A coluna de opinião A ARTE da politica é da autoria da Politóloga Sílvia Mangerona.
Um dos exemplos mais emblemáticos de quebra de protocolo foi o denominado caso “Sofagate”, ocorrido em abril de 2021, na Turquia, aquando da receção a Charles Michel e Ursula von der Leyen.
Falar de protocolo permanece, ainda hoje, uma tarefa complexa e frequentemente incompreendida. Tal como recorda a Embaixadora Clara Nunes dos Santos, antiga Chefe do Protocolo do Estado, o protocolo é inerente à condição humana — uma perceção já sublinhada por Talleyrand ao afirmar que “apenas os tolos desvalorizam a sua importância”. Apesar disso, persiste a ideia de que o protocolo constitui uma dimensão acessória ou um conjunto de formalidades e procedimentos dispensáveis.
Esta perceção contrasta com a centralidade real do protocolo nas interações humanas, sociais e institucionais. Enquanto ferramenta da diplomacia, o protocolo contribui decisivamente para a execução da política externa, assegurando a continuidade das tradições dos Estados, a preservação da dignidade dos atos oficiais e a proteção da soberania e da legitimidade das relações internacionais. Nesta medida, assume-se também como elemento estruturante da segurança global.
A análise do protocolo na sua dimensão política — enquanto dispositivo ordenador da polis e da “coisa pública” — permite reconhecer a sua profunda articulação com três conceitos fundamentais: ordem, obediência e segurança. Estes três elementos constituem um triângulo virtuoso, no qual cada vértice depende dos restantes.
Quanto mais claros forem os procedimentos e mais bem definidas estiverem as relações hierárquicas e de obediência institucional, maior será a perceção e a efetividade da segurança. Assim, o protocolo não contribui apenas para a ordem e para a estabilidade, como condiciona a forma como estas se constroem e se projetam no plano político e institucional. Segurança e protocolo trabalham, de facto, lado a lado na proteção de pessoas, entidades e espaços, incluindo hoje novas dimensões, como o espaço virtual e a inteligência artificial.

Para cumprir a sua função organizadora e garantir a eficácia das relações oficiais, o protocolo assenta em três ações fundamentais: a previsibilidade dos atos, a antecipação de constrangimentos e o afastamento de conflitos.
A previsibilidade, enquanto princípio jurídico associado à segurança jurídica, exige o conhecimento prévio das normas e etapas que regem os atos formais.
A antecipação de constrangimentos e o afastamento de conflitos pressupõem a capacidade de identificar, com antecedência, contextos de risco ou de tensão, permitindo ajustar procedimentos, encontrar alternativas e mitigar potenciais incidentes. As equipas de protocolo, confrontadas frequentemente com situações inopinadas, tornam-se especialistas em improvisação orientada pelo bom senso e pela salvaguarda institucional.
A quebra de protocolo pode decorrer de desconhecimento, desorganização, irresponsabilidade ou pode ser mesmo uma ação deliberada e carregada de intencionalidade: positiva, quando visa proteger um interlocutor menos preparado, ou negativa, quando pretende envergonhar, ridicularizar ou transmitir uma mensagem política.
Um dos exemplos mais emblemáticos de quebra de protocolo foi denominado caso “Sofagate”, ocorrido em abril de 2021, na Turquia, aquando da receção a Charles Michel e Ursula von der Leyen. A ausência de um assento de igual dignidade para a Presidente da Comissão Europeia gerou desconforto, interpretações políticas sobre as relações UE–Turquia e leituras simbólicas relacionadas com a condição das mulheres naquele país, tendo em conta a forma como os direitos das mulheres são colocados em causa na Turquia e pela decisão do Presidente Erdogan em sair naquele mesmo ano, um mês antes – em março de 2021 – da Convenção de Istambul. O incidente revela a dimensão política do protocolo e a sua relevância para a diplomacia e para a política externa.
A diplomacia, por sua vez, continua a ser reconhecida como um instrumento essencial da política externa, seja entendida como arte ou como ciência. A Convenção de Viena sobre Relações Diplomáticas (1961) permanece o quadro normativo que orienta a atividade diplomática, conferindo-lhe funções de representação, negociação, informação, promoção e proteção. A diplomacia atua em todas as esferas da política internacional — economia, comércio, cultura, paz e guerra — e constitui um mecanismo estruturante da ordem internacional.
Quando a diplomacia falha, os pilares que sustentam as relações internacionais falham com ela. Compromissos, ordem, obediência e segurança ficam comprometidos, tal como a imagem institucional e o próprio protocolo.
O encontro fracassado entre Donald Trump e Volodymyr Zelensky, na Casa Branca, em fevereiro deste ano, tornou-se exemplo paradigmático de como o desrespeito pelo protocolo pode amplificar tensões políticas e gerar episódios de humilhação pública com impacto global. Este tipo de falha torna ainda mais premente a necessidade de soluções diplomáticas para conflitos que moldam o século XXI, como a guerra entre a Rússia e a Ucrânia.
Num contexto internacional em transformação, emergem também novos protagonistas da diplomacia, numa espécie de diplomacia paralela ou “externalizada”, desempenhada por atores não estatais — empresários, celebridades ou figuras mediáticas. Estes atores podem agregar valor e abrir oportunidades, mas introduzem igualmente riscos relevantes, sobretudo quando os seus gestos são associados a regimes politicamente controversos.
O caso recente da presença de Cristiano Ronaldo na comitiva oficial da Arábia Saudita numa visita à Casa Branca exemplifica os dilemas de representação, imagem e valores que este fenómeno levanta. O debate público que se seguiu revela a crescente complexidade da interação entre diplomacia tradicional, comunicação política e projeção de poder simbólico.
Vivemos, assim, um período de profundas alterações na ordem internacional. Uma nova configuração global — possivelmente multipolar — parece emergir, marcada por novos atores, novos riscos e novas oportunidades. Neste ambiente, a diplomacia e o protocolo mantêm-se indispensáveis na construção de soluções moderadas e na promoção da paz.
O protocolo, na sua relação com a diplomacia, revela-se um instrumento de moderação, de respeito institucional e de preservação da paz: “um facilitador pacifista”.
Protocolo não é tudo, mas tudo se torna melhor cumprindo com o protocolo.


