contextos marcados por violência, negligência emocional ou abuso psicológico, esses comportamentos tornam-se internalizados e normalizados. A criança interoriza estas dinâmicas como sendo “o normal” — muitas vezes só reconhecendo, já na idade adulta, que aquilo que viveu foi profundamente disfuncional.
Como refere Judith Herman em Trauma and Recovery (1992), muitas vítimas de abuso desenvolvem mecanismos de adaptação que envolvem dissociação, idealização dos agressores ou minimização do sofrimento vivido, precisamente porque o trauma foi incorporado como parte fundadora da identidade.
De facto, muitos pacientes afirmam que só mais tarde, ao entrarem em contacto com outras realidades ou através da psicoterapia, descobriram que nem todas as famílias eram violentas ou desestruturadas — porque, até então, acreditavam que a violência era uma norma universal.
Ao nível da psicodinâmica infantil, e segundo a teoria da identificação proposta por Freud e desenvolvida por autores como Alice Miller (O Drama da Criança Bem Dotada, 1979), a criança pode, inconscientemente, alinhar-se com uma das figuras do sistema abusivo: identificação com o agressor: a criança interioriza que, para deixar de ser vulnerável, precisa de assumir o papel do agressor — “se eu for o agressor, deixo de ser a vítima”. Esta defesa é muitas vezes a génese de traços de personalidade narcisista, agressiva ou até psicopática.
Identificação com a vítima (salvador): noutras situações, a criança assume a responsabilidade de “proteger” o progenitor mais frágil — normalmente aquele que também é vítima. Esta identificação leva a padrões de co- dependência, autossacrifício e tolerância excessiva ao abuso emocional, o que torna estas pessoas, mais tarde, especialmente vulneráveis a relações abusivas.
O psicólogo espanhol Iñaki Piñuel, especialista em narcisismo perverso, alerta para estas repetições inconscientes: “As vítimas não escolhem os narcisistas — são programadas desde a infância para se ligarem a eles.” (Amor Zero, 2017)
O psiquiatra português Daniel Sampaio, no seu livro “Vozes e Ruídos – Diálogos com adolescentes e pais”, (2008), sublinha precisamente como os padrões relacionais familiares se repetem de forma quase automática, se não forem interrompidos. Refere ainda que muitos jovens repetem os comportamentos abusivos que observaram na infância, seja como vítimas, seja como agressores — perpetuando ciclos de violência invisíveis, mas profundamente destrutivos.
A transgeracionalidade do trauma é também bem documentada. Estudos como os de Bessel van der Kolk (The Body Keeps the Score, 2014) explicam como o trauma pode ser transmitido e reproduzido de geração em geração, caso não haja intervenção e consciência crítica.
Nas dinâmicas familiares narcisistas, é comum que os filhos sejam atribuídos a papéis rígidos e disfuncionais, os 3 papeis principais são: o bode expiatório, o menino de ouro e o menino invisível. Estes papéis não são escolhidos pelas crianças, mas impostos pelo(s) progenitor(es) narcisista(s) com o intuito de manter o controlo, reforçar a sua própria auto imagem inflacionada e projetar a sua disfunção interna para o exterior. Estes padrões têm consequências psicológicas profundas e duradouras para os filhos que crescem neste tipo de ambiente tóxico e manipulador.
O menino de ouro (ou filho dourado) é idealizado e colocado num pedestal. Este filho é frequentemente tratado como uma extensão do ego do progenitor narcisista, sendo constantemente elogiado (às vezes de forma desproporcionada) e usado como exemplo para desvalorizar os outros filhos. Esta idealização, no entanto, é condicional: o amor e a aceitação dependem da conformidade com as expectativas do progenitor. O filho dourado pode desenvolver um sentido inflacionado de si ou, pelo contrário, sofrer internamente com ansiedade, medo do fracasso e crises de identidade, já que nunca lhe é permitido ser verdadeiramente ele próprio.
O bode expiatório é o alvo preferido para todas as frustrações, críticas e projetos de culpa da família. Este filho é frequentemente culpabilizado por tudo o que corre mal, mesmo quando não tem qualquer responsabilidade. O objetivo do progenitor narcisista é deslocar as suas próprias inseguranças e sentimentos de vergonha para alguém “seguro” dentro do sistema familiar.

