Contexto do aniversário da Batalha de Lepanto e da Restauração da Independência
Três histórias de três homens distintos que em comum têm a circunstância biográfica do seu nascimento ilegítimo e o desejo de fazer algo de que fosse além da breve memória mortal definiu hoje uma Europa que não fala turco e um Portugal que não fala castelhano.
Recentemente conversava com um amigo professor de História que me disse que não gostava de dar os conteúdos da Pré-História, porque não havia personagens concretas. De facto, um dos fatores mais entusiasmantes do estudo da História, com o qual os alunos se podem identificar – quase como se de super-heróis se tratassem –, é com as personagens: quem nunca sonhou pegar na espada de D. Afonso Henriques, espreitar pela luneta através da qual Pedro Álvares Cabral descobriu o Brasil ou segurar no mastro da bandeira que Neil Armstrong deixou na superfície lunar?
A História moderna está repleta de protagonistas, entre os quais os mais evidentes são os povos, mas também há lugar para figuras concretas. O que é um povo se não uma comunidade de pessoas concretas? Diz o ditado: dos fracos não reza a História.
No entanto, a História, em particular de Portugal, também inclui personagens que, como em qualquer livro de aventuras ou romance, tiveram de fazer um duro percurso até à vitória. O triunfo permitiu-lhes que a versão da História em vigor fosse a que eles escreveram. Personagens que, nalguns casos, não eram naturalmente fortes, bem-sucedidos ou de boas famílias, de quem talvez se esperava pouco, cujo nascimento estava associado a um devaneio, um amor clandestino ou um affair. Falo, pois, dos filhos naturais ou ilegítimos, comummente designados de filhos bastardos. Porém, quanto devemos a estes heróis que deram a volta por cima na história deles e na nossa História?
Brevemente, conto a história de três ilustres bastardos que com os seus feitos moldaram a nossa geopolítica, tal como a conhecemos hoje.
D. João da Áustria, o Último Cavaleiro da Europa
D. João da Áustria, nascido Jerónimo, era filho natural do Imperador Carlos V do Sacro Império Romano-Germânico (que compreendia territórios na Áustria, em Espanha, nos Países Baixos e em Itália). Era irmão do Rei Filipe II de Espanha (I de Portugal) que, por legado do pai, reconheceu o jovem Jerónimo como seu irmão. À época, a Europa enfrentava a ameaça das invasões turcas. Para pôr cobro a esta invasão, o Papa São Pio V, convocou os reis da cristandade para lutarem contra os otomanos: estava formada a Liga Santa.
A 7 de outubro de 1571 deu-se a Batalha de Lepanto, na Grécia, que ficou conhecida como a maior batalha naval da História e que pôs cobro de forma definitiva à ameaça turca que assombrava a Europa. Para liderar a Liga Santa, o papa escolheu um jovem bastardo de 24 anos e justificou a sua escolha citando o evangelho: “Apareceu um homem enviado por Deus, que se chamava João”1. A vitória do Generalíssimo da Liga Santa foi relatada de forma épica sob a narração de Miguel de Cervantes, no romance The Last Crusader, de Louis de Wohl.
D. João I e D. Nuno Álvares Pereira: uma amizade que restaurou um reino (duas vezes).
(2) Séculos antes, quando Portugal estava a viver a crise de sucessão de 1383-1385, dois bastardos fizeram da sua própria história a História de um reino, cuja independência foi assegurada por esta amizade intrépida não uma, mas duas vezes, em 1385 e em 1640. Respondem por muitos nomes: o Mestre de Avis e São Nuno de Santa Maria, o de Boa Memória e o Condestável, D. João I e D. Nuno Álvares Pereira.
Partilham o facto de serem filhos ilegítimos: o pai de D. João I era D. Pedro I. Já o Condestável era filho do Prior da Ordem do Hospital, D. Álvaro Pereira, que era filho de D. Gonçalo Pereira, arcebispo de Braga e Primaz das Espanhas. Portanto, D. Nuno era filho de um clérigo, que teve mais de 20 filhos naturais, que por sua vez era também filho de um clérigo. No entanto, a natureza infiel do seu nascimento não definiu o curso da vida de D. Nuno. O Condestável toda a vida foi um amigo leal, conselheiro e executor das ideias de D. João I, aclamado rei não pela sucessão hereditária, mas pela aclamação do povo, como exultou D. João das Regras nas cortes de Coimbra em 1385.
Bastariam os célebres feitos da Batalha de Aljubarrota para ilustrar a grandiosidade dos feitos desta parelha, mas quis a História que a sua aliança fosse duradoira. É que não é possível existir a História de Portugal sem a história destes dois amigos.
Para além de terem vencido as pretensões do Rei Juan de Castela e de terem permitido que a curta vida de um país fundado apenas duzentos anos antes não terminasse devido a um incidente dinástico, também decidiram que os seus filhos casassem: Afonso, filho natural de D. João I, casou com D. Beatriz, única filha de D. Nuno a chegar à idade adulta. Os dois deram origem à Casa de Bragança que, em 1640, viu o seu descendente D. João IV tornar-se rei de Portugal, numa altura em que uma nova ameaça à independência de Portugal estava vigente.
Estas três histórias de três homens distintos que em comum têm a circunstância biográfica do seu nascimento ilegítimo e o desejo de fazer algo de que fosse além da breve memória mortal definiu hoje uma Europa que não fala turco e um Portugal que não fala castelhano. Moral da história e da História: a origem biográfica não é objeção à realização de grandes feitos, quando a nobreza não é adquirida no berço, mas dentro do coração.
1) Jo 1,6;
2) https://www.rtp.pt/play/p10977/e671153/duplas-a-portuguesa;