Mas, afinal, o que se discute? Quais são essas “amarras”? E, se elas existem, são realmente ideológicas? Será que esta disciplina foi concebida pela esquerda marxista do país?
Foi um congresso morno. Havia que abanar! Que provocar as lides!
E, no meio deste sentimento, Luís Montenegro anuncia, no seu discurso de encerramento do 42º congresso do PSD, sete grandes medidas (já conhecidas) mas que precisavam de novo fôlego, e uma delas é o libertar de “amarras ideológicas” a disciplina de Cidadania e Desenvolvimento.
O efeito foi imediato. O congresso foi ao rubro! Sim, pensou o Primeiro-Ministro. Consegui! Termino um congresso morno, sem nada para dizer do partido da oposição (que já havia anunciado a viabilização do Orçamento de Estado), com um tema que tira votos à extrema-direita e agita as bandeiras num PSD cada vez menos social-democrata!
Mas, afinal, o que se discute? Quais são essas “amarras”? E, se elas existem, são realmente ideológicas? Será que esta disciplina foi concebida pela esquerda marxista do país?
A disciplina de cidadania tem a sua origem num grupo de trabalho criado pela então Ministra da Educação, Isabel Alçada, que criou um grupo de trabalho para estudar e apresentar uma Proposta Curricular para os Ensinos Básico e Secundário. Em 2012, já com o PSD no governo, foram dados passos significativos na construção do currículo desta disciplina, e as linhas orientadoras que “sobrevivem” no site da Direção-Geral de Educação datam de 2013, igualmente do tempo do PSD.
Primeira conclusão: As amarras ideológicas são do tempo de Passos Coelho!
É importante perceber que as mudanças nos currículos nacionais não acontecem de forma arbitrária ou anual. Elas resultam de processos abertos, amplamente discutidos e colaborativos, que envolvem o Conselho Nacional de Educação, associações de escolas, a Associação Nacional de Municípios, as regiões autónomas e outros agentes educativos. O Estado não altera os curricula sem uma base de investigação científica e orientações internacionais que reflitam as necessidades educacionais da sociedade. Aliás assim, garante-se que os conteúdos programáticos são consistentes e adequados ao desenvolvimento das crianças e jovens.
O que são “amarras ideológicas”? Esta expressão surge frequentemente associada, nos últimos anos, a debates sobre a inclusão de conteúdos que abordam igualdade de género, diversidade e cidadania global. “Amarras ideológicas” é utilizado para insinuar que estes conteúdos são influências indesejáveis ou manipuladoras.
E a não ser que ande muito distraída, de 2012 aos dias de hoje, só se fala em combate à “ideologia de género” (qualquer coisa que não sei o que é) desde que a extrema-direita libertou as amarras e saiu do armário, onde se escondeu durante 45 anos! Começou assim, a ser criado um novo argumento, que foi ganhando voz, com o apoio até de alguma comunicação social, de que as crianças seriam sujeitas a “práticas” que poriam em causa o verdadeiro papel da Escola e dos pais.
Até agora, nenhuma evidência fundamenta essa alegação. Mas isso pouco interessa, pois as redes sociais cumprem o papel de amplificar estas perceções, criando a ideia de que esta disciplina pode distorcer a identidade e os valores das crianças e jovens.
Segunda conclusão: O PSD já não é PSD. Está socialmente próximo do Chega, quer se goste ou não!
Então, o que se pretende com esta disciplina? Que conteúdos são realmente dados?
A “educação para a cidadania visa contribuir para a formação de pessoas responsáveis, autónomas, solidárias, que conhecem e exercem os seus direitos e deveres em diálogo e no respeito pelos outros, com espírito democrático, pluralista, crítico e criativo” (Educação para a Cidadania, Linhas Orientadoras, DGE, 2013).
As temáticas são várias: direitos humanos, igualdade de género, interculturalidade, desenvolvimento sustentável, educação ambiental, saúde, sexualidade, organização e participação democrática, e literacia financeira. Assim, pergunto: quais são os valores constitucionais que o Primeiro-Ministro quer ver respaldados nesta disciplina? E, já agora, que explique se os conteúdos referidos não estão já previstos na Constituição da República.
Terceira conclusão: Os conteúdos programáticos desta disciplina não importam. O que importa mesmo, para o Primeiro-Ministro, é alcançar mais likes, mais gostos e, se possível, mais votos.
No fundo, o que está em causa não é o conteúdo da disciplina, mas sim o aproveitamento de um discurso que alimenta divisões e angaria votos. A cidadania que se ensina nas escolas promove valores democráticos, e não ideologias ocultas. No fim, quem lucra com o medo e com esta manipulação não é o país, mas quem faz deste ruído a sua bandeira política.