CONTO: UMA MANHÃ EM FÉRIAS

Fátima Fonseca, Professora de Línguas e Especialista em Orientação Familiar

Aquelas férias na ilha das Flores, ali em frente à pequeníssima ilha do Corvo – o território português mais ocidental e mais próximo dos Estados Unidos- tinham sido um presente abençoado para todos!

Sete dias juntos, em família, passeios aventurosos por terra e mar num local paradisíaco, a Natureza no seu esplendor máximo, pouco explorada pelo homem, com tempo excelente, rodeados de um mar de azul intenso, piscinas naturais escavadas nas rochas a convidarem a bons mergulhos no mar, cascatas belíssimas por todo o lado, escarpas abruptas cheias de vegetação e de flores típicas – as cana – roca amarelas – tudo aquilo era um privilégio inesquecível…

Todos sentiam que aquelas férias aproximavam avós, filhos e netos, proporcionando-lhes um convívio alegre e delicioso, num ambiente de paz, longe do ruído e da confusão da cidade, do trabalho e da escola.

Nos últimos anos, ao ver tantos familiares e amigos a adoecer e a partir, a avó sentia cada vez mais, que o seu tempo de vida se aproximava do fim… e tinha pena de não revelar aos seus, muita coisa que guardava no coração. Lembrava-se bem de uma canção do seu tempo- ‘Hier encore j’avais 20 ans…’, de Charles Aznavour, e dava consigo a olhar o passado, por vezes com pena do tempo perdido… e queria muito que eles não fizessem essa descoberta demasiado tarde. Sentia urgência, mas não sabia como comunicar essa mensagem, sem impor, sem magoar, sem parecer uma intromissão, ou uma ameaça à sua liberdade!

Olhava- os com ternura, em silêncio, e pedia a Deus no seu íntimo, uma oportunidade para lhes dizer algo que fosse útil e lhes desse pistas que lhes fortificassem o caráter, que os ajudassem a crescer bem e a amadurecer por dentro, mas via como os netos por vezes se afastavam dela para conversarem mais à vontade. Tinham os seus segredos. E sabia que os avós eram, na verdade, os velhos, os idosos…lembrava-se bem de ter passado pelo mesmo na sua adolescência…sim, havia um fosso de gerações … e era natural…

Sim, o mundo estava bem diferente e ela sabia… cinquenta anos eram passados desde a sua juventude! Tudo mudara profundamente: bastava abrir a televisão, ver alguma telenovela, ouvir debates de ideias e de políticas, olhar o incrível desenvolvimento tecnológico, chegar à janela, percorrer as ruas da cidade, cruzar-se com gente diferente e de todas as raças, e ver homens e mulheres, de todas as idades, cheios de tatuagens, rapazes cheios de brincos, pulseiras e anéis, piercings no nariz e cabeças rapadas, ou cabelos azuis ou verdes, e calças rotas, roupas estranhas…aquilo não era propriamente algo esteticamente bonito, para seu gosto, claro, …tão pouco se adaptava às novas tendências femininas, que em qualquer lugar – rua, escola, local de trabalho, igreja, ginásio, ou praia – apostavam em destapar cada vez mais o corpo das jovens e menos jovens, elegantes, ou nem por isso, como se não houvesse limites, nem critérios, e tudo fosse bom, aceitável em qualquer momento e lugar, e em nada houvesse mal…
Numa daquelas manhãs, porém, dois dos netos – uma prima e um primo, ambos de quinze anos – que na véspera tinham apanhado um valente escaldão e ainda estavam demasiado cansados dos trilhos percorridos, em vez de partirem com os restantes primos e tios, à descoberta da ilha, noutra caminhada sob sol escaldante, resolveram ficar no jardim junto da avó e do avô, que se afastara um pouco, absorto em leituras …e ali deitados na relva, começaram a fazer-lhe muitas perguntas:
“Ó Avó, já não me lembro, mas conte lá outra vez, como é que conheceu o avô? E não teve dúvidas ao decidir casar, tendo namorado só 11 meses e com ausências do avô pelo meio? Tão pouco tempo? Como sabia que ia ser para toda a vida? E como era a avó como estudante? … E a sua mãe deixava- a usar mini- saia e decotes? E podia sair à noite com amigos e namorar? E…”

As perguntas vinham em chorrilho e de repente, a avó percebeu que era aquela a oportunidade de lhes falar de tanto que guardava no coração… e entre risos e comentários dos netos, a avó foi respondendo às suas perguntas e contando-lhes algo mais, muito naturalmente, foi-lhes abrindo o coração:

“… quando meu pai morreu de enfarte miocárdio, repentinamente, em 1963, tinha eu apenas treze anos, e era muito infantil… não tínhamos televisão …minha mãe era muito nova, tinha apenas 48 anos e ficou doente, muito tempo na cama. Rezava muito e pedia-me para a acompanhar e rezar o terço com ela… mas eu tinha alguma preguiça, como vocês …( risos). Meus irmãos preocupavam-se comigo e queriam muito distrair-me…mas pouco a pouco, à medida que fui entrando na adolescência, o meu pai foi-se tornando uma quase presença e referência constante para muitas das minhas atitudes e decisões. Ele era como que o meu ‘grilo’ da consciência, como na história do Pinóquio, lembram-se?

