E nessa noite, falaram de muita coisa: de como Manuel, então jovem oficial de Marinha, estava na Guiné, a comandar uma lancha de desembarque, quando se deu o 25 de abril… e depois fora para Cabo Verde e em seguida para Angola. Do ambiente de euforia popular que se vivia, nos quartéis e nas ruas! De como transportara milhares de guineenses, militares e animais, rios fora, entre povoações. Da aventura da ida de Odette com o único filho que tinham então, um pequenito de dois anos, até Cabo Verde e depois Angola.
Quando o telefone tocou, convidando-os para um reencontro, na casa de praia daqueles amigos estrangeiros, no feriado do 25 de abril, Odette e Manuel aceitaram com gosto.
Estavam sozinhos, filhos e netos estavam fora, aproveitando a ‘ponte’ , e o casal ainda se lembrava com saudade dos encontros frequentes, vários anos atrás, quando um casal luso-alemão, recém-convertido, se dispusera a organizar um curso de fé para adultos em sua casa.
Odette e Manuel não os conheciam, mas alguém os tinha convidado, e assim, em pouco tempo nascia uma grande simpatia entre os componentes daquele grupo, à primeira vista tão heterogéneo …eram umas 20 pessoas, de diferentes idades, cores, raças e culturas, nem todos católicos praticantes, nem
todos dominando o português, mas unidos pela curiosidade e desejo de perceber o que era isso de crescer na fé cristã.
Sexta à noite, reuniam-se para jantar, cada um levava algum prato ou participava na despesa, depois juntavam-se na cave acolhedora, junto à lareira, para verem um pequeno filme; os anfitriões faziam uma breve oração com todos, apresentavam-lhes o tema dessa noite e no final, dividiam-se em três
pequenos grupos em que marido e mulher não coincidiam e procuravam responder às perguntas lançadas no filme.
E assim acontecera todas as sextas-feiras, durante três meses. A meio organizaram um fim-de-semana mais intenso de oração, ocupando também o dia de sábado, e pelo meio, alugaram um autocarro e foram numa noite de 12 -13 de maio, em peregrinação a Fátima.
Os resultados iam-se manifestando claramente: uma confiança e amizade crescentes entre todos, harmonia em alguns casais que aparentavam estar em crise, mais assiduidade à Missa de Domingo (e alguns vinham de longe!) e aos sacramentos ( um alemão casado com uma portuguesa, converteu-se e fez até a sua primeira Comunhão na presença dos amigos- um momento inesquecível…); também durante a semana, alguns contactavam entre si para alguma confidência e pedido de conselho sobre temas sérios da vida conjugal e educação dos filhos, e era frequente ouvirem-se testemunhos comoventes quando,
descobrindo verdades ignoradas, se convertiam, mas sobretudo, sentia- se no ambiente geral um genuíno desejo de ser melhor e crescer na fé.
No final desses três meses, à hora da despedida, conscientes de terem vivido uma autêntica revolução interior e com sincera pena por chegarem ao fim, quase todos pediram ao casal anfitrião que organizasse outras iniciativas semelhantes para não se separarem uns dos outros, nem perderem o élan daquela
amizade…e pediam ao menos um encontro mensal!!!
O tempo porém foi inexorável e o afastamento inevitável… houve outras iniciativas, filmes e conferências, mas aquele núcleo central em breve se desfez: o casal mais idoso faleceu, marido e mulher com pouca diferença de tempo, outros mudaram de casa, outros ainda regressaram aos seus países de origem… depois veio o covid, e enfim, não era fácil o reencontro!
Agora, porém, surgia aquele convite…apesar de serem os mais velhos, Odette e Manuel não queriam faltar…desta vez contudo, o tema não era religioso, antes lhes pediam a eles, precisamente, para contarem as suas memórias do 25 de abril de 1974 …uma vez que se reuniam exatamente no dia em que se celebravam 50 anos de Revolução!
Manuel anotou algumas recordações e voltou a folhear o livro do general Spínola, que lera na viagem para a Guiné e lhe revelara que a guerra não podia durar muito mais… E nessa noite, falaram de muita coisa: de como Manuel, então jovem oficial de Marinha, estava na Guiné, a comandar uma lancha de desembarque, quando se deu o 25 de abril… e depois fora para Cabo Verde e em seguida para Angola. Do ambiente de
euforia popular que se vivia, nos quartéis e nas ruas! De como transportara milhares de guineenses, militares e animais, rios fora, entre povoações. Da aventura da ida de Odette com o único filho que tinham então, um pequenito de dois anos, até Cabo Verde e depois Angola.
Falaram do ambiente revolucionário, das luzes e sombras da Revolução dos Cravos…Do entusiasmo que se vivia pelo fim da guerra nas colónias (até então denominadas de ‘províncias ultramarinas’), da alegria e cânticos revolucionários nas ruas pela liberdade que os militares de abril e outros na clandestinidade haviam conseguido….do fim das torturas e abertura das prisões, do aparecimento de vários partidos, da instauração da democracia sobretudo depois do golpe militar do 25 de novembro, da abertura ao acesso à educação e ao Serviço Nacional de Saúde, do ‘elevador social’, do desenvolvimento económico, da construção e abertura de tantas vias de comunicação, das muitas tentativas de correção de graves injustiças sociais… mas também não podiam deixar de referir as sombras que toldaram a Revolução e os tempos que se seguiram: os excessos, as novas injustiças, as ocupações de propriedades, a iminência de os comunistas, bem organizados, tomarem conta do país, a ocupação da Rádio Renascença e cerco ao Patriarcado, as graves clivagens e zangas entre amigos e nas próprias famílias por dissidência de opiniões … a forma precipitada como se abandonara tanta, tanta gente boa em África, a vinda dos retornados- famílias inteiras sem nada, só com uma mala cheia de angústia e dor! – e a incapacidade de os povos africanos se organizarem e viverem em paz…a ganância de tantos … a corrupção…o oportunismo…
Por fim, a conversa daquela noite acabou por derivar para a situação actual das várias guerras no mundo, a tragédia de tantas vidas ceifadas, tanta crise humanitária e tanta destruição, sem que pareçam ter fim à vista…
A terminar, Odette pediu a palavra e quis contar-lhes ainda aquele pequeno episódio passado em Luanda: como ficara tão grata a um militar angolano do MPLA, um gigante negro, que, de metralhadora ao ombro, saíra a correr do café onde estava sentado com amigos, para o meio de uma avenida cheia de trânsito e pondo-se à frente de carros pegara ao colo no pequenito que se lhe escapara das mãos, quando ela vinha no
passeio, carregada de sacos de compras…
Odette abraçara o soldado africano e a chorar, dera-lhe um beijo de eterno agradecimento! Salvara-lhe o filho de morte certa! Há coisas que não se podem esquecer…