A Diretora daquela instituição de acolhimento a menores estava desesperada. Com as eleições à porta, comícios, jantares de políticos e campanhas de rua, não conseguia reunir quem ajudasse a resolver o seu problema. O dramático incêndio da semana anterior devorara parte das instalações e as ‘suas’ 25 crianças e jovens tinham sido acolhidos provisoriamente no velho quartel de bombeiros e numa escola primária desativada, mas era apenas uma solução provisória.
Falara entretanto, com o prior da paróquia vizinha, com o presidente da Junta de Freguesia e algumas outras pessoas, e por fim, tinham-lhe sugerido que, até terminarem as obras, tentasse arranjar algumas famílias de acolhimento para aquele período de três meses de férias… e assim era aquela a sua derradeira esperança! Nessa noite reuniria com alguns casais da zona que lhe tinham sido recomendados. Sentia o coração muito apertado…Encontraria receptividade?
Elvira e Duarte tinham estado na reunião com a Diretora, no salão da Junta de Freguesia. Tinham visto as fotos das crianças e jovens. Logo ali algumas famílias se tinham oferecido para acolher vários bebés e crianças durante os três meses, até ao início do ano letivo. Eles porém, não se tinham manifestado.
Agora, caminhavam um ao lado do outro, lentamente, pela rua escura, em silêncio. Acabavam de ter uma forte discussão e como sempre, tinham resolvido parar e pensar melhor sobre o assunto. Voltariam a falar no dia seguinte…
Tinham a vida organizada, não eram propriamente ricos, trabalhavam ambos por conta de outrem, embora tivessem herdado um pequeno negócio – uma loja de flores, e com muita cabeça, alguns sacrifícios e sem luxos, podiam até dizer que viviam com algum conforto; tinham quatro filhos, entre os 16 anos e os 6, dois rapazes seguidos de duas meninas, e com grande desgosto, tinham perdido dois bebés pelo meio.
Elvira gostava da ideia de serem família de acolhimento, mas Duarte achava que o filho mais velho já lhes dava dores de cabeça suficientes, agora que entrara numa súbita crise de rebeldia tão própria da adolescência …não queria nem ouvir falar no assunto…fora à reunião por engano, julgando que seria outro o tema! Aliás, há muito que sonhava comprar um iate em segunda mão, e havia agora, muito em breve, uma hipótese, por isso excluía por completo, a ideia de ser família de acolhimento …era assunto encerrado!
Nessa noite, Duarte, de costas voltadas para a mulher, adormeceu rapidamente! Elvira ficou acordada até muito tarde. De olhos pregados no teto, não conseguia dormir! Pensava maduramente sobre o que ouvira à diretora da instituição. Ela sabia que encontraria, provavelmente, com maior facilidade, famílias de acolhimento para os bebés e crianças mais pequenas, mas o maior problema eram as cinco crianças mais crescidas e sobretudo, um rapaz de 16 anos.
E se acolhessem esse jovem? Elvira fizera muitas perguntas, apesar de perceber o olhar reprovador do marido…tinham ouvido a diretora explicar que se tratava de um rapaz difícil, mau aluno, muito reservado, institucionalizado desde os quatro anos, e que sofrera maus tratos na infância …Elvira só pensava que talvez ali em casa deles, num ambiente familiar, pudessem ajuda-lo a cicatrizar as feridas da alma e assim, talvez ele se pudesse modificar e, por outro lado, quem saberia dizer, se a história da vida dele não seria boa também para o filho mais velho perceber que devia mudar de atitude…? Aquele seu egoísmo, os maus modos, o silêncio constante e a obsessão pelos jogos no telemóvel preocupavam- na bastante…
No dia seguinte, era sexta-feira, Elvira aguardou a melhor ocasião para falar com o marido…e ‘voltou à carga’, enquanto preparava o jantar, dizendo- lhe:
“… e se o convidássemos para um fim de semana na praia connosco? Deixa lá experimentar… nós nem o conhecemos…podíamos ver como corre e decidíamos depois!? Só uns dias connosco…Que te parece, Duarte?”
Duarte ficou calado. Foi ver o telejornal, queria ver as notícias das eleições europeias e das malditas guerras, mas naquela noite nem ouvia nada… estava demasiado distraído…
Era um homem de bom coração, detestava discussões conjugais… pensou melhor, e ao fim do jantar, quando todos se levantavam da mesa, chamou-os à sala e explicou aos filhos que a mãe e ele tinham decidido convidar um rapazinho sem família para passar aquele fim de semana e os dois feriados seguintes com eles. Iriam até ao Algarve, ao velho monte dos avós, sobranceiro ao mar e ao lado da praia, aproveitando os feriados para fazerem aquela ‘ponte’.