Tinha muita pena de ser tão nova quando ele morreu e não ter podido falar de muitas coisas com ele… Sabia que pouco antes de morrer, numa noite, pedira à minha mãe:” guarda bem esta nossa filha mais nova…”. Mais tarde soube a razão desse pedido: ele era médico ginecologista e obstetra e ficara muito preocupado e triste com a notícia inesperada da gravidez de uma rapariga muito jovem e conhecida, filha de amigos, que lhe aparecera no consultório.

Nesse tempo, a sociedade, a mentalidade e os valores que se transmitiam na educação eram diferentes …além disso, minha mãe tinha de gerir bem o dinheiro, a nossa vida mudara muito, e assim havia pouco dinheiro para as nossas roupas; eu usava roupas da minha irmã, adaptadas a mim, para ir às festas, pois importava sobretudo que não faltasse o dinheiro para os nossos estudos, explicações e institutos de línguas…
Eu sentia a falta de meu pai, admirava-o por muitas razões, e assim, habituei-me a pensar frequentemente e a escrever num caderno, quase diário, como que um diálogo com ele: ‘será que meu pai aprovaria isto…? Ele ficaria contente com esta minha decisão? Se ele aqui estivesse a ver-me agora, eu fumaria os cigarros das amigas só para ‘armar’? Eu iria fazer alguma coisa errada às escondidas de minha mãe? Eu diria, ou faria isto, ou aquilo?

Era assim nas amizades, no estudo, nas idas a festas e cinemas, nas leituras e nas conversas… e sem dar conta, isso ia-me preparando para começar a crescer na fé cristã e no modo de a viver no dia-a-dia, à procura de um sentido para a vida, para lá das aparências e das coisas mais fúteis e materiais, de que eu também gostava muito e me atraíam, como a vocês…mas ia procurando a verdade e coerência, olhando para a religião católica que aprendera em casa de pequenina, com o exemplo de meus pais e da avó com quem vivíamos, já não apenas como uma fé herdada da infância, uma história bonita, mas como um caminho exigente que eu queria descobrir e seguir, mesmo sabendo que isso me obrigaria a fazer escolhas difíceis, do tipo: faço batota nos exames e copio, ou não? visto esta roupa, ou não visto? Vejo este filme, ou não vejo? Aceito aquele convite, ou não? Sei que não me vão entender se calhar, e até se vão rir de mim, mas tento dizer o que penso com respeito por ideias contrárias, delicadeza e coragem…vocês percebem? “
A conversa foi então interrompida nesse momento por um cortejo de vacas que passava estrada acima, à beira da casa onde estávamos, levadas pelo Zé Augusto e sua mulher Celestina. Desta vez não vinham no pequeno tractor azul e branco. E com um grande sorriso na boca desdentada, perguntou-nos:
“ Então, bom dia, sempre querem vir amanhã ordenhar uma vaca?”
Rindo, todos respondemos logo que sim! E com um aceno de adeus, lá continuaram, dizendo: “Então, até amanhã, Senhora, às 8.30, estou aqui e levo- os no trator!”

Entretanto, os miúdos levantaram- se e foram-se refrescar na piscina dos tios, ladeira abaixo, ali perto da cascata, enquanto a avó ali ficava, contemplando o mar e pensando na vida simples daquele casal açoriano tão acolhedor e simpático, pais de vários filhos. Como era diferente a vida deles! E eram felizes naquela ilha pequena, e na simplicidade e pobreza de meios!

Ele era um ‘faz- tudo’: tinha sido músico da filarmónica quando mais novo, agora era já só sacristão, encarregado de tomar conta da igreja local, tocava o sino com quanta força tinha, diariamente, às trindades e durante a Missa dominical na altura da Consagração, e sempre começava o seu dia visitando o cemitério onde já estavam ‘uma porrada de familiares e amigos’ para rezar por eles todos; cuidava das vacas e bezerros, levava-os e trazia-os dos diferentes pastos, fazia a ordenha das suas vacas leiteiras e das de outros vizinhos mais velhos, compunha telhados quando as telhas voavam levadas pelos ventos ali tão frequentes, fazia recados e tudo o mais que fosse necessário numa labuta de sol a sol…por isso também, aos 51 anos, parecia bem mais velho…

E tanta coisa aquela família aprendeu com ele, a quem conheceram no primeiro domingo de estadia na ilha, na tradicional festa do Espírito Santo…na Fajã Grande.
Entretanto, com a chegada do resto da família e a organização de boleias e picnics, a conversa com os netos ficou adiada… o avô abandonou as suas leituras, levantou-se, piscou o olho à avó, e sorrindo, fez- lhe uma festa na mão e comentou apenas, em voz baixa: “ Não te preocupes, por hoje já chega… não exageres…eles são bons miúdos…”

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