Mesmo sem as horas extraordinárias, os médicos já fazem 5 horas a mais por semana que toda a função pública. Só aqui são mais de 200 horas extraordinárias que os médicos fazem em comparação com o resto da função publica que não são contabilizadas.
Há uns dias um cronista do Expresso escreveu que se recusava ser visto por um médico que não queira exceder fazer as 150 horas extraordinárias.
Vou ser sincero, não li o que ele escreveu porque se ele se recusa a ser visto por um médico que faça menos que essas horas extraordinárias, eu recuso-me a ler textos com títulos tão estapafúrdio, título que eu diria que serve mais para clickbait do para outra coisa.
Vivemos momentos muito complicados na Serviço Nacional de Saúde. Urgências lotadas, pessoas à espera 15, 20 e 30 horas para serem atendidas quando de média deveriam esperar 1 hora. Cirurgias e primeiras consultas oncológicas com atrasos inadmissíveis, sendo neste tipo de patologias o tempo um fator essencial. A falta de médicos que existe no SNS é das principais causas para estes atrasos. O SNS já não é atrativo para os médicos que preferem trabalhar no privado ou emigrar para países onde se sentem valorizados. Mas não é só a falta de médicos, também a falta de enfermeiros, de técnicos, de farmacêuticos… faltam recursos humanos de todos os tipos por todas as partes nos nossos hospitais e centros de saúde.
Faltam recursos humanos o que faz com que os existentes no SNS tenham de trabalhar por dois ou por três e quem sofre com isso são os doentes. Não são só os médicos que fazem mais de 150 horas extraordinárias, também enfermeiros, administrativos e técnicos fazem horas e horas a mais. Turnos seguidos de 16 horas, outros de 12 horas, quando não se deveria trabalhar mais de 8 horas por dia. O SNS vive das horas extraordinárias de todos os profissionais que nele trabalham. O SNS vive da abnegação e espírito de sacrifício de todos aqueles que diariamente lutam e se esforçam para dar o melhor atendimento e cuidados possíveis aos doentes.
Mas, pouco a pouco a paciência e a ilusão acabam.
Os médicos e profissionais de saúde também são pessoas, com a sua vida, os seus problemas e as suas vicissitudes, além de também têm contas para pagar. A cada dia a situação piora, há mais gente a abandonar o SNS, não se vislumbra uma solução a curto prazo para toda esta situação. Assim, os jovens, o sangue novo que deveria renovar o SNS desiste e vai embora.
Tenho a dizer que, pessoalmente, fiz toda a minha formação de especialista na Alemanha e lá ninguém obriga ninguém a fazer horas extraordinárias. Se o sistema estivesse dependente das horas extraordinárias para funcionar seria considerado uma calamidade e seria patognomónico de que algo não está a funcionar nada bem.
Por tudo isto surpreende-me que se considere que um médico que se recuse a fazer mais de 150 horas de horas extraordinárias seja medíocre. Na Alemanha tal é absolutamente proibido e não me consta que a medicina na Alemanha seja pior que em Portugal. Até pelo que se diz e escreve nos meios internacionais parece ser que a medicina que se pratica na Alemanha é algo melhor que em Portugal.
Num hospital também temos de perceber que o que o médico faz não é só dar consultas e estar na enfermaria. Também há investigação, há estudo, há conversas com os familiares e resolução de casos extra medicina e outras situações que consomem o parco tempo que os médicos têm para ver e estar com os doentes.
Além do mais os médicos continuam e vão continuar a ser os ÚNICOS funcionários públicos a fazer as 40 horas semanais e não 35 horas. Se os médicos fossem equiparados ao resto da função pública então o problema seria muito maior.
Os médicos partem de uma situação de desvantagem e ainda têm de fazer mais de 150 horas extraordinárias. Mesmo sem as horas extraordinárias, os médicos já fazem 5 horas a mais por semana que toda a função pública. Só aqui são mais de 200 horas extraordinárias que os médicos fazem em comparação com o resto da função publica que não são contabilizadas.
Mas será que para se ser bom médico é necessário fazer mais de 150 horas extraordinárias? Acredito que não são só as horas em urgências e em enfermaria que fazem um bom médico. Um bom médico também faz investigação e estudo sozinho. Essas horas, infelizmente, não são contabilizadas na formação e nas horas de trabalho de um médico, mas deveriam. Também há uma tendência cada vez maior de valorizar a vida pessoal e o lazer e ainda bem!
Abel Salazar, grande médico português, disse que “aquele médico que só sabe de medicina, nem de medicina sabe”. Como é que um médico que faça mais de 150 horas extraordinárias e ainda faca investigação, estudo próprio além do seu trabalho de enfermaria tenha tempo para saber mais alguma coisa que medicina? Nem tem tempo para saber de si próprio. É por isso que na área da medicina há cada vez mais casos de burnout, esgotamento, depressão e uma das maiores taxas de suicídio entre profissionais jovens.
Um médico pela responsabilidade que tem e pelas decisões que tem de tomar tem de estar no máximo das suas faculdades. Um médico que tenha feito 15 ou 16 horas seguidas, sem dormir tem uma probabilidade imensamente maior de cometer erros que se estivesse descansado. Estamos a lidar com vidas humanas em que qualquer erro pode ser fatal. O leitor preferia ser visto por um médico que esteve a trabalhar 15 horas seguidas? Ou por um médico descansado e com capacidade para raciocinar e pensar no seu caso, tomando as melhores decisões com calma e ponderação?
As horas extraordinárias são um anátema, deveriam não ser sequer permitidas numa profissão com tanta responsabilidade como a medicina. O que estaria bem deveria ser considerar mais tempos de descanso e não mais horas e horas extraordinárias.
Os médicos também são pessoas, tem a sua vida pessoal e os seus problemas. Há muita gente que pensa que ser médico deveria ser como o sacerdócio: exclusividade para a vocação. Mas a medicina sendo uma vocação, uma vocação de entrega aos outros, também acarreta consigo a necessidade de cuidar da pessoa que é o médico. O médico sofre grande desgaste físico devido às muitas horas que coloca na sua profissão, mas também sofre desgaste um enorme desgaste emocional devido às situações limite que vive na sua profissão. Uma profissão com este tipo de desgaste não necessita de mais horas extra.
Deveríamos era estar a discutir uma maior conciliação entre trabalho e vida pessoal e as melhores maneiras de apoiar os profissionais de saúde com doença mental. Devido a esta situação de abuso laboral, a área da saúde é, na função pública, a área com a maior taxa de absentismo. Excesso de trabalho, sem uma conciliação correta entre vida laboral e profissional leva, inevitavelmente à doença, fazendo com que o problema se torne cada vez maior, qual bola de neve.
Pensar que os médicos e os profissionais de saúde são trabalhadores que se têm de sacrificar pelo bem comum e pelo bem da população é uma ideia comum, mas isso leva a que a população espera dos profissionais de saúde uma abnegação, altruísmo e sacrifício que seria incapaz de pedir a qualquer outra profissão.
Sabemos que os profissionais de saúde pelo trabalho que têm de lidar com o próximo numa situação de sofrimento e muitas vezes limite faz com o que o seu trabalho tenha uma entrega emocional e pessoal sem comparação com outras profissões. Mas não se pode deixar todo um Serviço (e aqui falamos de serviço, servir o próximo, não num sistema) nas costas e na abnegação de toda uma classe profissional cansada, mal remunerada, não valorizada. Se realmente não houver reformas estruturais e, principalmente, uma mudança de mentalidades estamos em risco de perder a maior conquista do 25 de Abril.