Nos últimos dias estamos em choque com as notícias que nos chegam da Alemanha. No dia 20 de dezembro, sexta feira à noite um homem dentro de um carro atropelou mais de 200 pessoas num mercado de Natal de Magdeburgo deixando muitas pessoas feridas e matando 5, entre elas uma criança de 9 anos.
Este tipo de ataques, infelizmente, já começam a ser recorrentes na Alemanha, mas este tinha algo em si de diferente. Intrinsecamente diferente. Em casos anteriores os perpetradores dos ataques eram imigrantes que não se tinham adaptado ao país e que, de alguma forma, demonstravam o falhanço da integração desses mesmos imigrantes na sociedade alemã. E em todos esses casos houve um vil aproveitamento político de toda esta situação negativa por parte de partidos extremistas. Uma situação que tem vindo a ser recorrente nos últimos tempos, um aproveitamento por parte de partidos extremistas dos problemas gerados pela imigração.
Mas este caso foi algo diferente. Parece que o perpetrador era um imigrante saudita, mas um imigrante já completamente integrado, médico psiquiatra, a viver desde 2006 na Alemanha. O ataque ao mercado de Natal na Alemanha, realizado por Taleb al-Abdulmohsen, um psiquiatra de 50 anos da Arábia Saudita, foi motivado por uma combinação de fatores complexos. Taleb, que já tinha obtido autorização de residência em 2016, era conhecido pelas opiniões islamofóbicas e críticas ao Islão.
Parece que a motivação por detrás do ataque foi a perceção de que a Alemanha está a acolher os emigrantes e a sua cultura, principalmente o Islão, de uma maneira que está a fazer com que a cultura do próprio país seja, pouco a pouco, substituída pela cultura dos imigrantes. Este pensamento, parece ser bastante distinto do pensamento que emanava dos ataques perpetrados até agora, que eram de certa forma, o oposto.
Nos anteriores atentados eram imigrantes que não se sentiam integrados/acolhidos, que queriam, de certa forma, impor a sua lei e cultura na Alemanha. Ou era isso que determinados partidos queriam transmitir. A adaptação dos imigrantes não corria de maneira adequada, eles queriam impor a sua cultura aos alemães e para isso utilizavam o terrorismo. Toda esta narrativa vinha em desenvolvimento desde a Passagem de ano de 2015 para 2016, devido à vaga de violações perpetradas por imigrantes de sua maioria árabe, que ocorreu um pouco por toda a Alemanha com epicentro em Colónia.
A questão é que este episódio é distinto. Quem perpetrou o atentado foi um imigrante sim, mas alegadamente integrado, que falava o idioma, que adoptou a cultura alemã e, de certa forma renunciou à sua própria cultura e mantinha um trabalho estável e bem remunerado. Ou seja o oposto dos que até agora perpetravam este tipo de ataque.
Este episódio deixou até a extrema-direita alemã quase sem reação e sem saber o que dizer. Pois alguém que simpatiza com a AfD fazer um destes atentados vem destruir toda a narrativa criada à volta dos imigrantes nos últimos anos. Enquanto que nas outras situações se podia considerar que os perpetradores eram conotados com ideologias da extrema esquerda, desta vez seria alguém ideologicamente próximo da extrema direita e a ter os mesmos comportamentos.
Se isto pode parecer uma surpresa, na realidade não nos pode surpreender tanto assim.
As motivações exatas de al-Abdulmohsen ainda não estão totalmente claras, mas as investigações e informações disponíveis apontam para uma combinação de fatores:
Radicalização e Extremismo de Direita: Al-Abdulmohsen demonstrava simpatias por ideologias de extrema-direita e pelo partido Alternativa para a Alemanha (AfD). Expressava opiniões contra a imigração, especialmente de muçulmanos, e criticava o que considerava ser uma “islamização” da Alemanha. Estas visões radicais podem ter contribuído para a sua radicalização e culminado no ataque.
Ressentimento em Relação a Refugiados Sauditas: Algumas fontes indicam que al-Abdulmohsen demonstrava insatisfação com o tratamento dado aos refugiados sauditas na Alemanha. Este sentimento de injustiça ou negligência pode ter sido um fator motivador para o ataque.
Problemas Pessoais e Instabilidade Mental: Embora não seja a única explicação, é possível que al-Abdulmohsen sofresse de problemas de saúde mental que tenham influenciado o seu comportamento e a tomada de decisão de realizar o ataque.
Oposição ao Islão: Al-Abdulmohsen tinha abandonado a fé islâmica e expressava abertamente a sua oposição à religião. Este aspeto pode ter influenciado a sua visão sobre a sociedade e contribuído para a sua radicalização.
É importante notar que as motivações de atos complexos como este raramente são atribuíveis a um único fator. No caso de al-Abdulmohsen, parece ter havido uma combinação de ideologias extremistas, ressentimentos pessoais e possivelmente problemas de saúde mental que o levaram a cometer o ataque.
Também vivemos num mundo cada vez mais polarizado. Os extremos cada vez se extremam mais, e o centro político desaparece. Há diversas causas para esta evolução e este estado de coisas:
Desigualdade Económica: A crescente desigualdade económica tem levado a um sentimento de injustiça e frustração entre as populações. Muitas pessoas sentem que os sistemas económicos e políticos não estão a funcionar, o que pode levar ao apoio a partidos e movimentos políticos mais extremos que prometem mudanças radicais.
