AS FALSAS CRENÇAS SOBRE A LIDERANÇA. Donald Trump: uma liderança carismática personalizada.

Luís Caeiro, Professor de Liderança na Catolica Lisbon School of Business and Economics

As decisões políticas radicais assumidas pelo presidente Donald Trump, em dois meses de governação, puseram os Estados Unidos em pé de guerra e produziram uma reviravolta na ordem internacional que vigorava nos últimos oitenta anos.

Comentadores e especialistas têm interpretado o impacto destas políticas nos planos económico, geoestratégico e das relações internacionais, mas pouco se reflectiu sobre o processo de liderança carismática que levou o presidente ao poder. Compreendê-lo é essencial para explicar as decisões políticas que agora tanto nos surpreendem.

Para interpretar o desempenho político de Donald Trump é preciso começar por conhecer a sua personalidade. Apesar da directiva Goldwater, uma norma ética publicada em 1973 pela American Psychiatric Association, recomendar que não se façam diagnósticos da saúde mental de figuras públicas sem observação directa, não faltam os perfis psicológicos do presidente norte-americano feitos por psicólogos, psiquiatras, investigadores e universitários.

Ainda durante a campanha eleitoral de 2016, um grupo de 3 000 psicoterapeutas sob a designação de Citizen Therapists for Democracy publicaram um manifesto (Citizen Therapists Against Trumpism) alertando para o surgimento de uma ideologia “trumpista” que ameaçava o bem-estar e a democracia. O criador do manifesto, William Doherty, professor de psicologia da Universidade do Minnesota, justificou a sua posição dizendo que “temos que nos preocupar com a saúde mental pública e as condições sociais que promovem o florescimento ou a disfunção humana, o que significa termos um envolvimento público…”. Pouco depois, um grupo de 35 especialistas de saúde mental enviou uma carta ao The New York Times declarando que os sinais de grave instabilidade emocional de Trump o tornavam incapaz de desempenhar as funções de presidente.

Em 2017, o grupo Duty to Warn, criado por John Gartner, um psicoterapeuta professor da Escola Médica da Universidade Johns Hopkins, recolheu mais de 60 000 assinaturas de profissionais de saúde mental e enviou para Washington uma petição (Mental Health Professionals Declare Trump is Mentally Ill And Must Be Removed) onde se afirmava que Donald Trump tinha “problemas mentais graves que o tornavam psicologicamente incapaz de desempenhar de forma competente os deveres de presidente dos Estados Unidos”.

Numa conferência na Universidade de Yale Gartner disse que “temos a responsabilidade ética de alertar o público sobre a perigosa doença mental de Donald Trump”. Em resposta a estas declarações, Allen Frances, da Universidade de Duke, escreveu uma carta à Times denunciando que não havia bases para se considerar Trump um doente mental, mas afirmou que, no entanto, “pode e deve ser denunciado pela sua ignorância, incompetência, impulsividade e busca de poderes ditatoriais”.

Em 2018, o grupo National Coaliation of Concerned Mental Health Experts, liderado por Bandy Lee, um professor de psiquiatria forense da Escola Médica de Yale, especialista em psicologia da violência, encontrou-se com membros do Congresso para expressar a sua preocupação sobre o ajustamento de Trump ao cargo, transmitindo que “o estado mental de Trump é um risco para a segurança nacional e internacional”. Lee acrescentou que “aquilo que nos preocupa não é a condição pessoal da sua saúde mental. O que nos preocupa é os efeitos que a sua instabilidade mental pode ter na saúde pública”.

Em 2024 um grupo de 230 psiquiatras publicou no The New York Times uma carta aberta declarando que Trump tinha “sintomas de grave perturbação da personalidade, narcisismo maligno…” que o tornava uma pessoa “enganadora, destrutiva, iludida e perigosa”. Os signatários afirmaram ainda que “parece mostrar sinais de declínio cognitivo … uma forte diminuição da fluência verbal, pensamento tangencial, vocabulário reduzido, uso excessivo de superlativos e palavras de enchimento, confabulação, parafasias fonéticas e semânticas, confusão de pessoas, deterioração do julgamento…”.

Em Outubro último reacendeu-se o debate sobre o seu quadro psicológico quando num evento político parou de responder às perguntas que lhe estavam a fazer, e passou meia hora balançando o corpo ao som de uma lista de músicas que tinha seleccionado.

Os numerosos diagnósticos que vieram a público são quase sempre severos: descontrolo emocional, transtorno narcísico, “complexo de messias”, mitomania, paranoia e sociopatia. Nenhuma destas conclusões se baseia em diagnósticos directos. As avaliações foram realizadas a partir da análise de entrevistas, intervenções públicas, mensagens e decisões políticas que foram conhecidas. Estas fontes não põem em causa a importância do estudo dos perfis percebidos de personalidade. A reacção às figuras públicas é influenciada pela forma como os seus padrões de comportamento são percepcionados. Com a queda das ideologias, o declínio dos partidos políticos, a emergência das redes sociais e do “voto impulsivo”, o perfil percebido dos candidatos é cada vez mais determinante como heurística da decisão de apoio. Vários estudos mostram que os eleitores tendem a apoiar os líderes cuja personalidade “combina” com a sua, e que o perfil psicológico do líder, tal como é percepcionado, é um bom preditor tanto da sua acção política, como do perfil dos seus apoiantes.

