200 anos de Camilo Castelo Branco: “Amou, perdeu-se, e morreu amando”

Ricardo Formigo, Professor de Português

A história que Camilo contava era a história do drama humano inspirado nos acontecimentos da sua vida – ou dos seus familiares – em primeira mão (ou através de velhos papéis), portanto “a literatura não era mais do que a vida reassumida, filtrada por uma sensibilidade eleita e transbordante”. E é diante desta sensibilidade que temos de admitir a existência de um génio em Camilo, porque nem todas as histórias trágicas dão grandes romances.

Nas comemorações do bicentenário do nascimento de Camilo Castelo Branco, vale a pena debruçarmo-nos sobre a obra literária que este escritor nos deixou. A 16 de março de 1825, em Lisboa, numa casa da Rua da Rosa, junto aos Mártires, nascia Camilo Castelo Branco. A sua maior obra, “Amor de Perdição”, um drama romântico análogo a Romeu e Julieta de Shakespeare, é hoje uma das obras de leitura obrigatória do Ensino Secundário em Portugal.

Vasco Graça Moura chama-lhe “a novela de paixão amorosa mais intensa e mais profunda que se tenha escrito na Península.” Esther de Lemos, professora universitária na Faculdade de Letras de Lisboa até 1974 – altura em que foi saneada – deu aulas no Ensino Secundário. Escreveu uma introdução a esta obra que é um texto indispensável para uma sóbria interpretação da obra magna de Camilo na sua biografia e no seu contexto histórico.

Camilo escreve “Amor de Perdição” durante o ano de 1861, em que se encontra preso na Cadeia da Relação do Porto, por causa do seu amor proibido com Ana Plácido. Na cadeia, sentiu uma compatibilidade de coração com o tio Simão Botelho, que nunca conheceu, senão através de uns velhos papéis, mas que veio a imortalizar na literatura portuguesa do século XIX.

“Desde menino, ouvia eu contar a triste história de meu tio paterno Simão António Botelho. Minha tia, irmã dele, solicitada por minha curiosidade, estava sempre pronta a repetir o facto, aligado à sua mocidade. Lembrou-me naturalmente na cadeia muitas vezes meu tio, que ali deveria estar inscrito no livro das entradas no cárcere e das saídas para o degredo.

Folheei os livros desde os de 1800, e achei a notícia com pouca fadiga e alvoroços de contentamento, como se em minha alçada estivesse a adornar-lhe a memória, como recompensa das suas trágicas e afrontosas dores em vida tão breve. Sabia eu que em casa de minha irmã estavam acantoados uns maços de papéis antigos, tendentes a esclarecer a nebulosa história de meu tio. Pedi aos contemporâneos, que o conheceram, notícias e miudezas, a fim de entrar de consciência naquele trabalho.

Escrevi o romance em quinze dias, os mais atormentados de minha vida. Tão horrorizada tenho deles a memória, que nunca mais abrirei Amor de Perdição, nem lhe passarei a lima sobre os defeitos nas edições futuras, se é que não saiu tolhiço incorrigível da primeira” (1).

Camilo Castelo Branco foi, sem dúvida, um dos escritores mais prolíficos da literatura portuguesa: a sua obra totaliza cerca de 260 volumes, sobretudo novelas. O que faz sentido, pois Camilo era escritor de profissão e os seus rendimentos vinham maioritariamente da publicação das suas obras, portanto quanto mais obras publicasse (ainda que fossem curtas), mais rendimentos obteria. “Amor de Perdição” foi dedicado a Fontes Pereira de Melo, porque Camilo acreditava que ministros de Estado também têm livros e pouco tempo para os ler.

Camilo foi um dos grandes românticos portugueses, dos quais o primeiro foi Almeida Garrett. No entanto, a geração de Camilo – a chamada “segunda geração romântica” ou “ultrarromântica” – foi uma geração que levou os ideais românticos – a liberdade, o direito de escolher, a possibilidade de seguir as emoções – ao extremo. Não é de admirar que muitos desta geração melancólica, entre os quais o próprio Camilo, tenham cometido suicídio, o epidémico mal du siècle, propagado pela via literária.

Não só a nível biográfico, mas também a nível narrativo o suicídio surge como uma emenda da realidade: o amor que era impossível em vida torna-se possível na morte. Também foi no romantismo que se começou a introduzir um corte com a tradição, um conflito de mundos, entre o antigo e o novo, em que os pais já não têm de obrigar os filhos a escolher casar com uma pretendente escolhida, mas sim com quem o coração entende. Tudo isto se enquadra quer na vida, quer na obra de Camilo que “não se limitara a criar literatura, quisera vivê-la (…). Incapaz de assistir passivamente à vida, o escritor tentou muitas vezes intervir nela, modelar como episódios de romance os acontecimentos reais” (2).