Globalização e Imigração: A globalização e os fluxos migratórios têm gerado tensões em muitas sociedades. Questões como a imigração e a integração europeia são pontos de discórdia significativos, levando a uma maior polarização entre aqueles que apoiam políticas mais abertas e inclusivas e aqueles que defendem políticas mais restritivas.
Redes Sociais e Media: As redes sociais e os media desempenham um papel crucial na amplificação da polarização. As plataformas de social media muitas vezes criam bolhas de informação, onde as pessoas são expostas apenas a opiniões que reforçam as suas próprias crenças. Isso pode levar a uma maior radicalização e a uma visão mais polarizada do mundo.
Declínio da Confiança nas Instituições: A confiança nas instituições políticas e governamentais tem diminuído em muitas partes do mundo. Esse declínio na confiança pode levar as pessoas a buscar alternativas fora do mainstream político, muitas vezes em movimentos mais extremos que prometem uma ruptura com o status quo.
Crises Económicas e Sociais: Crises económicas e sociais, como a crise financeira de 2008 e a pandemia da COVID-19, exacerbaram as divisões políticas. Em tempos de crise, as pessoas tendem a buscar soluções rápidas e radicais, o que pode levar ao aumento do apoio a partidos e movimentos políticos extremos.
Identidade e Cultura: Questões de identidade e cultura também desempenham um papel importante na polarização política. Debates sobre identidade nacional, direitos das minorias e valores culturais podem ser altamente polarizadores, levando a uma maior divisão entre diferentes grupos dentro da sociedade.
A combinação desses fatores cria um ambiente propício para a polarização política, onde as opiniões se tornam mais extremas e os consensos se tornam mais difíceis de alcançar.
Mas então se os partidários de ideologias da extrema direita e da extrema esquerda acabam utilizando os mesmos métodos e acabem, de alguma forma a defender o mesmo, o que os diferencia?
A ideia de que os extremos políticos se tocam é conhecida como a “teoria da ferradura”. Esta teoria sugere que, apesar de estarem em lados opostos do espectro político, os extremos da esquerda e da direita podem acabar adotando métodos e atitudes semelhantes. Aqui estão algumas razões pelas quais isso pode acontecer:
Desconfiança nas Instituições: Tanto os extremos da esquerda quanto da direita tendem a desconfiar das instituições estabelecidas, como o governo, os media e as grandes corporações. Essa desconfiança pode levar a uma rejeição das normas e regras convencionais, resultando em comportamentos e retóricas semelhantes.
A Procura por Mudança Radical: Os extremos políticos frequentemente procuram mudanças radicais na sociedade. Eles acreditam que o sistema atual é profundamente errado e que apenas uma transformação completa pode resolver os problemas. Essa procura por uma mudança radical pode levar a táticas e estratégias semelhantes, como protestos, manifestações e, em casos extremos, violência.
Narrativas Simplistas: Ambos os extremos tendem a adotar narrativas simplistas que dividem o mundo em “nós contra eles”. Essa visão binária pode levar a uma polarização extrema e a uma rejeição de compromissos ou soluções moderadas. A retórica pode ser semelhante, com ambos os lados demonizando os seus oponentes e apresentando-se como os únicos verdadeiros defensores da justiça.
Atração de Indivíduos Descontentes: Os movimentos extremistas muitas vezes atraem indivíduos que estão profundamente descontentes com o status quo. Esses indivíduos podem ser atraídos pela promessa de mudança e pela sensação de pertença a um grupo que partilha das suas frustrações e aspirações. Isso pode levar a uma convergência de atitudes e comportamentos entre os extremos.
Uso de Propaganda e Desinformação: Tanto a extrema esquerda como a extrema direita podem recorrer ao uso de propaganda e desinformação para promover as suas agendas. Eles podem manipular informações, criar teorias da conspiração e usar táticas de medo para mobilizar apoio. Essas estratégias podem ser surpreendentemente semelhantes, apesar das diferenças ideológicas.
Rejeição do Centro Político: Os extremos frequentemente veem o centro político como fraco ou corrupto. Eles acreditam que os políticos centristas são incapazes de resolver os problemas reais da sociedade e que apenas uma abordagem extrema pode trazer mudanças significativas. Essa rejeição do centro pode levar a uma convergência de atitudes entre os extremos.
Embora a teoria da ferradura não seja universalmente aceite, ela oferece uma perspectiva interessante sobre como os extremos políticos podem, em alguns aspectos, assemelhar-se. A desconfiança nas instituições, a procura por mudança radical, as narrativas simplistas, a atração de indivíduos descontentes e o uso de propaganda e a rejeição do centro político são fatores que podem levar a essa convergência.
Estamos a caminhar para uma sociedade cada vez mais polarizada, em que os consensos são mais complicados e difíceis de alcançar. São necessários políticas e políticos de coragem que resolvam e vão de encontro aos problemas das pessoas e da sociedade. O atual zeitgeist é de cisão, confronto e polarização. Para enfrentar os problemas existentes necessitamos de consensos, cooperação e solidariedade, qualidades estas que parece que se encontram em falta atualmente.