Maria do Carmo saiu de casa, apressadamente, para chegar ao liceu da filha Carminho, a tempo da entrevista com a diretora de turma. Tinha pena que mais uma vez o marido não quisesse acompanhá-la, mas não fora uma surpresa quando o marido lhe dissera: – ‘Vai tu, vai, vai, Carmo, tu já conheces a professora, e eu não…não faço falta… e de resto, o que é que ela poderá ter de especial para nos dizer agora, no fim do ano letivo? Nós bem conhecemos a nossa Carminho! Ela é a melhor aluna da turma, uma miúda invulgar, um amor…olha, vai lá tu e agradece à professora por mim!’
Maria do Carmo, na verdade, até já estava habituada a tratar dos assuntos da escola, tinha sido sempre assim! O seu marido, era um excelente advogado, um homem muito ocupado, viciado em trabalho, e ‘pés na terra’, sim, ela conhecia bem as qualidades do marido, mas às vezes sentia-se sozinha e tinha muita pena que ele não a acompanhasse.
A caminho do liceu, também ela se interrogava sobre o porquê daquela entrevista, agora que os exames estavam terminados e as notas prestes a sair.
Ao entrar no velho liceu, que ela própria frequentara, deparou-se com um bando de alunos mais velhos, em grande algazarra. Ocupavam quase todo o átrio, e entre si comparavam as respostas às perguntas dos exames que acabavam de realizar. Como era diferente o ambiente atual! Na forma de vestir, de conviver e de falar, mas ao mesmo tempo, as emoções eram as mesmas de antigamente, uns riam, outros choravam, ao descobrirem o que haviam acertado, ou o que tinham errado…uns logo se afastavam, tristes, ou furiosos, enquanto outros tentavam consolar- se mutuamente…
Maria do Carmo pediu a uma aluna para chamar a prof. Natália e logo que esta a veio receber, com um grande sorriso, acompanhou-a até um pequeno gabinete. Já sentadas, a prof. Natália começou por dizer:’- Certamente, estará admirada por vos ter chamado. Tenho muita pena de não poder falar também com seu marido, mas sei que lhe contará tudo… queria dizer- vos que este é o meu último ano na escola. Vou-me aposentar e resolvi por isso, ter uma conversa com os encarregados de educação de todos os meus alunos, enquanto diretora de turma. No vosso caso, esta é uma conversa diferente e muito gratificante, porque devo dizer que em mais de 40 anos de serviço, não creio ter encontrado alguma vez uma aluna tão completa como a vossa filha Carmo! Queria por isso, felicitar-vos, agradecer-vos e partilhar algumas histórias, que talvez vossa filha nunca tenha contada em casa… exatamente por ser tão simples e despretensiosa… ‘
Maria do Carmo, comovida e atenta, ouvia as histórias da professora. Efetivamente, a filha nunca se gabava de nada…
‘… resumindo, a vossa filha é muito inteligente, uma excelente cabeça, sempre atenta e cumpridora, tem óptimo rendimento a tudo! Além disso, reúne outras qualidades que para mim têm um valor incalculável, mas que as escolas raramente avaliam…a Carmo tem um coração de ouro, preocupa-se com toda a gente, é pacificadora na relação com colegas e professores, faz ‘pontes’ até com os mais difíceis e complicados, é simples, discreta, simpática e nunca se envaidece dos seus sucessos… enfim, ela é uma garota invulgar! Já agora, gostava de lhe perguntar, se possível, qual o segredo da educação que lhe têm dado?’
Maria do Carmo estava sem palavras. Nunca tivera uma conversa assim com nenhuma professora…
Depois de agradecer os elogios à filha, começou a contar algo de muito pessoal e de que não falava há muito:
‘- Bem, Dra. Natália, meu marido e eu, quando casámos, sonhávamos ter uma família numerosa, uma casa cheia…mas tivemos alguns problemas graves de saúde e perdemos vários bebés! Foi um enorme desgosto… até que passados vários anos, quando já quase desistíamos da ideia de podermos ser pais, de repente, fiquei à espera da nossa Carminho, como lhe chamamos em casa. Ela nasceu bem, foi uma grande alegria, mas infelizmente, com um problema de lábio leporino, como se nota aliás, ao olhar para ela. Sofreu várias cirurgias na infância e outra mais recentemente, por isso sempre lhe demos muito mimo para a compensar… até pensávamos que a poderíamos estragar com tantos mimos…mas não, na verdade, apesar de tudo a Carminho foi sempre uma criança fácil, bem-disposta, paciente, resiliente e, para nosso espanto, sem medo de médicos e hospitais. A minha mãe e eu líamos-lhe muitas histórias, desenhávamos e fazíamos jogos com ela até ela aprender a ler, escrever e desenhar sozinha. Ao longo de muitos internamentos, talvez por ter convivido com muitas outras crianças doentes, sempre a vimos preocupada com os outros. Já mais crescidinha, nos hospitais, queria sempre partilhar brinquedos e consolar os companheiros mais tristes e chorosos. Eu não sei explicar, mas a nossa filha é um presente do Céu…Não duvido…não sei o que lhe reserva o futuro, o que fará… o que irá estudar…’
Nessa altura, a professora interrompeu a mãe para lhe dizer:
‘… desculpe interromper, mas o que quer que a sua filha estude, ou faça, em qualquer profissão, seja na política, na advocacia, ou na medicina, ou engenharia… no que for, ela vai ter êxito! Acredito firmemente, que com a personalidade dela, irá longe… ela é assertiva, corajosa na defesa das suas convicções, muito justa, sabe propor as suas ideias, tem iniciativa e consegue antever problemas e soluções … por outro lado, talvez pelo que me conta de muito sofrimento físico acumulado desde a infância, é sensível, resiliente e simples, sem vaidades, não humilha ninguém com os seus sucessos, o que atrai a simpatia e interesse dos outros que lhe reconhecem superioridade… deixe-me que lhe conte a última história a que assisti a curta distância, na sala de aula, enquanto tomava algumas notas na minha secretária, sem que os alunos se apercebessem…tudo se passou na véspera do exame de Matemática, e vi um grupo de colegas a pedirem- lhe que explicasse um problema mais difícil que só ela tinha conseguido resolver. Em dada altura, depois de várias explicações, ouvi-a dizer, que não tinha nenhum segredo especial para ser boa aluna… apenas estava atenta nas aulas, tirava apontamentos, repetia várias vezes os exercícios em casa e depois… rezava a Nossa Senhora, pedia ajuda ao Espírito Santo e ia dormir… sem medo e confiante… Alguns alunos afastaram-se, rindo e troçando, mas outros olhavam-na com respeito e admiração. Ela sorriu aos colegas e com ar muito natural propôs ensina-los a rezar, se e quando quisessem… Bem, estimada Mãe, só queria mesmo dizer-lhes, que com a vossa filha, também eu, professora em fim de carreira, aprendi muito, e sinto-me feliz e grata por a ter tido como minha aluna!’
Maria do Carmo levantou-se. Era já tempo de terminar. Limpou umas lágrimas furtivas, pigarreou, e agradecendo, abraçou com carinho aquela professora tão especial, de quem a Carminho há muito lhes falava e de quem gostava tanto.
No regresso a casa, ia pensando em tudo o que a professora lhe dissera e que queria contar ao marido. (No seu íntimo, tinha de reconhecer que talvez já fosse tempo de também ela e o marido reaprenderem alguma coisa com a querida Carminho…)