A sua intervenção nos acontecimentos da vida não é tanto política, mas “é pela palavra escrita que intervém”. Já na sua própria biografia, Camilo pode encontrar elementos suficientes para servirem de matéria-prima de muitas novelas românticas. “A vida parecera então vingar-se do artista que a idealizara em tantas páginas vibrantes de paixão e sofrimento grandioso, e a desmascarara e denegrira outras vezes denunciando as servidões ignóbeis da matéria…”(3).

O conflito entre vida e arte em Camilo torna-se claro de forma que existe uma “indefinição de fronteiras entre vida e literatura”(4) em que afirma a “cada passo na sua obra com saboreada ironia – que vida é vida e literatura é literatura. Em vão, quis superar essa dicotomia: na obra, buscando engenhosas maneiras de apresentar a ficção como história vivida; na vida real, tentando comunicar aos sucessos e às pessoas a paixão e o romanesco da novela”(5). Ainda que haja esta indefinição de fronteiras, “a vida, porém, esquivou-se sempre, indócil ao gesto demiúrgico do fazedor de histórias”.

A história que Camilo contava era a história do drama humano inspirado nos acontecimentos da sua vida – ou dos seus familiares – em primeira mão (ou através de velhos papéis), portanto “a literatura não era mais do que a vida reassumida, filtrada por uma sensibilidade eleita e transbordante”. E é diante desta sensibilidade que temos de admitir a existência de um génio em Camilo, porque nem todas as histórias trágicas dão grandes romances.

Em Amor de Perdição, o autor afirma “o seu gosto da História, de remexer em velhos papéis e velhos casos, entretecendo às vezes na sua ficção o passado real.” A história de Simão Botelho, extraída de uns papéis velhos, dão origem a um Simão-personagem no qual o drama é vivido em duplicado.

“Folheando os livros de antigos assentamentos, no cartório da cadeia da relação do Porto, li, no das entradas dos presos desde 1803 a 1805, a folhas 232, o seguinte:

Simão António Botelho, que assim disse chamar-se, ser solteiro, e estudante na Universidade de Coimbra, natural da cidade de Lisboa, e assistente na ocasião de sua prisão na cidade de Viseu, idade de dezoito anos, filho de Domingos José Correia Botelho e de D. Rita Preciosa Caldeirão Castelo Branco; estatura ordinária, cara redonda, olhos castanhos, cabelo e barba preta, colete de fustão pintado e calça de pano pedrês. (…)

À margem esquerda deste assento está escrito:

Foi para a Índia em 17 de março de 1807. (…) Dezoito anos! O arrebol dourado e escarlate da manhã da vida! As louçanias do coração que ainda não sonha em frutos, e todo se embalsama no perfume das flores! Dezoito anos! O amor daquela idade! A passagem do seio da família, dos braços de mãe, dos beijos das irmãs para as carícias mais doces da virgem, que se lhe abre ao lado como flor da mesma sazão e dos mesmos aromas, e à mesma hora da vida! Nunca mais o céu de Portugal, nem liberdade, nem irmãos, nem mãe, nem reabilitação, nem dignidade, nem um amigo! … É triste!
Amou, perdeu-se e morreu amando.

É a história e história assim poderá ouvi-la a olhos enxutos a mulher, a criatura mais bem formada das branduras da piedade, a que por vezes traz consigo do céu um reflexo da divina misericórdia; essa, a minha leitora, a carinhosa amigas de todos os infelizes, não choraria se lhe dissessem que o pobre moço perdera honra, reabilitação, pátria, liberdade, irmãs, mãe, vida, tudo, por amor da primeira mulher que o despertou do seu dormir de inocentes desejos?!” (6)

“Amou, perdeu-se e morreu amando.” Refere-se a Simão Botelho? Ou estamos a falar de Camilo Castelo Branco? Depois da sua estadia na Cadeia da Relação no Porto, em que viveu os quinze dias mais atormentados da sua vida, que deram origem à sua novela, foi absolvido do crime de adultério com Ana Plácido pelo Juiz José Maria de Almeida Teixeira de Queiroz, pai do escritor Eça de Queiroz, a quem precedeu no campo da literatura portuguesa e com quem chegou a trocar correspondência em vida.

