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Conto. Bruxas e Fantasmas

Fátima Fonseca, Professora de Línguas e Especialista em Orientação Familiar

Como de costume, a Dra. Lisette lá estava atenta e à espreita, desta vez de olho pregado no óculo da porta! Era a vizinha de patamar, médica, solteira, com perto de 90 anos, a quem por brincadeira, ou algum medo, a miudagem do prédio apelidava de ‘bruxa’, por ter longa e farta cabeleira negra de azeviche, um nariz adunco e andar muito encurvada, sempre com saia preta até aos pés. Ouvira a gritaria, desligara a televisão e fora logo pôr- se à escuta e à espreita.
Os berros ecoavam nas escadas do prédio. De porta aberta para o patamar, na casa dos vizinhos, ela via o Miguel, de costas e cabeça baixa, diante de dois polícias e do pai.

‘ Não me mintas, Miguel!’- gritava-lhe o pai.
Silêncio.
‘ Diz-me a verdade, Miguel: saíste de casa, apesar de te ter proibido? Quem são os culpados? São aqueles amigalhaços da tua escola? O quê que fizeram ao pobre do senhor? Tu também estavas com eles? Não me mintas!!!’

A severidade crescente do pai, o tom ameaçador das suas palavras anunciavam forte tempestade naquela noite, mas Miguel, em lágrimas, remetia-se a um silêncio total, dividido entre a confissão da verdade e a traição dos amigos.

Na véspera, 31 de outubro, os amigos da escola – um grupo de cinco alunos da mesma turma do 8º ano que moravam ali no bairro – tinham combinado celebrar o ‘Halloween ‘, pregando umas partidas… vestidos de preto, ou de branco, com máscaras de fantasmas e bruxas, iriam bater às portas e assustar as pessoas que encontrassem nas ruas…Miguel achara piada à ideia e preparava- se nessa noite, para sair e juntar- se ao grupo, quando o pai lhe perguntou o que ia fazer.

Miguel respondera que ia só até ao café encontrar uns amigos e depois decidiam…Suspeitando que o filho não lhe dizia toda a verdade, e recordando que já no ano anterior em noite de Halloween tinha havido asneira grossa com alguns alunos da turma, o pai proibira Miguel de sair de casa naquela noite, dizendo que sabia que ele ia ter teste de Matemática nessa semana e o que tinha a fazer era pôr- se a estudar.
Aparentemente Miguel acatara as ordens, mas, furioso, batera com a porta atrás de si e muito contrariado, fechara-se no quarto. Porém, pela meia-noite, apercebendo-se de que os pais já se tinham ido deitar, Miguel, sem fazer ruído, pegou nas chaves , abriu a porta cuidadosamente e saiu para ir ter com os amigos.

Quase a chegar à esquina da rua, com casaco preto e lençol branco debaixo do braço, vira, de repente, à distância, um vulto caído no chão, uma ambulância parada e um carro de polícia. Assustado, reconhecera dois dos seus amigos. Escondendo- se então, na entrada do prédio em frente, ficara a ver o que acontecia. Viu dois dos rapazes a falarem com a polícia, que depois os metera no carro, enquanto os bombeiros levavam a pessoa caída, numa maca para a ambulância.

Miguel voltara para casa, preocupado, depois de ver os carros arrancarem, sem saber o que teria acontecido.
Telefonou a um dos amigos que lhe contou que as coisas tinham corrido mal… dizia ele, que estava a ser muito divertido assustar as pessoas, mas tinham encontrado um homem já velho, meio embriagado, a tentar abrir a porta de casa, e quando o rodearam para o assustar, ele caíra no chão, desamparado e sem sentidos… uns rapazes tinham fugido, mas os outros dois tinham chamado por socorro, e agora nada mais sabia contar.

Miguel conhecia bem aquele vizinho e até tinha simpatia por ele. Que lhe teria acontecido? Teria morrido? Que grande aflição …pobre velhote, viúvo e sem filhos…! E já previa que os seus amigos iam ter grandes problemas…
mas o que Miguel não esperava era que os colegas o envolvessem … e agora, na noite seguinte, com a polícia à porta de sua casa, de repente percebia que algum deles tinha dado o seu nome também.

A mãe tentava interpor-se, aflita e nervosa, vendo que o marido estava de cabeça perdida ante o relato dos factos e o interrogatório dos polícias.

Eis senão, quando de repente se abre a porta de casa da Dra. Lisette e esta aparece de chinelos dourados, roupão cor-de-rosa e rolos na cabeça, pedindo desculpa por interromper.
‘ – Meus Senhores, muito boa noite. Queria ajudar, se me permitem! Tenho dificuldade em me deitar cedo e ontem à noite fui para a janela… como é meu costume. Apago as luzes e fico a ver os carros, as pessoas… vi tudo o que aconteceu, as brincadeiras estúpidas de cinco miúdos vestidos de fantasmas e bruxas a assustarem pessoas, mas posso garantir que este jovem não teve nada a ver. Ele não estava com os outros miúdos. Eu conheço- o muito bem desde pequeno e vi tudo! Srs. guardas, por favor deixem o rapazinho em paz e os pais também! São gente boa! Adeus! Muito boa noite!’

Perante aquele testemunho, os polícias acabaram por se retirar, o silêncio voltou ao prédio e a paz parecia reinar de novo naquela família.
Porém, quando os pais abraçaram Miguel e o pai lhe quis pedir desculpa, Miguel desatou num pranto e disse- lhes que tinha algo mais para lhes dizer, mas queria chamar a Dra. Lisette. O casal entreolhou-se com algum espanto, e Miguel, sem esperar resposta, foi bater à porta da vizinha, pedindo-lhe por favor que viesse a sua casa. Um tanto admirada, a vizinha aceitou o convite.

Miguel fechou a porta, e depois de todos se sentarem, pediu desculpa aos pais e revelou o que queria contar: toda a verdade! Sim, na véspera ele desobedecera aos pais, saíra mesmo de casa, quando eles já dormiam, com intenção de se juntar aos amigos e ir pregar partidas e sustos, mas quando chegara à rua já tudo tinha acontecido e regressara a casa pouco depois. Queria agradecer à vizinha, porque ele bem a tinha visto à janela e sabia que ela o tinha visto sair e regressar… mas percebia que ela quisera defende-lo da acusação de algum dos colegas que injustamente o incriminara. Por sorte, ele não participara em nada, mas tinha de lhes dizer toda a verdade…

A noite já ia adiantada quando a conversa terminou com um chá e umas bolachas que a mãe de Miguel fora preparar. Felizmente, entretanto, a médica também pôde tranquilizá-los, porque ao longo desse dia conseguira saber notícias do vizinho, que acabara por estabilizar e recuperar do susto…

Nessa noite, ainda às voltas na cama, Miguel recapitulava as lições aprendidas: as más companhias e algumas das suas brincadeiras são bem mais perigosas que fantasmas imaginários; desobedecer aos pais e mentir têm más consequências e tudo acaba por se descobrir… e ‘nem tudo o que parece, é’, pois a vizinha ‘bruxa’ afinal nada tinha de bruxa, era sim, uma querida e boa amiga!

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