Democracia, justiça, e a modernidade de Platão

Paula Ribeiro de Faria, Professora de Direito Penal, UCP-Porto

Em 50 anos o nosso país sofreu uma evolução social e económica notável, mas falta fazer muito no plano cultural e no ensino o que se repercute naturalmente na formação dos políticos. Não estamos no tempo de Platão, e não faz sentido referir os argumentos que o filósofo sustentava para o governo dos melhores (os sábios ou os filósofos), mas é verdade que se a classe política sai do povo, porque o povo somos todos nós, é necessário garantir melhor educação ao povo, o que exige a valorização dos professores e do ensino, e a seleção e a motivação de pessoas qualificadas para lutar pelo bem comum.

Quando a nossa democracia cumpre meio século de vida devemos parar para pensar o que queremos para o país para o próximo meio século.

Um inquérito realizado pelo ISCTE chegou à conclusão de que a maioria dos portugueses está genericamente satisfeita com a democracia, embora se queixe da corrupção e da criminalidade, e alguém dizia um destes dias nas redes sociais, ou porventura num jornal diário, que a democracia entre nós já é um valor consolidado, um dado adquirido que ninguém se atreve a contestar.

Ora, os pensamentos simplistas, sobretudo em certas matérias, e o dogma da consolidação da democracia ou a convicção da “democracia multirresistente”, são sempre muito perigosos, sobretudo quando à nossa volta vamos vendo a rapidez com que aumenta o número de regimes totalitários e a fragilidade evidente dos direitos e das liberdades fundamentais, e sabendo nós também que a própria democracia encerra o risco da sua conversão em ditadura ao assentar no respeito pela vontade da maioria.

Ainda esta semana ouvimos Trump dizer que se Biden continuar na Presidência pode não haver mais eleições democráticas no futuro nos Estados Unidos, mas suspeitamos que não é esse o risco que corre a mais antiga democracia do mundo ocidental – Atenas à parte – antes o risco de ser democraticamente eleito como Presidente um homem que está acusado de 88 crimes relacionados com a tentativa de manipulação do sistema eleitoral e pelo apoio à invasão do Capitólio.

É verdade que a Rússia não era propriamente uma democracia há vinte e quatro anos atrás quando Putin sucedeu a Yeltsin, mas estava provavelmente no bom caminho para o ser, quando escassos seis meses depois de um discurso de tomada de posse em que garantia a liberdade de expressão e da comunicação social, e as liberdades e direitos constitucionalmente protegidos, no país, Putin expulsou o dono do único canal independente de televisão para o exilio com acusações de fraude fiscal.

As expectativas de igualdade, democracia, e liberdade, do povo iraniano, depois da revolução iraniana também foram rapidamente frustradas, dando lugar ao negro regime de Khomeini e dos juristas islâmicos. E quando vemos o crescimento dos movimentos radicais na Europa não podemos ter como garantida a democracia, ou pelo menos a sua subsistência nos termos em que a conhecemos associada a regimes abertos, tolerantes e respeitadores do princípio da igualdade e dos direitos e liberdades individuais, em particular dos mais vulneráveis.

É verdade que a democracia não garante a virtude e a justiça das decisões. Escrevia Baptista Machado que a decisão tomada democraticamente mais não é do que um facto, e que não é por isso que é justa. Platão, que não simpatizava por aí além com a democracia, pelo que não espanta que a descrevesse como um reduto de relativismo ético e decisório, considerava-a uma forma de governo diversificada com muitos riscos. “Nele encontraremos homens de toda espécie mais do que em qualquer outro e desse modo, é provável que seja a forma de governo mais bela de todos. Como um traje colorido que ostenta toda a gama das tonalidades, oferecendo toda a variedade dos caracteres, poderá parecer de uma beleza irretocável”.

Na democracia não há obrigação de mandar se não se for capaz de tal, e estamos perante uma forma de governo indulgente e manso, benevolente e livre, em que os governantes não foram especialmente treinados para governar. É um “governo agradável, anárquico e variado, que dispensa uma espécie de igualdade tanto ao que é desigual como ao que é igual”.

O homem democrático é o homem livre de escolher as regras que o regem, não o homem virtuoso ou o homem justo, o que o torna presa fácil da tentação e do “mel dos zangões”, esses insetos ardentes e terríveis que podem proporcionar-lhe prazeres de toda espécie que lhe ocupam a alma, e que a sentindo vazia de ciência, de hábitos nobres e de princípios verdadeiros, que são certamente os melhores guardiões e protetores da razão nos humanos amados pelos deuses (…) a enchem de máximas, de opiniões falsas e presunçosas e tomam posse do seu lugar (…) introduzindo nela, com muito brilho, seguidas de um numeroso coro e coroadas, a insolência, a anarquia, a licenciosidade, a impudência, que louvam e decoram com belos nomes, chamando nobre educação à insolência, liberdade à anarquia, magnificência ao deboche, coragem à impudência (…).

Platão não poupa, na verdade, o homem da democracia: “Muitas vezes ocupa-se de política e, saltando para a tribuna, diz ou faz o que lhe passa pela cabeça. Sucede-lhe entusiasmar-se pela gente de guerra, e ei-lo que se torna guerreiro. Interessa-se pelo comércio, e ei-lo que se lança nos negócios. A sua vida não conhece nem ordem nem necessidade, mas considera-a agradável, livre, feliz e se mantém fiel a ela”.