As consequências para o bode expiatório incluem baixa autoestima, sentimentos de inadequação, depressão e, muitas vezes, dificuldade em estabelecer limites saudáveis na vida adulta. No entanto, em termos psicoterapêuticos é o que mostra mais propensão para a recuperação psicológica.
O menino invisível é aquele que, para sobreviver, aprendeu a tornar-se “invisível”, evitando, conflitos e apagando-se para não atrair a atenção negativa dos pais. Este filho pode parecer calmo e independente, mas sofre frequentemente de solidão profunda, dificuldade em expressar emoções e medo de intimidade. Muitas vezes, são adultos que sentem que não têm “direito a existir” ou que não são dignos de amor e atenção.

O que é a DARVO?
DARVO é uma estratégia de manipulação ao serviço dos agressores, é uma poderosa estratégia de manipulação utilizada por agressores- abusadores para se ilibarem dos crimes que cometem. A sigla em inglês refere-se a:
Deny (Negar), Attack (Atacar), Reverse Victim and Offender (Inverter o papel de vítima e agressor).
Ou seja, o abusador nega os factos, ataca quem denuncia e faz-se passar por vítima, descredibilizando quem tenta proteger os mais vulneráveis.
Imagine uma mãe que, ao tentar proteger os seus filhos de um ambiente hostil, agressivo e/ou abusivo — altamente perturbador — decide apresentar uma denúncia, na esperança de que o tribunal garanta a proteção necessária. O que sucede — e este é um padrão que se repete, não só em Portugal, mas um pouco por todo o mundo, é que o progenitor acusado nega os abusos, ataca a mãe, difama-a, descredibiliza-a, isola-a e vira familiares, instituições e até amigos contra ela. Apresenta-se como vítima: “Sou um bom pai, quero estar com os meus filhos, mas ela não permite. Ela está a alienar. É instável. Não tem capacidade psicológica para cuidar das crianças.”
Para reforçar essa narrativa, contrata um mandatário de perfil agressivo, “pit bull”, que reproduz e amplifica esse discurso nos tribunais, enchendo o processo de requerimentos infundados — muitas vezes em clara litigância de má-fé. O procurador, em vez de investigar os factos com rigor, acaba por acolher essa narrativa, sem o devido contraditório. A entidade cuja missão é proteger as crianças torna-se, assim, cúmplice do agressor e transfere a culpa para a mãe. Os juízes, muitas vezes sem tempo para ler os processos na totalidade, limitam-se a subscrever o que o procurador alega.

Tenho vários casos em que o denunciado nem chega a ser constituído arguido, mas a mãe, sim, porque este abre processos-crime contra ela, por difamação, maus-tratos, etc. sem qualquer fundamento, simplesmente continuando o jogo perverso da violência e do massacre psicológico. E infelizmente, muitas vezes este jogo funciona nos tribunais e as crianças são retiradas das mães com vínculo seguro e entregues aos pais abusadores.

Assim, a estratégia DARVO promove a inversão da culpa, muitas vezes sustentada na acusação de alienação parental contra a mãe protetora. Esta narrativa, quando aceite sem uma análise criteriosa, resulta na re vitimização da mãe e na desproteção das crianças, as partes mais vulneráveis.
A alegação de alienação parental tem sido usada, em muitos casos, como uma ferramenta de silenciamento, obscurecendo a verdadeira dinâmica de violência e abuso. Em vez de proteger, este argumento transforma-se, em certos contextos, num instrumento de manutenção do poder por parte de quem deveria ser responsabilizado.

