Neste mês de fevereiro celebrou-se mais um Dia dos Namorados, uma data que nos leva a refletir sobre as relações que construímos, as que desejamos criar e, inevitavelmente, as memórias das pessoas que um dia nos foram importantes, mas que agora nos parecem perfeitos desconhecidos.
As dinâmicas que co-criamos nas nossas relações são, muitas vezes, moldadas por padrões subtis que nos escapam, entrelaçando-se com os comportamentos que dão forma aos nossos hábitos.
Não é raro percebermos que nos envolvemos repetidamente com pessoas de perfis semelhantes, num ciclo onde a felicidade inicial pode ceder lugar a emoções mais intensas e desafiantes.
A psicóloga Anabela Liberato comenta nesta entrevista a complexidade destes estados emocionais e das confusões que despertam.
Porque confundimos a insegurança e ansiedade por paixão? O que origina em nós este fenómeno?
A paixão desperta em nós uma energia frenética, um entusiamo desmedido, um excesso de demasias. O “frio na barriga” que muitas vezes sentimos, quando estamos loucamente apaixonados, mostra a reação do nosso sistema nervoso ao aumento da adrenalina no nosso cérebro, causando-nos um estado hiper-vigilante. Tal como acontece nos momentos quando estamos ansiosos e inseguros.
Na paixão, na ansiedade e na insegurança não existem esperas. Tudo tem de ser resolvido no agora, tudo tem de ser satisfeito no imediato. Na paixão fala-se muito da concretização imediata de um desejo, nos momentos de ansiedade e insegurança, no alívio do sofrimento. E, por vezes, tudo isto se (com)funde.
Talvez o romantismo popular nos cerque de pistas sobre a paixão e a fusão de emoções intensas, obsessivas, idealizadoras e até trágicas – basta pensarmos numa das mais conhecidas histórias de paixão, “Romeu e Julieta”, de William Shakespeare.
Mas claro, para tudo isto há um limite. É aqui que este estado intenso pode evoluir para algo mais maduro – o amor – onde se experimenta outro tipo de sensações e onde não é suposto a insegurança, o medo e ansiedade extrema habitar.
Porque é que acabamos muitas vezes a repetir o mesmo padrão como se as pessoas que procuramos uma relação parecem versões similares de um tipo?
O nosso psiquismo tem por base as primeiras relações e os primeiros amores da nossa vida – os nossos pais ou os cuidadores primários – por isto, as experiências que vamos vivenciado desde a nossa infância são muito importantes para a construção da nossa própria narrativa.
O amor que é transmitido pelo adulto e a forma como a criança o recebe, é sem dúvida, um aspeto necessário para entendermos o padrão relacional que ela mesma [criança-adolescente-adulto] vai reproduzindo. Na verdade, o sítio em que vivemos e a forma como vivemos irá ser um espelho de nós mesmos.
Sem querer generalizar, mas apenas para dar significado ao dito: imaginemos uma criança que nasce num ambiente familiar composto por: 1) pai ausente emocionalmente; 2) mãe superprotetora e 3) relação instável entre pai-mãe; esta criança estará bastante suscetível a interpretar o mundo e as relações à sua volta de uma forma ambivalente e insegura. Por isto, pode ir consequentemente tendo relações no seu desenvolvimento social que confirmem o afeto de se sentir abandonado, procurar validação de forma obsessiva ou até a sensação de estar “preso” a alguém.
Concluindo, temos uma certa tendência de procurar um companheiro amoroso que corresponda a um amor infantil que vivemos em criança (e talvez com o desejo de ser mais aperfeiçoado) ou, por outro lado, a falta que sentimos. Olhamos para o nosso amado, sob a condição de ele concretizar toda a necessidade que vem da nossa criança interior e daí, fantasiosamente acreditamos que “se esse alguém me amar deverá mover o mundo por mim”. Assim, até isto acontecer vamos sucessivamente, e de forma inconsciente, repetindo um padrão relacional exigente, caindo na armadinha frustrante dos “são todo(a)s iguais” …
É mais comum acontecer a pessoas que não possuem grande autoconsciência?
Sim, porque a pessoa com autoconhecimento, permite-se à mudança. Pelo contrário, quanto mais resistente/ defensivo for a esse processo de autoconhecimento, terei maior probabilidade de reviver experiências e conflitos passados.
A nível químico, como é que isto se processa?
“O encontro de inconscientes”, é impulsionado por diversos sinais da comunicação não-verbal, como olhares, voz, cheiros, energia, e, portanto, muitas vezes a conexão que existe vai para além do que é explicado de forma lógica.
