Somos quatro. Quatro vidas feitas de muitas escolhas, que já encerram muitas vidas próprias e acolheram vidas novas. Nunca estaremos inteiramente de acordo em tudo, mas também nunca divergiremos completamente. Certos, ou não, das razões uns dos outros, nunca seremos completamente nós sem a presença e a perspectiva dos que connosco comungam, mais do que a origem, o percurso que é feito de amor, mesmo quando este é exigente.
Ao olhar para este 31 de Maio, o Dia dos Irmãos, recordo a pergunta de Deus dirigida ao primeiro fratricida. Pode bem ser a mesma que nos fará quando nos colocarmos diante Dele no momento em que nos julgar. E nesse julgamento – a que não deve faltar amor, compaixão e compreensão – talvez não falte também rigor, quando estiverem envolvidos os nossos próprios irmãos. Se a fraternidade universal nos obriga e nos liga a todos, enquanto filhos de um mesmo Pai, a fraternidade em sentido próprio traz consigo outros contornos e outros liames, outras obrigações e outras alegrias.
Recordo-me, de uma forma nebulosa, de ser muito pequeno e de estar encostado a um poste, num pequeno claustro que fazia parte do meu colégio pré-escolar em Santarém, e de ver surgir do nada o meu irmão Nuno, vinte meses mais novo do que eu, que bateu em dois rapazes que se preparavam para me pregar uma partida. Não me apercebi do que estava para me acontecer e ele estava atento à minha desatenção. Acho que nunca cheguei a agradecer-lhe por isso.
Também me recordo das brigas infindáveis que tínhamos – em que tudo o que estivesse à mão era arma – e que chegavam a envolver muita gente, gente a mais, para nos separar. Nessa altura, éramos mesmo unha com carne, mas não da forma benévola que se poderia depreender da metáfora. As fúrias eram sérias, às vezes perigosas, mas nunca duradouras.
Anos mais tarde, fazendo ambos parte do Grupo de Forcados de Santarém, não havia toiro que saísse à praça e que fosse atribuído ao Nuno para pegar, que eu não me oferecesse para ajudar, mesmo quando as forças já me faltavam. Chorámos muitas vezes, em jantares fora de horas, o amor que nos ligava e que nos fazia arriscar a vida um pelo outro e por algo que nos transcendia. A diferença dos nossos feitios e inclinações não se notava quando vestíamos a mesma jaqueta.
Hoje, o Nuno vive e trabalha na Roménia e a sua família (que, entretanto, cresceu!) está lá com ele e há parte de mim que não está completa sem o(s) ter por perto. Como não houve quando a minha irmã Nônô viveu oito anos na Colômbia (felizmente já a temos de volta e à família) ou quando eu, por estar quase quinze anos em Bruxelas, acompanhei menos a minha irmã mais nova, a Maria, com quem, por ser o “mano mais velho” e seu padrinho, tenho uma ligação quase paternal.
Somos quatro. Cada qual com o seu fado, o seu feitio e a sua perspectiva sobre as coisas. Une-nos uma história, nem sempre fácil, o mesmo sangue e inúmeras cumplicidades, que nos tornam comunicadores únicos, guardiões de memórias particulares, custódios de tesouros só nossos, como o exemplo de fibra da nossa Mãe, o brilho dos olhos da nossa Avó, ou a ternura das mãos do nosso Avô.
Recebemos e partilhámos amor, discordámos muitas vezes, e dissemos uns aos outros coisas muito duras que mais ninguém se atreveria a dizer. Nem sempre da forma mais caridosa, nem sempre do modo mais eficiente, mas sempre com o sentido de verdade próprio de quem partilha muito mais do que um caminho e de quem se conhece desde sempre. E para sempre.
Vimo-nos crescer, cair e levantar, sofrer e alegrar, ser pais (e tios e padrinhos dos filhos uns dos outros), entrelaçámos ainda mais as nossas histórias e, estando perto ou longe, formamos uma família alargada que se expande naturalmente e que converge e cerra fileiras quando mais tem de ser. Sobretudo nos momentos de dor e de partida e nos de maior júbilo e de começo.
Para além da Fé que nos alimenta aos quatro – falível e imperfeita e insegura como todas acabam por ser – temo-nos uns aos outros e sabemos disso. Não caminhamos sozinhos, mesmo quando as sombras se adensam e o frio aperta.
Como em muitas famílias, há um grupo “Manos” no WhatsApp em que se combinam logísticas de Natais e Páscoas, presentes a dar, roupas para passar aos mais novos, e em que se decidem assuntos mais sérios ou se antecipam conversas.
Ao longo de todo estes anos, temos tido a sorte de viver parte dos Verões em conjunto, e de ver crescer os nossos filhos com a liberdade que tivemos e a alegria de os saber amigos e também cúmplices, como nós fomos. O sol de São Martinho, a areia fina e a água fria trazem com eles as memórias do tempo em que eles éramos nós. E o nosso reencontro anual, a nossa vida em comunidade, numa improvisação organizada a que o génio feminino não é alheio, reaviva-as e fortalece-as e constrói novas memórias, em que já somos mais espectadores, divertidos, enternecidos ou (quando calha) furiosos, do que actores principais.
Somos quatro. Quatro vidas feitas de muitas escolhas, que já encerram muitas vidas próprias e acolheram vidas novas. Nunca estaremos inteiramente de acordo em tudo, mas também nunca divergiremos completamente. Certos, ou não, das razões uns dos outros, nunca seremos completamente nós sem a presença e a perspectiva dos que connosco comungam, mais do que a origem, o percurso que é feito de amor, mesmo quando este é exigente.
Para o Nuno, a Nônô e a Maria, todo o meu amor, a minha gratidão e o meu carinho. Coube-me ser o mais velho. Espero que me desculpem por todas as vezes em que possa ter estado menos atento ou mais indisponível. Espero, ainda, que, quando chegar a nossa hora, Deus possa olhar com benignidade para aquilo que fizemos uns dos outros enquanto irmãos.