Quais são as consequências para as mulheres? E para os filhos?
O abuso institucional é uma revitimização, tanto para a mãe como para a criança. De forma geral, qualquer ser humano, ao pedir ajuda — especialmente estas mulheres, já psicologicamente desgastadas — fá-lo na esperança de receber apoio, amparo para a sua dor, acolhimento para a sua história de sofrimento. Tal como uma criança que, quando está desregulada, triste, zangada, com um problema que não consegue gerir, procura um dos pais ou o seu cuidador para ser acolhida e ajudada a regular-se.
Procura uma “mãe boa”. No entanto, o que estas mulheres e crianças encontram é uma “mãe narcisista”: fria, egoísta e conivente com o agressor.
Uma mulher que trabalha 8 horas por dia e aufere pouco mais do que o salário mínimo não tem condições de proteger o seu filho. E sabemos que há mães que trabalham mais de 8 horas e ganham ainda menos — estas não têm qualquer hipótese de proteger os filhos. Tal como o sistema judicial está estruturado, essas mulheres — pelas suas condições socioeconómicas — não conseguem contratar um advogado, e, se tiverem acesso a um nomeado pelo Estado, veem rapidamente o processo encerrado, sendo aconselhadas a entregar os filhos ao abusador. Caso contrário, o Estado poderá aplicar-lhe coimas por incumprimento, que podem ascender aos 500 ou 750 euros por cada incumprimento. Se essa mulher aufere 830 euros mensais, encontra-se de mãos e pés atadas.
Estes processos são longos 3-5 anos e os valores podem rondar entre 30-50 mil euros. Este é preço para salvar um filho e não há garantias de nada.
Trata-se, no fundo, de um negócio. Muitas pessoas lucram com este sistema. Inserido numa lógica capitalista, o próprio sofrimento e o risco a que as crianças estão expostas tornaram-se elementos lucrativos. A dor destas famílias é, para alguns, uma oportunidade de rendimento — transformando a vulnerabilidade em mercadoria.
As que têm capacidade financeira para recorrer a meios legais acabam muitas vezes por ser destratadas, humilhadas, e, mesmo assim, os filhos são entregues aos abusadores. Porque a lei privilegia o direito do pai em detrimento da proteção da criança e porque os profissionais dos tribunais mantêm a crença de que o mais importante é a criança crescer com ambos os progenitores — mesmo que um deles seja agressivo e abusivo.
As consequências são a perpetuação do ciclo abusivo geracional, o agravamento da sintomatologia nas crianças e nas mulheres, e o desenvolvimento de patologias graves.

Porque é que o sistema judicial falha na proteção destas mulheres?
Existem vários fatores. Um já mencionei que é o DARVO, o outro é a questão financeira, e também já referi que tem a ver com um conjunto de crenças machistas e misóginas, altamente prejudiciais na proteção das crianças. Exercidas pelos intervenientes dos tribunais: Policias, (CJPJ, CAFAP, EMAT, SANTA CASA DE MISERICÓRDIA) procuradores e juízes, que têm interesses em comum não de proteger as crianças, mas de se auto-alimentarem financeiramente, retraumatizando as crianças, forçando-as a convívios supervisionados. Há muitos advogados a falar sobre isso que estão mais dentro do assunto do que eu.
Algumas crenças que não nos deixam evoluir e que põem em risco as crianças são: Minimizar a Violência Doméstica “o pai agrediu a mãe, mas isso não quer dizer que não seja um bom pai.” Impacto: Desconsidera a conexão entre violência doméstica e a capacidade de exercer uma parentalidade saudável;

Tratar a Criança como um Objeto “ambos os pais têm direito a conviver com a criança.” Impacto: Trata a criança como um bem a ser dividido, negligenciando seu bem-estar, segurança e necessidades individuais e consequências traumáticas;

Ignorar Denúncias de Abuso “Não há provas de abuso sexual, logo não ocorreu.” Impacto: Ignora a complexidade da revelação de abusos e a dificuldade em produzir evidências tangíveis em casos tão sensíveis;

“Foi a mãe que inventou o ASI para afastar a criança do pai.”  Impacto: Estigmatiza denúncias legítimas, transformando a preocupação materna num suposto ato de manipulação e alienação parental.

Desqualificar Preocupações Maternas “a mãe é que é muito ansiosa, está a precisar de terapia” (demonstrar preocupação). Impacto: Rotula reações legítimas como patológicas, desconsiderando contextos de violência, ameaça ou medo real.

Simplificando as Necessidades da Criança “a criança precisa de um pai e de uma mãe.” Impacto: Reduz as necessidades emocionais da criança a uma fórmula rígida, ignorando a qualidade dos vínculos e os impactos da violência doméstica e do abuso sexual.

Priorizar Direitos sobre Responsabilidades “o pai tem os mesmos direitos.” Impacto: Prioriza a igualdade formal de direitos em detrimento da segurança e do bem-estar infantil, desconsiderando comportamentos nocivos.