No decorrer da maior atração emocional, portanto a paixão, a ciência prova de que existem alterações específicas nalgumas áreas do nosso cérebro ligadas ao desejo e à satisfação imediata – esta ativação do sistema de recompensa curiosamente é também encontrado no consumo de substância – por isso é que às vezes existe uma sensação de se estar “viciado” na pessoa amada.
Os principais neurotransmissores associados a este processo são: a dopamina (associada ao prazer); a serotonina (associada ao bem-estar e inversamente, quando diminui associada à obsessão); a noradrenalina (sensações de euforia, excitação) e também as hormonas sexuais (testosterona e estrogênio), essenciais para o desejo físico.
Se procuramos pessoas emocionalmente inacessíveis, que nos causam ansiedade dentro da relação, porque é que as endeusamos?
Existe uma forte tendência humana em fantasiar cenários, situações e também pessoas. Aliás, este mecanismo é aprendido em criança, e tem um papel fundamental no desenvolvimento da criatividade, da emoção, da cognição, do social, etc.
No entanto, o adulto que se fantasia excessivamente pode, inconscientemente, criar expectativas irreais do outro, socorrendo-se à ideia enviesada dos “contos de fada”, ao invés, de procurar ver o que é real e entender as falhas e limitações humanas. Encontrarmo-nos com alguém no campo do amor é encontrar o que é esse alguém, juntamente com as suas falhas(faltas).
Por vezes sentimos que é preciso salvar essa pessoa. Não será isso um invenção nossa criada pela consequência do endeusamento?
Sim. Essa busca de salvamento talvez seja motivada por uma espécie de fantasia omnipotente, em que eu me escapo da frustração e da falha, e faço todos os esforços possíveis de controlo, na tentativa de “salvar o outro” e, na verdade, salvar a própria idealização.
Se assim é, acabamos por querer que essa pessoa seja algo que ela não é e o risco de frustração é maior, certo?
Sem dúvida. Com esta “lente delirante” da paixão, acabamos por ver o outro não como ele é, mas sim como gostaríamos que ele fosse. Isto terá um fim, e essa deceção será sem dúvida maior do que, – no inicio, – ao reconhecer o que de facto é real.
Por outro lado, este ciclo de querer salvar o outro, não ajudará a perpetuar a insegurança e ansiedade, já que não há nada para salvar e somos nós que criamos essa necessidade que precisa de combustível?
Certo. Esse “salvamento” acaba por ser, na verdade, um mecanismo de defesa criado pela pessoa, para reduzir a sua ansiedade e insegurança sobre aquilo que esconde em relação a si própria. Defendendo esta perspetiva, em que olhamos para o outro amado na tentativa que ele preencha um certo vazio que é nosso, não seria mais justo investigarmos, no nosso interior, aquilo que tanto nos atormenta, ao invés de projetar no outro, como se ele fosse ele o absoluto errado?
Como quebrar este ciclo e conseguir relacionar-se de forma mais equilibrada?
É necessário um caminho de autodescoberta, onde a pessoa se consiga entender e olhar como quem olha para um espelho e se admira (com as suas faltas também).
É curioso, mas parece que ao longo da nossa vida vamos acreditando que sabemos muito sobre nós, através do que o outro nos diz. Mas a verdade é que a resposta está no nosso interior. Por isto a terapia importa, no sentido de conseguirmos dar “ouvidos” ao que é dito por nós próprios e, a partir daí, viver uma narrativa criada (e cuidada) inteiramente por nós.
Qual será a terapia mais indicada?
Existem várias abordagens da intervenção psicológica que podem ajudar neste processo de autoconhecimento, desde a psicoterapia psicodinâmica– tendo como abordagem mais clássica a psicanálise, que se dedica à compreensão profunda das dinâmicas do inconsciente e dos padrões de relação e afeto; ou a psicoterapia cognitivo-comportamental que se dedica à modificação de padrões de pensamento e crenças da pessoa; a terapia de aceitação e compromisso, que se foca na aceitação da dor e do que é presente/futuro, terapia cognitiva baseada em mindfulness, que pode ajudar significativamente para o desenvolvimento de uma mente mais calma, etc…
Portanto, escolhas não faltam (risos). O importante é que a pessoa se sinta disponível para iniciar uma jornada de mudança e que invista este tempo para si (realmente para si).
Como se processa e o que é que implica?
Na minha visão, a terapia implica um compromisso entre duas pessoas (terapeuta- paciente) – “uma dança feita a dois” – em que, através da escuta ativa, da voz validada e de um espaço confortável os dois inconscientes se possam aproximar para que seja possível, simplesmente, “ser-se livre”.