Todos os dezembros que me lembro há um almoço de família onde encontro a maior parte dos meus 39 primos direitos e respectivos pais.
É um encontro com muitas memórias, muitos passados e energias. Todos os anos dou por mim a enfrentar esses fantasmas.
Anos houve onde eu não fui e anos houve onde não quis ter ido.
As nossas famílias são os primeiros universos de passagem conceptual e cultural. Conforme for o número de familiares, mais exemplos há de expressão individual vinda de um peso colectivo.
Dado que a minha família é bem capaz de ser uma das maiores deste país, o tempo de qualidade, que daria para travar intimidades e criar pertenças e cumplicidades, é de facto escasso. Como tal sobram as histórias que se contam, os rótulos que armazenam e amarram as pessoas a simplicidades convenientes e por isso, curtas.
Assim, nós tornamo-nos nas coisas que contam sobre nós, que raramente se afiguram como verdades sobre nós, e facilmente realizamos que estamos perante uma família que se conhece há muito tempo, mas não se conhece nada bem.
Consequentemente, tudo aquilo que passei, toda a minha infância cheia de violência e instabilidade, foi reapropriada para se tornar numa daquelas histórias de criança promissora e potencial desperdiçado, que se dizia de preguiçosa, indolente, mal-agradecida e que se fazia de vítima.
E eu, claro, aceitei. Aceitei ser visto assim e pior que isso, aceitei ser assim e depois colher as frustrações e raivas disso. E todos os anos lá ia eu para um tribunal cultural que me exigia um papel que eu não preenchia e para quem eu era não parecia nunca ser o suficiente.
Depois vinham as comparações, o “ah e tal tu és parecido com o meu filho tens a mania do não sei do quê”. Ou então, “epa mas não foste tu que blablabla?”
As aparentes certezas que vinham das cristalizações de histórias mal contadas, entravam por mim adentro como se eu tivesse ofendido a mais santa das santas e o dedo simbólico estava-me apontado na direcção da minha cara a julgar-me por mais uma coisa qualquer.
Foram muitas as vezes que tive de me controlar para não causar, aí sim, uma história daquelas que se iria contar, que começava com, “do nada o gajo levantou-se e começou a bater no tio cicrano ou primo beltrano”.
Anos passaram e numa daquelas raras oportunidades de privar com um primo temporariamente mais chegado, percebi uma coisa que me no fim de a dissecar e da sentir, ajudou-me muito.
Dizia-me esse meu primo, “pá ninguém pensa nisso, só tu”.
De repente, vem-me uma raiva gigante ao de cima que tentei não mostrar. Então se ninguém pensa nisso, então não pensavam em mim, e eu afinal não tinha importância nenhuma.
Na primeira analise, foi desolador. Eu queria ter importância, e mais do que isso eu queria que me vissem a uma luz positiva e ser validado e nutrido.
Só depois disso me passar e eu perceber de onde vinha todo esse fel é que realizei o quão libertador isso podia ser. Eu não chegava, mas era para mim, porque só eu é que pensava nisso e, portanto, só me doía a mim.
E a cor mudou. Uns quantos almoços mais tarde, já perto da idade que agora tenho, comecei a libertar-me das emoções que criei ao ver que o que quer que se falasse sobre mim, não me dizia respeito e que provavelmente não era nem pessoal, nem importante.
Ou seja, as cristalizações que perduram sobre nós, só têm a força que lhes dermos e se formos mesmo honestos connosco e pararmos de nos auto censurar, conseguimos perceber as raízes dessas energias.
O Natal é todos os anos e nós, enquanto cá estamos, também. Portanto, o Natal é o que quisermos fazer dele. E se quisermos ficar em casa, ficamos. Se não pudermos impressionar ninguém com presentes, paciência. Se quisermos ser selectos e só estar com uns e não outros, assim será. O mais importante é vivermos com nós mesmos e que isso seja o bastante.
Bom Natal ou Boas Festas e isso tudo.