Reduzir Vínculos Afetivos a Competição “não é só a mãe que gosta do filho.” Impacto: Simplifica o vínculo afetivo numa disputa de sentimentos, desconsiderando a qualidade e a segurança das relações.
Essas crenças refletem discursos que, ao serem simplistas e descontextualizados, obscurecem dinâmicas de poder, minimizam situações de violência e abuso sexual, comprometendo a proteção integral da criança.

Estes discursos continuam a ecoar em contextos judiciais, ignorando décadas de pesquisa psicológica, sobre o impacto da violência doméstica e do abuso sexual no desenvolvimento infantil.
Não creio que seja falta de informação ou formação destes profissionais, mas sim, falta de ética e responsabilidade.

É só uma questão financeira ou, na sua opinião, existe um conluio narcisista entre o pai e o advogado?
É, primeiramente, uma questão de dinheiro. No entanto, se o advogado tiver também um perfil no espectro narcisista, consciente ou inconscientemente, forma-se uma espécie de “pacto de lealdade” ou de irmandade. Tal como a vítima, se for uma advogada que também tenha sofrido, na infância, violência doméstica (VD) ou abuso sexual infantil (ASI), ou que tenha atualmente um processo-crime, ela adotará uma postura muito mais defensiva. Estas serão as melhores advogadas para as vítimas, pois se tornam muito mais empáticas.
Só o sofrimento ativa a empatia e torna-nos seres humanos mais elevados.

Quantos casos destes conhece? Há algum caso que possa partilhar que represente este estigma?
Infelizmente, conheço muitos casos. Sim, já falei publicamente sobre vários: o Noah, a Eva, o Rafael (filho da mãe Elza) e a Marta. Estes dois últimos têm publicações em vídeo.
O problema é que as mães são intimidadas pelos advogados para não falarem. Instala- se todo um clima de medo e elas ficam paralisadas. Nós incentivamos as mulheres a falar. Elas têm o direito de se expressar — desde que protejam as identidades e as comarcas, podem e devem falar sobre os seus casos. É a única forma de o abuso institucional vir à tona e ser revelado publicamente.
Sabemos que só assim haverá mudança… mas não basta uma; têm de ser muitas mulheres.

Quais são as estratégias por parte do sistema judicial para retirar a capacidade de afirmação às vítimas?
As estratégias são DARVO e alienação parental – que, basicamente, representam sempre o mesmo mecanismo: inocentar o agressor, alegando que não existem provas suficientes para o incriminar, acabando por arquivar os processos.
Ao mesmo tempo, difamam e descredibilizam as mulheres, afirmando que estão a tentar afastar a criança do pai – invocando o a síndrome de alienação parental. Sugiro a leitura do texto “A fraude da síndrome de alienação parental e a protecção das crianças vítimas de abuso sexual”da Juíza Maria Clara Sottomayor que tão bem descreve esta realidade.
A chamada Síndrome de Alienação Parental não tem qualquer validade científica e foi criada por um médico pedófilo, Richard Gardner, com o objectivo de facilitar que pais pudessem abusar sexualmente dos próprios filhos.
Existem situações profundamente dramáticas em que mães apenas querem proteger os filhos de abusos sexuais por parte dos pais e apresentam denúncia — mas nem sequer são aplicadas medidas de afastamento, o que coloca em risco a vida das mulheres e das crianças.
Quando, por vezes, há uma medida de afastamento, rapidamente se iniciam visitas supervisionadas, porque o pai ainda não foi constituído arguido — e, portanto, é legalmente considerado inocente (in dubio pro reo). No entanto, por mais chocante que seja, o pai continua com direito às visitas quando é acusado e incriminado. É ridículo, ninguém entende, mas as crianças são obrigadas a visitar os pais mesmo presos e tendo sido agredidos e abusados por eles. Aqui vemos – o nível de patologia em que nos encontramos -.
Com frequência, os procuradores alegam que “é do superior interesse da criança manter os vínculos com o pai”, ignorando por completo os indícios de violência e abuso.
A juntar a tudo isto, temos ainda uma mentalidade machista, misógina e patriarcal, na qual não há espaço para a proteção nem das mulheres, nem das crianças.

