É sintomático que, nos últimos dias do seu Governo, António Costa, com o seu lendário semblante jocoso, se desdobre em oferendas de facilidades orçamentais ao futuro Governo do PSD.
É injusto afirmar que o Costismo – entendido como o período em que António Costa se manteve à frente do Partido Socialista (PS) – se esgotou na elevação da habilidade político-mediática a atuação central do Estado, sem com isso ter gerado qualquer resultado benéfico para o país para além da estabilidade mofa e do empobrecimento paralisante.
Sejamos justos, o anterior líder do PS, António Costa, fez mais do que isso. António Costa foi o autor de duas alterações sociológicas indiscutíveis na sociedade portuguesa.
A primeira foi a Geringonça. Esta abriu caminho ao que hoje um mediático líder político, instalado no espectro político à direita do Partido Social Democrata (PSD), proclama como “o fim do bipartidarismo” em Portugal. Inicialmente, esta modificação profunda na forma de fazer política debateu-se com críticas indignadas da parte dos adversários políticos e alguma resistência interna. Mas a estabilidade relativa que gerou desembocou na aceitação – ainda que resignada – do modelo, o qual mais tarde soçobrou inevitavelmente nas contradições que encerrava.
A reedição deste modelo, agora à direita do PS, tem-se debatido com dificuldades de outro calibre. Nomeadamente, com o desequilíbrio entre Esquerda e Direita herdado do 25 de abril de 1974. Entre outras razões, este desequilíbrio prende-se com o facto de o 25 de abril ter no seu cerne a construção de uma sociedade democrática após o derrube de uma ditadura de Direita. O PS e os partidos à esquerda do PS – por muito extremos que estes sejam – têm conseguido alimentar uma narrativa de pecado original da Direita, a par de uma narrativa de benignidade fundamental da Esquerda.
É interessante observar que nos chamados países de Leste o desequilíbrio entre Esquerda e Direita tem o sentido contrário, muito provavelmente, porque nesses países a dinâmica democrática foi consequência do derrube de ditaduras de Esquerda.
De qualquer forma, em Portugal, este desequilíbrio parece estar hoje em vias de extinção. Entre outras razões, porque a mesma Esquerda que vituperava o regime pré-25 de abril por aquele manter o país aprisionado num estado de pobreza e ignorância, deslumbrou-se com as liberdades, o vanguardismo e o endividamento e esqueceu-se da economia e do desenvolvimento. E o país tornou-se livre, educado e democrático, mas endividado. E, sobretudo, permaneceu pobre.
Uma evidência de que o desequilíbrio é hoje muito menor é o facto de, pela primeira vez, 50 anos após o 25 de abril, existirem políticos que se declaram de direita e afirmam que combatem o socialismo, o que, quem leve à letra a lei fundamental do país até poderá considerar inconstitucional. Ainda assim, o desequilíbrio herdado do 25 de abril ainda hoje parece condicionar os partidos à direita do PS. Veja-se o “não é não” do PSD.
A segunda alteração introduzida pelo Costismo foi a vinculação do PS à disciplina orçamental, cujo derradeiro resultado é o célebre excedente orçamental.
Era suposto esta alteração, aleada à diabolização da Direita à direita do PSD e da colagem deste último a essa Direita, ter dado ao Costismo espaço político para manter a narrativa da Esquerda benigna na sua essência. Mas o mal estava feito e o eleitorado foi implacável e deu uma esmagadora maioria à Direita.
Ainda assim, esta segunda criação do Costismo permitiu que o PS, agora libertado das responsabilidades do Governo – para o qual, aparentemente, foi empurrado pelos eleitores a contragosto – e agora refugiado na liderança da oposição, pudesse rematar mais esta passagem desastrosa pela governação com a ostentação triunfal de um excedente orçamental.
É sintomático que, nos últimos dias do seu Governo, António Costa, com o seu lendário semblante jocoso, se desdobre em oferendas de facilidades orçamentais ao futuro Governo do PSD.
O atual líder do PS, assumindo a habilidade do antecessor nesta matéria, também acena profusamente ao PSD com o tentador excedente, sugerindo, inclusivamente, que não se coíba em alterar o orçamento para concretizar as suas promessas distributivas. O PS promete fechar os olhos … por agora.
Assim, o novo Governo do PSD terá à sua esquerda uma Esquerda pós-Costismo, saudosa da sua primeira criação – a Geringonça – e saída do banho lustral da disciplina orçamental, e à sua direita uma Direita com uma base de apoio inédita, uma retórica frenética e desejosa de mobilizar cada vez mais eleitorado.
Governar o país neste contexto é uma tarefa incomparavelmente mais difícil do que aquela que o eleitorado ofereceu ao PS. Mas se for bem-sucedido, o êxito do Governo do PSD também será incomparavelmente superior ao do PS.


