Talvez seja um clichê da crise de meia-idade, mas tirei a carta de mota aos 46 anos. Apesar de ter conseguido ficar encartado, não foi sem imensas dificuldades. Logo à cabeça eu tive de ser humilde, aceitar todas as críticas que me eram feitas, e aparecer na aula seguinte pronto a ouvir mais.
Recentemente completei um desafio a que me propus. Esta é uma frase que tem para mim um significado substancial, uma vez que já perdi a conta dos começos de inúmeras iniciativas que não deram em nada, onde a desistência encontrou uma fonte de alimentação vinda da falta de motivação repentina.
Durante muitos anos eu queria fazer tudo e fazia pouco ou mesmo nada. A minha autossabotagem era algo assim: entusiasmo inicial com sensação energética, seguida de lentidão, prosseguida por um sentimento de peso e densidade.
Eu estava preso neste paradoxo. A novidade trazia-me alegria para começar algo novo. O decorrer do processo até ao objectivo final retirava-me a vontade me manter, porque eu queria o resultado sem o esforço e disciplina que são partes integrantes de qualquer coisa que valha a pena e produza mérito.
Na verdade, eu tinha um problema com a consistência. Esta não me assistia e eu não me dava bem com ela. Aquilo que ela me pedia, para fazer parte de uma dinâmica de manutenção, dava muito trabalho e exigia de mim horas e dias que eu não estava mentalmente capaz de entregar.
A analogia do ginásio serve completamente esta carapuça. Uma pessoa vai para um clube qualquer com um objectivo em mente. Vai lá umas vezes e passado um tempo desiste. Porquê? Porque tem de lá ir quando não quer. Tem de se demover daquela vontade de escorregar e cair do dínamo, onde moram as desculpas mais para o menos razoáveis que começam a aparecer no pensamento. Não quer ir? Vai na mesma. Porém, eu não ia, apenas saltava para a próxima novidade usada para disfarçar a minha tristeza e solidão.
Esta fase da minha vida foi pautada pela inconsciência em relação à minha saúde mental. Eu sabia lá que tinha a capacidade de continuar! Na minha perspectiva, eu era assim, dava-me bem com pequenos objectivos facilmente alcançáveis e tudo o que me fosse difícil ou me expusesse a alguma vulnerabilidade, era como um susto de que eu tinha de fugir para o conforto desconfortável do meu sofá seguro e velho.
Olhando para trás consigo perceber a conexão entre tomar riscos em objectivos mais longos e lentos, onde a minha vontade de aprender se sobrepõe aos meus medos, e a estabilidade que a minha vida familiar me traz.
Foi devido a isso que a minha vidinha individual mudou. Eu já não sou sozinho, já não tenho de mentir e esconder-me, já sou gostado por quem sou. Arrisquei numa relação vulnerável e encontrei a segurança que precisava.
Voltando ao ponto inicial, o objectivo mais recente a que me propus. Talvez seja um clichê da crise de meia-idade, mas tirei a carta de mota aos 46 anos.
Apesar de ter conseguido ficar encartado, não foi sem imensas dificuldades. Logo à cabeça eu tive de ser humilde, aceitar todas as críticas que me eram feitas, e aparecer na aula seguinte pronto a ouvir mais. Isto é extremamente difícil para mim, porque há muito que internalizei a ideia de não ser gostado se tiver tribulações e se as tiver é porque não sou capaz de prosseguir com a tarefa.
Para evitar cair nesta mentira, tive de fazer outra coisa. Deixar de procurar o meu pai e de criar figuras paternais que me façam reviver essa mesma ilusão trazida de uma infância mal resolvida.
Depois vieram os altos e baixos, aqueles momentos incertos, onde eu achava que tinha melhorado certos aspectos da minha condução decorrente de uma assimilação eficaz de conhecimentos adquiridos em aulas anteriores.
Só que não. Ou pelo menos, não sempre. E lá ia eu para mais uma aula para aprender-me. Lá ia eu enfrentar os meus medos de não saber conduzir e as minhas inseguranças de não ser capaz de melhorar.
No entanto, fui ganhando confiança paulatina que me trouxe uma capacidade de relaxar, rumo a uma condução plena sem sentir que estava tudo a andar depressa e descontrolado.
Agora vinha aí o exame. O teste final. O momento que ia demonstrar se eu já tinha acumulado segurança suficiente para me lançar a uma avaliação vinda de uma pessoa que eu nunca tinha visto.
Os exames de condução de mota são normalmente precedidos de umas últimas aulas, feitas no mesmo dia. Servem para limar umas arestas e fazer reconhecimento de trajectos possíveis.
No meu caso tinha três aulas para fazer antes do momento decisivo. Comecei bem, fiz tudo o que me foi pedido, com a calma de alguém que sabia ao que vinha.
Porém, na última aula mesmo antes do exame, falhei uma regra, concretamente, passei em cima da passagem de peões quando um peão resolveu meter o pé na estrada.
Embora o meu excelso instrutor apenas me tenha advertido, de repente vieram todas as inseguranças de volta e aquele histerismo onde a minha cabeça entrou estava a dar cabo de tudo. E, claro essa aula acabou mal.
Eu estava com os braços pesados, cheio de dúvidas, com a ansiedade a vir ao de cima. Senti as minhas mãos a suar e decidi que não ia ser o primeiro a fazer o exame, já que estes são sempre feitos por dois alunos.
Fui andar. Andei de um lado para o outro, respirei fundo e disse a mim mesmo que esta era a minha luta, eu ia ganhar e se por acaso não corresse bem, isso não me definia e eu iria voltar até conseguir.
Os quarenta minutos que esperei pela minha vez, eram verificados profusamente, como se o exame me fosse fugir se eu não olhasse constantemente para o relógio e para o local onde a mota ia ser estacionada para eu subir.
Finalmente chegou. Pus o capacete. Os headphones teimavam em cair do ouvido. Tirei o capacete uma e outra vez. Ok, já está tudo pronto. Após uma duas ou três perguntas rudimentares sobre a mota, oiço o examinador (essa pessoa decisora do meu resultado) “Tá pronto? Vá, bora!”
E fui. Liguei a mota e a mim. Concentrei-me a ouvir as instruções e a olhar para a estrada. Parei no primeiro Stop, contornei a rotunda de forma correcta e desloquei-me a parque de estacionamento para fazer os chamados “oitos”.
Começámos pela inversão de marcha simples. Foi horrível. Não dei aceleração suficiente e deixei a mota ir abaixo. Pensei, “pronto já está, reprovei”. Oiço no ouvido, “Vá faça lá os oitos”.
Enquanto me condenava pela manobra falhada, lembrei-me de todas as vezes que falhei nas aulas que me trouxeram ao exame e como consegui superar-me para aqui chegar. Concentrei-me nisso e executei na perfeição.
A partir deste sucesso consegui relaxar, a ansiedade desceu lá para os confins do esquecimento momentâneo e depois de mais umas voltas e mudanças de direcção, acabou a tormenta.
Já de mota estacionada, à espera de saber o resultado, começo outra vez a duvidar e a inventar razões para ter chumbado. Talvez não tenha visto uma perca de prioridade ou passei um traço contínuo.
“Estão os dois passados”. E pronto, uma frase concisa e eficaz. Passei, tenho a carta de mota, superei a minha ansiedade, não ouvi a minha sabotagem, não fiquei na segurança incómoda e colhi os frutos disso.
Não sei quanto tempo irá durar a força dos factos perante o peso das conjecturas ansiosas, mas, para já, sinto-me bem comigo.