Existirão hábitos culturais enraizados que fazem parte desta forma de aturar?
Com certeza, há 50 anos, a mulher em Portugal era considerada propriedade do marido. Não tinha autonomia financeira e dependia, a todos os níveis, do homem.
Tenho 48 anos e, durante 8 anos da minha vida (dos 8 aos 16 anos), vivi numa pequena aldeia no norte do país, na Beira Alta. E era como se ainda vivesse no Antigo Regime.
A professora da escola batia nas crianças, o que me chocava profundamente. Tinha acabado de chegar de um país muito mais desenvolvido, a Alemanha, onde as crianças não eram tratadas assim.
Outro fenómeno que vivi de perto — sem ter verdadeira consciência do que se tratava — Foi o abuso sexual intrafamiliar.
Ouvia-se dizer, sem eu entender o real significado das palavras: “o fulano tal desonrou a filha”. Era algo comum e, de certo modo, aceite — até porque a mulher, a mãe, pouco podia fazer. Era totalmente dependente do homem e não conseguia proteger as filhas, mesmo quando estas eram abusadas pelo próprio pai.
Até que, um dia, aconteceu com a minha prima. Eu teria uns 12 anos e pedi explicações ao meu pai. Ele, com o seu nível de educação e sensibilidade, lá explicou-me. E eu fiquei muito perturbada.
Só me perguntava: “Porque é que aquela mãe não a protegeu?” Na altura, eu não compreendia a impotência daquela mulher.
Hoje, as mulheres são, felizmente, mais independentes. Podem e devem denunciar.
Mas o problema é que os tribunais não facilitam. Estão ainda presos a uma mentalidade de há 50 anos, onde a mulher que denuncia é vista como mentirosa, conflituosa, e acusada de usar o abuso sexual como vingança contra o ex-companheiro. É um disparate completo — mas é o que se ouve frequentemente nos tribunais.
As mulheres acabam por ser condenadas por difamação, por maus-tratos aos filhos que querem proteger, e não por alienação parental — porque isso ainda não é lei em Portugal.
Mas temo que em breve seja. E, se isso acontecer, as mulheres deixarão de ter liberdade para denunciar. Isso será um problema gravíssimo.
É o que já está a acontecer no Brasil, onde mães que denunciam abusos perdem a custódia dos filhos e acabam por vê-los entregues ao agressor, que continua a abusar
— delas e das crianças.

Se o sistema judicial abandona estas mulheres, o que lhes acontece?

Quando uma mãe é abandonada, desamparada, negligenciada ou violentada — seja física, emocional ou economicamente — não é apenas ela que sofre. Os seus filhos absorvem esse sofrimento, mesmo que em silêncio, mesmo que sem palavras. Uma mãe doente, cansada ou emocionalmente exaurida não consegue oferecer aquilo que uma criança mais precisa: presença, segurança, amor incondicional e consistência. Temos de dar condições dignas às mães!
Quem faz mal a uma mãe, faz mal aos seus filhos. E isto não é uma metáfora — é uma realidade concreta e mensurável nas consequências sociais e emocionais que daí advêm. Ao atacarmos ou ignorarmos as necessidades das mães, estamos a comprometer o futuro de uma geração inteira. Estamos a moldar seres humanos frágeis, ansiosos, por vezes agressivos ou desligados de si e dos outros. Estamos a contribuir para a doença mental, para o desespero silencioso, para a repetição de padrões agressivos.
Socialmente, estamos a perpetuar um modelo disfuncional e violento: o modelo patriarcal, que se alimenta da dor, da hierarquia, da dominação. Neste modelo, em vez de seres humanos íntegros e conscientes, estamos a formar narcisistas — que aprendem a proteger-se atacando, manipulando, dominando — e co dependentes — que aprendem a sobreviver servindo, anulando-se, pedindo migalhas de afeto. Ambos vivem presos num ciclo de guerra emocional constante, onde um precisa do outro para confirmar a sua existência. É a dança da vítima e do predador, perpetuada de geração em geração.
Se quisermos realmente evoluir como seres humanos, temos de começar por cuidar das mães. A sua saúde, a sua dignidade, o seu bem-estar emocional e físico são fundamentais. Porque mães saudáveis criam filhos saudáveis. E filhos saudáveis constroem sociedades mais justas, empáticas e equilibradas. Cuidar de uma mãe é um ato revolucionário. E é, acima de tudo, um investimento no futuro. Todos nascemos de uma mãe.

