A manhã prometia mais um dia de calor tórrido. Luís saiu de casa na cadeira de rodas, extremamente aborrecido, porque não suportava tanto calor e sentia que só ele não saía de Lisboa para fazer férias em sítio algum…despediu-se da mãe dizendo que levava umas sanduíches, iria devolver um livro à Biblioteca, e depois ficaria no parque junto ao lago dos patos, pois sempre devia estar mais fresco do que ali em casa. A mãe, como de costume, fez-lhe as mil recomendações que tanto o enfastiavam…
Entretanto, noutro ponto da cidade, um pouco mais distante, Rosário fez o mesmo raciocínio, pegou na bengala e nos livros que já lera, despediu -se da velha e querida avó com um beijo de ternura, preparou umas sanduíches e disse que voltaria ao fim da tarde, mas ficaria lá pelo jardim da Biblioteca à sombra das árvores. Apanhou um autocarro e seguiu caminho, entretida com nova leitura.
Luís e Rosário nunca se tinham encontrado, mas quando Rosário passou o portão do parque e viu o jovem Luís caído no chão e a cadeira de rodas a rolar a grande velocidade, em direção ao lago, gritou, acenou com a bengala, apontando para o jovem caído na relva, pediu ajuda e logo apareceram várias pessoas.
Uma correu atrás da cadeira, ainda a tempo de a agarrar, antes que caísse ao lago; outras duas aproximaram- se de Luís e ajudaram-no a pôr-se de pé. Luís estava dorido, um pouco esfolado nas mãos, mas felizmente, não parecia nada de grave. Agradecendo-lhes a ajuda, explicou-lhes que tombara propositadamente, ao perceber que estava a perder o controlo e a cadeira ia rolar, ladeira abaixo, sem que ele a conseguisse travar.
Rosário, entretanto, aproximara-se também, mas lentamente, coxeando, apoiada à bengala. Percebendo que fora ela quem dera sinal de alarme, Luís sorriu-lhe e apresentou-se; em seguida, todos juntos, saíram do relvado, empurrando Luís na cadeira de rodas. Ao verificarem que não seria preciso levá-lo ao hospital, o grupo de três despediu-se, e deixaram-nos junto ao café, à entrada da Biblioteca. Luís ainda os convidou a tomarem algo, mas só Rosário aceitou e ali ficou com ele.
Em breve, enquanto conversavam, os dois pediram uns refrescos e partilharam as sanduíches que levavam. Rosário ainda ajudou Luís a lavar as feridas das mãos ali no café, e depois, ao longo da tarde, à medida que iam conversando, acabaram por esquecer a devolução dos livros. Combinaram por isso, voltar no dia seguinte. E a partir daquele dia iniciavam encontros diários e uma boa amizade.
Luís, talvez mais extrovertido, contou-lhe, certo dia, a história da sua vida. Sempre gostara de desporto e da vida ao ar livre. Era filho único e a mãe, desempregara-se e vivia para ele desde o seu acidente numa prova de salto em altura, cinco anos antes. Caíra mal, sofrera lesão na coluna e fora operado várias vezes, mas acabara por ficar numa cadeira de rodas.
O pai, para ganhar mais dinheiro e poder fazer face às muitas despesas, arranjara trabalho na Alemanha. Ao fim de algum tempo porém, não resistira à solidão e arranjara outra família por lá, para grande desgosto da mãe…e apesar de continuar a enviar dinheiro todos os meses, o filho cortara relações com o pai e nunca mais quisera falar com ele.
Luís confessou-lhe que vivia frequentemente, momentos de desespero, ao sentir-se preso a uma cadeira, dependente da mãe para tudo e vendo-a envelhecer no esforço contínuo de cuidar dele, embora sempre paciente e carinhosa e sem um queixume. Ele porém, queixava-se e muito… a vida tinha sido muito injusta para ele…não conseguia deixar de sentir uma revolta no seu íntimo… tinha tido um futuro brilhante à sua espera, assim lhe dizia o treinador, incentivando os seus treinos diários ao mesmo tempo que estudava Desporto na Faculdade…sentia que estragara vida aos pais, desistira dos estudos e via-se como que num túnel escuro, sem luz alguma, quando comparava a sua vida com a dos antigos colegas e amigos…muitas vezes o assaltava um desejo imenso de pôr fim à vida…
Rosário sentiu uma pena enorme daquele jovem. Abraçou-o com ternura, fez-lhe uma festa na cabeça e beijou-o com sincera amizade.
Para Luís, cada encontro era agora um verdadeiro bálsamo…mas Rosário quase nada revelava da sua vida pessoal.
As conversas fluíam naturalmente, falavam dos seus gostos e interesses, até que um dia, Rosário, que sempre fora muito discreta, lhe abriu a alma, ao sugerir a Luís a leitura do romance ‘Olhai os Lírios do Campo’ de Érico Veríssimo, que acabava de reler pela terceira vez. Contou- lhe como aquele livro e um outro, ‘Com olhos novos’, de Alessandra Borghese, muito a tinham ajudado em tempos de grande dor, quando dez anos antes, perdera os pais e o marido num acidente de automóvel nas férias de verão em França, acidente de que só ela escapara. Nessa altura, sentira que o mundo desabava por completo a seus pés.
Falou-lhe dos longos meses de internamento no hospital, do acolhimento em casa dos avós, da tentativa de regresso à normalidade e de como uma fisioterapeuta a ‘salvara’ ao incutir-lhe de novo o interesse e o gosto por boas leituras. E assim recomeçara a viver, descobrira uma nova luz e voltara aos estudos até completar o seu curso universitário. Agora dava explicações em casa e fazia traduções, mas a sua paixão eram os livros, que lhe permitiam viajar livremente em pensamento…E Rosário contou-lhe, que também ela de início se revoltara e rejeitara os trágicos acontecimentos, mergulhando em profunda depressão.
Quando o capelão do hospital passava na enfermaria a cumprimentar cada doente, e tentava falar com ela, ela respondia mal, ou virava-lhe as costas tapando a cabeça com os lençóis para não o ver, nem ouvir…
Contudo, através da amizade com a sua fisioterapeuta e dos livros que ela lhe emprestava, Rosário acabara enfim, por encontrar alguma resignação, e de regresso a casa dos avós, com o seu carinho constante, voltara a rezar, convertera- se, reencontrara a paz e aprendera a aceitar todo aquele sofrimento de mão dada com Jesus.
Pouco a pouco, tal como lhe tinha acontecido, Rosário foi ajudando Luís, através das leituras que lhe sugeria e de muitas e longas conversas.
Luís resolveu fazer as pazes com o pai, voltar a estudar, mudar de curso, e gradualmente foi percebendo que a sua vida não tinha terminado…alguma luz brilhava enfim, ao fundo do túnel…
A diferença de idades entre Luís e Rosário era muita. Rosário olhava-o com uma ternura quase de mãe … vinte anos os separavam…
Quando o verão acabou, e começaram as primeiras chuvas de outono, os encontros no parque foram-se espaçando naturalmente e ao chegar o inverno foram terminando, mas aquela amizade saudável e pura, fizera bem a Luís e a Rosário.