Mas a democracia como um regime alegre e livre, e recorde-se que a democracia ateniense é uma democracia direta que dá acesso a todos (menos às mulheres e aos escravos, mas isso seria outro artigo…), e daí a razão de Platão quando afirma que a democracia é o governo de um povo que não está preparado para mandar e que por isso é mais suscetível à tentação do poder, está sujeita a riscos.

De acordo com Platão o colapso da democracia ocorre quando um Estado que é governado por homens livres que trabalha para enriquecer, ao contrário dos oligarcas que têm a tendência para ficar inativos, suscita o desagrado do povo, sendo possível que nesse momento algum dos zangões que vivem no meio dos poderosos tome esse desagrado como mote e se apodere do poder.  Este zangão “nos primeiros dias, sorri e acolhe bem todos os que encontra, declara que não é um tirano, promete muito em particular e em público, adia dívidas, distribui terras pelo povo e pelos seus prediletos e finge ser bom e amável para com todos.

No entanto, depois de se desembaraçar dos seus inimigos do exterior, reconciliando-se com uns, arruinando os outros, e sentindo-se tranquilo deste lado, começa sempre por provocar guerras, para que o povo tenha necessidade de um chefe”, e aos poucos torna-se imprescindível.

A ideia da perversão da democracia que tem lugar quando o poder é tomado por maus líderes que exploram os desejos e a má vontade do povo não podia ser mais atual nos tempos que correm, mesmo nas democracias indiretas que são as nossas. É necessário manter longe os zangões de que fala Platão, referindo-se às duas categorias de homens políticos mais perigosos, (os cobardes e os zangões): ”quando estas duas espécies de homens aparecem num corpo político, perturbam-no totalmente, como fazem a fleuma e a bílis no corpo humano.

É preciso que o sábio legislador, no papel de médico do Estado, se acautele previamente, tal como o prudente apicultor, em primeiro lugar, para impedir que elas aí nasçam, ou, se não o conseguir, para as suprimir com os próprios alvéolos”. São particularmente importantes nesta tarefa os mecanismos da justiça, que não podem ceder à tentação de fazer política ou ser influenciados pelos outros poderes do Estado, assegurando o cumprimento das leis pelos governantes e a salvaguarda das liberdades e dos direitos dos cidadãos contra as decisões arbitrárias do poder.

Continuando com Platão: “Quando um Estado democrático, sedento de liberdade, passa a ser dominado por maus chefes, que fazem com que ele se embriague com esse vinho puro para além de toda a decência, então, se os seus magistrados não se mostram inteiramente dóceis e não lhe concedem um alto grau de liberdade, ele castiga-os, acusando-os de serem criminosos e oligarcas. (…) E ridiculariza os que obedecem aos magistrados e trata-os de homens servis e sem valor”.

Em 50 anos o nosso país sofreu uma evolução social e económica notável, mas falta fazer muito no plano cultural e no ensino o que se repercute naturalmente na formação dos políticos. Não estamos no tempo de Platão, e não faz sentido referir os argumentos que o filósofo sustentava para o governo dos melhores (os sábios ou os filósofos), mas é verdade que se a classe política sai do povo, porque o povo somos todos nós, é necessário garantir melhor educação ao povo, o que exige a valorização dos professores e do ensino, e a seleção e a motivação de pessoas qualificadas para lutar pelo bem comum.

Platão tinha razão quando dizia que não é qualquer um o bom capitão do navio, o bom médico, ou o bom assentador de tijolos. Quem representa o país, o escolhido em democracia – e continuamos com Platão – é sempre aquele que serve o bem comum e a coletividade e por isso deve ganhar um salário, porque não retira qualquer outra vantagem, em honras, e em subserviência alheia, dos lugares em que é investido. Como a sua tarefa é servir os outros e daí não vem vantagem alguma, deve ser convenientemente remunerado por isso.

Um dos fatores que mais pesa no avolumar dos radicalismos que grassam pela Europa fora é o descontentamento dos cidadãos com a forma como são conduzidas as políticas públicas em matéria de emprego, segurança e habitação. A melhoria da qualidade de vida das pessoas robustece a democracia, porque como também escrevia Platão há uns impressionantes quatrocentos anos antes de Cristo: “quem vive mal não se preocupa com a arte de governar e está nas mãos de qualquer tirano”. Na sua ascensão, mas também na sua manutenção no poder “para que os cidadãos, empobrecidos pelos impostos, sejam obrigados a pensar nas suas necessidades cotidianas e conspirem menos contra ele”.

Se o decisor democraticamente eleito tiver competência para servir o interesse comum e se dedicar a ele, se se mostrar imune a outros objetivos e a outras tentações mantendo-se com ética nas suas funções, se souber que é controlado por um poder judicial independente em caso de infração dos seus deveres funcionais e como cidadão, se decidir com justiça e com igualdade, se a população estiver contente com a sua vida e sentir segurança na satisfação das suas necessidades essenciais, aí estarão cumpridos os ideais da nossa Constituição e a democracia será robusta. E os zangões voarão para longe.

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