Naquele fim de tarde de Dezembro, primeiro dia de férias escolares, quando a mãe chegou do trabalho, carregada com sacos do supermercado, e entrou em casa, o caos estava instalado: as duas irmãs, Cristina e Cláudia, respetivamente, de 15 e 12 anos, batiam-se e puxavam-se os cabelos, gritando e chorando de fúria, uma com a outra. O quarto parecia ter sido assaltado … cadeiras caídas, camas desmanchadas, papéis e fotos rasgadas, mochilas vazias, roupas, cadernos e livros, tudo espalhado por todo o lado…A um canto do quarto das irmãs, a mais pequenina, Luisinha, de 5 anos , chorava, assustada.
Mas o que vem a ser isto? Parem já com estas lutas e expliquem- me o que se está a passar aqui!- gritou-lhes a mãe, para se fazer ouvir.
Cristina e Cláudia, pararam de imediato ao darem conta da presença da mãe no quarto delas, enquanto a pequenita corria a abraçá-la. As filhas mais velhas desataram a falar ao mesmo tempo, num discurso cheio de acusações mútuas, mas a mãe não as conseguia entender. Mandou-as então lavar a cara para se acalmarem e que depois fossem à sala, explicar-lhe de imediato o que se passava. Entretanto, a pequenita, quis começar a dizer:
Mãe, foi tudo por causa do telemóvel! as manas zangaram- se, porque…
Quem fala primeiro sou eu! – gritou Cristina, a mais velha, entrando a correr na sala, logo seguida por Cláudia.
Bem, ou as meninas se acalmam, ou então não vos deixo falar!- disse-lhes a mãe, fazendo lhes sinal para que se sentassem à sua frente.
Olhando-se furiosamente, a mais velha explicou que a irmã lhe roubara o telemóvel só para ver as mensagens que ela estava a trocar com amigos e disse que ela era uma mentirosa e não admitia tal falta de respeito; tinha direito à sua privacidade e por isso lhe batera. Cláudia quis então dizer à mãe, que a Cristina estava a mandar mensagens aquele rapaz mais velho que andava a rondar o liceu, e com quem a mãe a proibira de falar; ela bem sabia que eles já eram namorados e tirara-lhe o telemóvel por ela estar a esconder essa verdade e a desobedecer às ordens da mãe.
No meio das explicações atabalhoadas, a exaltação voltara a subir de tom e Luisinha, ao colo da mãe, só dizia : ‘as manas são muito más, pois são, mãe???’
Sentada no sofá, cansada de um dia de trabalho e da ida ao supermercado, a mãe ficou calada por momentos, com uma mão a tapar a cara e a outra em volta da filha pequenina…quando se fez silêncio por fim, descobrindo o rosto, viam- se -lhe lágrimas a cair… mas conseguiu falar numa voz muito triste, procurando autocontrolar-se para não chorar:
– Que vergonha, minhas filhas!!! Se o vosso pai aqui estivesse, ficaria muito triste e desapontado…o pai morreu, é verdade que não está aqui entre nós, mas de lá, onde está, olha por vocês e fica feliz quando vos vê felizes e muito triste quando vocês se zangam ou se portam mal…como é possível que isto esteja a acontecer? Pedi-vos esta manhã, à saída para o trabalho, que montassem a árvore de Natal que ontem comprámos, fizessem alguns desenhos e cartões de Natal e afinal chego a casa e encontro este pandemónio! A cozinha está toda desarrumada e suja, o vosso quarto num estado assustador!!! …Trazia-vos uma surpresa, como vos prometi esta manhã, que seria um presente para todas… mas é assim que a querem merecer? Vão imediatamente limpar e arrumar o vosso quarto, deem -me já o telemóvel, e limpem a cozinha; entretanto, o jantar serão as sobras do almoço e falamos mais tarde…não quero ouvir nem mais um pio…
As duas irmãs saíram da sala sem dizer palavra, e foram, uma para o quarto e a outra para a cozinha. Entretanto, a pequenita adormeceu ao colo da mãe.
À hora do jantar, tudo estava silencioso. A mãe acendeu as luzes do presépio sobre a mesa chinesa, e sentando -se à mesa, limitou- se a dizer- lhes que falariam no dia seguinte.
Depois do jantar que quase ninguém foi capaz de comer, sem um beijo à mãe e sem um pedido de desculpas, Cristina e Cláudia murmuraram umas boas noites, quase inaudíveis, e foram logo deitar-se.
A mãe levou a pequenina para o seu quarto, e apagadas as luzes, foi- se sentar diante do presépio iluminado apenas por dois pequenos castiçais e ali naquela escuridão, chorou, chorou, chorou…lembrava- se bem das últimas palavras do marido, quatro anos atrás, já muito frágil e debilitado, antes de entrar no hospital para mais um internamento, e donde já não saíra com vida…
‘Minha querida, cuida bem das nossas filhas, guarda-as de más companhias… volta para junto de teus pais com elas; quando a vida se complicar aqui na cidade…vocês vão precisar de uma família forte e unida que vos apoie…’
Ela bem sabia a que se referia o marido, pois o irmão dele morrera aos 22 anos de uma ‘overdose’… sim, os maus amigos da vida boémia e da droga tinham destruído aquela família de gente boa e sã, pequenos comerciantes chegados da província à capital…tudo começara quando os dois irmãos andavam no liceu… e agora bem pressentia como aquele perigo rondava sua filha Cristina.
Aos poucos ia-se apercebendo de como a filha adolescente começara a crescer e a ocultar amizades…não gostava nada das suas novas companhias e muito menos desse tal rapaz mais velho que rondava o liceu e nem ali estudava… era o seu sexto sentido de mãe… tinha de agir depressa, enquanto era tempo!
Poucos dias antes, ao prepararem o presépio, a mãe apercebera- se de como a filha estava mudada, mais fechada e mais agreste… onde estava aquela menina doce e sem segredos, de ainda há tão pouco tempo?
Chamara-a de parte e a sós falara com ela sobre más companhias e o uso do telemóvel, assim como sobre o seu rendimento escolar que estava a baixar…
Na altura, Cristina não gostara e respondera mal à mãe, dizendo que não havia razão para preocupações, pois era tudo invenção da Cláudia, sua irmã mais nova, uma ‘queixinhas idiota’…
Já passava das três da manhã, quando finalmente, soprou as velas dos castiçais e sem ruído se dirigiu ao quarto para se deitar… para sua surpresa, foi encontrar na sua cama, deitadas, mas acordadas, as suas duas filhas, Cristina e Cláudia. Ambas, levantando- se de um salto, correram para a mãe, abraçaram-na, encheram- na de beijos e logo ali lhe pediram desculpa…
– Mãe querida, não queremos estragar este Natal! – disse Cristina.
– Mãezinha, desculpe, isto não volta a acontecer! – disse Cláudia.
Deitaram- se as três e a paz voltou a reinar. O amor pôde mais…e o sono chegou.
Nessa madrugada, porém, antes de adormecer, a mãe não lhes disse, mas tinha uma grande surpresa: tinha ido levantar os bilhetes de avião e iriam passar o Natal à Madeira com os avós. Além disso, porém, havia uma outra surpresa! A mãe acabava de tomar uma firme decisão: desta vez iria tratar de tudo o que fosse necessário, para regressar à sua terra natal, mudar as filhas de escola e juntar-se ali aos avós, tios e primos. Sabia como seriam bem recebidas! Há muito que lhe diziam para voltar à ilha…
Estava na hora certa de cumprir a última recomendação do pai.