Com exceção do filho mais velho, que parecia absorto noutro mundo e, como de costume, muito mais interessado no telemóvel, todos se mostraram entusiasmados com a ideia. Radiante, Elvira abraçou o marido, agradeceu-lhe a decisão e apressou-se a contactar a Diretora da instituição, logo combinando ir buscar o rapazinho no dia seguinte antes do almoço. E assim aconteceu… durante toda a viagem até ao Algarve o rapaz não falou. Comeu com voracidade do picnic que levavam, olhava para todos, como que se quisesse falar, mas nada dizia… e na estação de serviço recusou o gelado que lhe queriam oferecer.
Todos repararam que ele nunca sorria. Naquela tarde, à chegada ao Algarve, foram todos até à praia, e o filho mais velho de Elvira e Duarte emprestou-lhe uns calções de banho que ele não tinha. Enquanto os três irmãos mais novos brincavam na areia, o filho mais velho, a pedido dos pais, foi-se sentar ao lado do rapaz … tentando conversar com ele…a tarde foi passando e o rapaz pouco ou nada dizia. Pouco depois, no regresso a casa, já com os banhos tomados, quando se preparavam para jantar, o filho mais velho, reparando que o rapaz tinha frio e tiritava, por iniciativa sua, sem que lho pedissem, levantou-se, foi buscar a camisola nova, de que tanto gostava, e emprestou-lha. Sem um sorriso sequer e sem dizer palavra, o rapaz aceitou-a prontamente.
Em cada dia porém, foram notando pequenos progressos. O rapaz começou a falar, e aos poucos, naturalmente, passou a querer fazer o que todos faziam e até queria ajudar a pôr e a levantar a mesa, e na praia já jogava futebol com todos. Um dia, alugaram um barco e foram todos à pesca. No regresso, vinham muito contentes com a pescaria e os banhos numa praia deserta… cozinharam o peixe ao ar livre e fizeram serão na praia. O pai tocou viola, os miúdos e a mãe cantaram e o rapaz ouvia atentamente… Só o sorriso parecia difícil de conquistar…
À noite, Elvira ia sempre dar um beijo de boas-noites a cada um. Os dois irmãos e o rapaz dormiam num quarto e as duas meninas noutro. O rapaz ouvia Elvira rezar ao Anjo da Guarda com os mais novos. Na última noite, ao beija-lo, Elvira apercebeu- se de lágrimas no rosto do rapaz e ao perguntar-lhe porquê, apenas ouviu os seus soluços… abraçou-o com ternura, fez-lhe uma festa na cabeça, e depois, quando ia a fechar a porta do quarto, o rapaz, ainda acordado, chamou-a e pediu- lhe baixinho, para lhe ensinar a rezar ao Anjo da Guarda. Elvira voltou atrás, sentou-se à beira da cama, deu-lhe a mão, e rezou com ele, uma vez, duas vezes, três vezes… até que o rapaz adormeceu. Depois, saiu em bicos dos pés, fechou a porta sem ruído e foi ter com o marido. Conversaram os dois longamente. E o marido contou- lhe que o filho mais velho lhe dissera que nessa tarde o rapaz lhe comentara de repente, sem mais nem menos:”… ó pá, sabes? Tens muita sorte em ter uma família…!”
No dia seguinte, à hora de iniciar a viagem de regresso à cidade, já com o carro pronto, ninguém encontrava o rapaz. Por fim, Duarte foi dar com ele a chorar, no sótão da casa. Abraçando-o, perguntou- lhe por que razão chorava… e o rapaz entre lágrimas, agarrado a ele acabou por dizer: “… porque vocês são a família que eu gostava de ter… e agora nunca mais vos torno a ver… vou ficar sozinho outra vez…!”
No final daquela semana, muita coisa mudou naquela família. A decisão foi unânime: o rapaz ficaria com eles! Seriam uma família de acolhimento…pelo menos durante aqueles três meses de verão… e depois logo se veria…
Quando Elvira e Duarte foram falar com a Diretora e explicar a sua intenção, o filho mais velho também quis ir com eles. O rapaz acompanhava-os, com uma expressão muito diferente! A Diretora olhou-o e ao escutar a família, de imediato percebeu a transformação… Finalmente, o rapaz tinha um enorme sorriso na cara…
Com a ajuda do seu novo amigo, recolheu os seus poucos pertences, e despedindo-se da Diretora, voltou para a casa onde aprendera a sorrir, de coração cheio… começava a ser feliz! E não era o único naquela família …tinha-lhes nascido um quinto filho…