 Como se dá a volta a toda esta situação?
Para mim, é fácil perceber. Porque existe um padrão comportamental que, uma vez identificado, torna-se mais simples de compreender e trabalhar. Este processo assemelha-se a um processo psicoterapêutico: começamos por reconhecer o padrão patológico — aquele que origina sofrimento — e, a partir daí, inicia-se a desconstrução das crenças que sustentam esse comportamento. Este confronto com a realidade, muitas vezes dura e dolorosa, pode levar-nos a atravessar fases difíceis, como a depressão clínica. No entanto, é precisamente nesse processo que começamos a libertar-nos das ilusões e a funcionar de forma mais autêntica e saudável.
Para isso, é essencial ter coragem. Coragem para quebrar vínculos doentios, para desafiar estruturas internas e externas, e para olhar a vida com isenção e verdade. Só assim conseguimos abrir espaço interior para a empatia — essa capacidade de nos ligarmos ao outro de forma genuína e compassiva.
Jesus de Nazaré, um dos maiores mestres espirituais da história, sintetizou este princípio de empatia na célebre frase: “Ama o próximo como a ti mesmo” (Mateus 22:39). Não se trata apenas de um apelo moral, mas de uma orientação profunda sobre o equilíbrio entre amor-próprio e amor ao outro.
Buda, por sua vez, ensinou que a libertação do sofrimento humano passa pela compaixão e pela renúncia ao desejo egoísta. A sua filosofia convida-nos a cultivar a atenção plena, a não violência e a compaixão universal, como caminhos para uma existência mais consciente e pacífica.
Gandhi aplicou estes princípios à ação política e social, defendendo a ahimsa (não- violência) como forma de resistência. A sua vida demonstrou que é possível lutar contra a injustiça sem ceder à reatividade, transformando o mundo através da paz.
Sócrates, o filósofo grego, é o símbolo do espírito crítico. O seu método — a maiêutica — Consistia em fazer perguntas, questionar crenças enraizadas, e conduzir o interlocutor até à verdade. “Uma vida não examinada é escusado ser vivida”, dizia ele, lembrando-nos da importância da consciência e do autoquestionamento.
Estes mestres, cada um à sua maneira, apontaram para o mesmo caminho: o da consciência, da empatia, da verdade e da liberdade interior. No entanto, enquanto humanidade, parece que ainda estamos longe de integrar plenamente esses ensinamentos. Continuamos presos em ciclos de egoísmo, medo e separação — muitas vezes alimentados por sistemas como o capitalismo, que reforçam o narcisismo e a competição em detrimento da compaixão e da cooperação.
Talvez esteja na hora de voltarmos a escutar. Verdadeiramente escutar. Porque os mestres já nos falaram — só falta, agora, AGIR em conformidade.

Que papel pode a sociedade civil ter?
Sempre que se confrontar com uma situação de violência ou abuso sexual, deve denunciá-la. Calar ou fingir que não vê é tornar-se cúmplice do criminoso. E já sabe: “tanto é ladrão o que vai à horta como aquele que fica à porta.” Aqui, denunciamos os criminosos.
Estes casos devem ser trazidos à luz do dia. Quanto mais falarmos dos abusos que se perpetuam nos tribunais, contando as histórias reais das vítimas, mais indignação e impacto social se gera. E, se o povo reage, os tribunais são obrigados a agir e a travar os abusos. Aqui, denunciamos os tribunais.
Os portugueses tendem a ser submissos, não reagem, evitam reclamar — e esta postura faz com que o abuso se mantenha e se propague. É necessário adotar uma atitude de coragem e de auto-respeito. E sair do egoísmo, do interesse próprio, do capitalismo, ganhando dinheiro e estatuto de como o sistema judicial está montado.

E a Daniela?
Eu sozinha não faço nada, uma revolução não se faz com um cravo. Preciso que outros cravos queiram abraçar esta missão e fazê-la crescer tão grande que espontaneamente se dê o salto quântico para um novo paradigma de pensamento.

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