Também na mesma introdução podemos encontrar um jogo de espelhos no qual vemos refletido o drama de Esther de Lemos a explorar o drama de Camilo a explorar o drama de Simão Botelho: “Dir-se-ia que Camilo, sentindo as potencialidades dramáticas e líricas que latejam, mas não chegam a concretizar-se, nas situações do real, se aplica à tarefa de isolar do material bruto que a vida – ou a História – fornece elementos privilegiados, aos quais se compraz em imprimir novas formas, insuflando-lhes por obra do seu talento o sopro de vida, de outra nova vida, a da ficção, mais concentrada que a real; assim os arranca da massa informe do acontecer quotidiano, em que, sem chegar a realizar-se, iam passando e esquecendo” (7).

“Mas o novelista lê: degredado aos 18 anos. Juventude e degredo, juventude e sofrimento, juventude e decerto crime… Estas ideias chocando-se produzem a faísca que irá atear o fogo da novela. Porque se sofre e porque se peca nessa idade feliz? Para Camilo, só pode haver uma razão esteticamente válida: por amor”(8).  Amor de Perdição é um romance sobre o amor que leva à perdição, não apenas do próprio amado, mas também da própria vida.

“O registo da cadeia dizia apenas “perdeu-se”. Camilo completou a vida com a arte e criou um destino. À perdição juntou o amor e a morte, marcos da condição humana e obsessões mais tenazes do romancista. Assim nasceu de um segundo nascimento Simão Botelho, criatura de seu sobrinho. E com ele nasceu a mais amada das novelas de amor portuguesas” (9).  E, tal como o Dr. Viktor Frankestein fez com o monstro, temos uma sub-criação humana de Camilo.

Os destinos trágicos de Simão e de Teresa de Albuquerque estão marcados pela casa e pela família. Inicialmente, os dois “conhecem-se e apaixonam-se à janela das respetivas casas, separados pela rua: a proximidade física é ilusória, pois cada casa é um mundo fechado” (10). Para Teresa, o destino é ficar presa em casa, que, no princípio, é a casa da família, mas, à medida que acompanhamos o crescendo da narrativa até ao seu clímax, torna-se o convento. O castigo de Teresa é ficar dentro de casa.

Por outro lado, Simão é ameaçado com a expulsão de casa, que se consuma com a sua prisão e degredo para a Índia; o seu castigo é ser enviado para longe de casa. Dois castigos distintos, mas a ausência de liberdade, que tanto oprimiu os ideais românticos, é a mesma. Esther de Lemos conta-nos que “(…) a casa não é o simples habitáculo, é a materialização de uma realidade biológica, afetiva, moral e social – a família. O peso da instituição familiar, não só na trama narrativa do Amor de Perdição como na configuração psicológica e na atuação das suas personagens, é decisivo”(11).

A família é, nas palavras de Esther de Lemos, “realidade humana universal”. O próprio autor consuma este facto ao dar como subtítulo à sua obra a inquietadoramente simples expressão “Memórias duma Família”. Neste caso, da sua família, pois a narrativa não surgiu da sua imaginação – como tantas outras –, mas baseada em factos históricos, que, como registo, soube desde pequeno, mas que decidiu aprofundar durante o seu cativeiro na Cadeia da Relação do Porto.

A novela termina com estas palavras que comprovam mais uma vez que a narrativa de “Amor de Perdição” é baseada em factos reais: “Da família de Simão Botelho vive ainda, em Vila Real de Trás-os-Montes, a senhora D. Rita Emília da Veiga Castelo Branco, a irmã predileta dele (falecida em 1872). A última pessoa falecida, há vinte e seis anos, foi Manuel Botelho, pai do autor deste livro.”

“Amor de Perdição” é assim um drama colocado no tempo e no espaço, com as verosimilhanças do destino de cada uma das personagens. Camilo pega numa história corriqueira e dá-lhe o seu toque de mestre, o que deu origem à novela de amor mais trágica da literatura portuguesa, que, duzentos anos depois do seu nascimento, encanta adultos e desencanta alunos que em vão tentam encaixá-la num esquema assético que em nada tem que ver com a sua própria vida. Levar o drama de Camilo a sério é, por iniciativa do próprio, um convite para levar o drama humano a sério. E não é isto que fazem os grandes escritores?

 

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1) Camilo Castelo Branco, prefácio da segunda edição, setembro de 1963;

2)Esther de Lemos, Introdução a Amor de Perdição, 4ª edição, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, setembro de 1993, p.10;

3)Idem.

4)Camilo Castelo Branco, Introdução a Amor de Perdição;

5)Esther de Lemos, Introdução a Amor de Perdição, 4ª edição, Biblioteca Ulisseia de Autores Portugueses, setembro de 1993, p.37;

6)idem;

7) idem;

8) idem, p.41;

9) idem, p.46;

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