Um dos estudos mais consistentes sobre a personalidade percebida de Donald Trump foi publicado por uma equipa internacional liderada por Alessandro Nai, professor de ciências da comunicação da Universidade de Amesterdão (Donald Trump, populism, and the age of extremes: Comparing the personality traits and campaigning styles of trump and other leaders worldwide, 2019; Can anyone be objective about Donald Trump? Assessing the personality of political figures, 2019).

O comportamento observável do presidente americano foi avaliado por um grupo de académicos especialistas em política eleitoral, comunicação, comportamento político e áreas afins, com recurso a dois instrumentos de avaliação da personalidade de validade reconhecida: o Big Five e o Dark Triad.

O perfil do presidente americano apresentava os seguintes traços dominantes:

Muito elevada extroversão. É uma pessoa fortemente comprometida com o meio social. É activo, gregário e comunicativo. Assume atitudes sociais dominantes. Tem atitudes assertivas e gosta de protagonismo. Obtém visibilidade nos grupos falando e afirmando-se. É entusiástico e orientado para a acção. Estas pessoas podem ser vistas como enérgicas, influentes, liderantes e gostando de se exibir.

Muito baixa agradabilidade. Põe os seus interesses acima de tudo. Não se preocupa com os problemas e o bem-estar dos outros. Revela indiferença, frieza, distância e, por vezes, hostilidade. É egocêntrico e competitivo, antagonístico e sarcástico. Suspeita das intenções dos outros e, por isso, tem dificuldade em confiar e cooperar. Pode ser visto como frio, desagradável, antipático e egoísta.

Baixa conscienciosidade. É negligente e improvisador. Evita assumir responsabilidades. É indisciplinado e espontâneo. Tende a seguir os seus gostos e impulsos do momento. Procrastinador. Estas pessoas podem ser percebidas como desorganizadas, ineficientes, caprichosas, pouco diligentes, imprevisíveis e pouco confiáveis.

Baixa estabilidade emocional. É facilmente perturbável, demonstrando tensão e instabilidade emocional, e revelando-se insatisfeito e desiludido com o mundo. Mostra emoções negativas como a irritação, a impaciência, a depressão e a ansiedade. Tem baixa tolerância à frustração e ao stresse. É tenso, descontrolado e imprevisível. Tem estados de humor variáveis. Tende a interpretar as situações como ameaçadoras, as dificuldades como obstáculos e a avaliar as situações pelo lado negativo. É pessimista e revela mau humor. A dificuldade em regular as reacções emocionais diminui a capacidade de pensar com clareza, tomar decisões e lidar com situações de crise. Estas pessoas são vistas como nervosas e irritáveis, pessimistas, com “mau feitio”, descontroladas, e de humor imprevisível.

Narcisismo muito elevado. Mostra tendência para se engrandecer, captar a atenção e o reconhecimento dos outros. É arrogante, autoconfiante e muito competitivo. É agressivo e desconfiado, mostrando sinais de irritação quando é contrariado ou desobedecido. Só aceita as realidades que confirmam a imagem empolgada que têm de si próprio e rejeita todos os feedbacks críticos que a podem pôr em causa.

Psicopatia muito elevada. Tendência para perceber hostilidade nas intenções dos outros. Insensibilidade aos problemas. Impulsividade e procura do confronto pessoal.

Maquiavelismo muito elevado. Estratégico e ardiloso, cínico, manipulador e amoral, procurando obter vantagens à custa dos outros. Estas pessoas tendem a ser vistas como pouco honestas e pouco confiáveis.

O estudo ainda comparou o perfil de Trump com o de 21 outros líderes populistas. Em todos os factores analisados, está sempre entre os três resultados extremos. No conjunto dos perfis, tem os níveis mais elevados em narcisismo e maquiavelismo, e os níveis mais baixos em agradabilidade, conscienciosidade e estabilidade emocional. O facto de os resultados de Trump se destacarem em relação aos valores médios do grupo de comparação sugere que se trata de uma figura única e paradigmática entre os líderes populistas analisados.

Dan McAdams, professor da Northwestern University e director do Foley Center for the Study of Lives, usou também o Big Five para avaliar os comportamentos expressos por Trump em entrevistas, declarações públicas e nas redes sociais, e confirmou aqueles resultados (The mind of Donald Trump, 2016). Concluiu que Trump tem um perfil muito diferente do que se espera de um presidente dos EU: um nível muito elevado de extroversão acompanhado de um nível muito baixo de agradabilidade.

As suas tendências agressivas foram também referidas por Barbara Res, que liderou a construção da Trump Tower, em Manhattan, numa entrevista ao Daily Beast: “Os ataques de raiva fazem parte da sua personalidade”. A sua elevada dominância social e baixa agradabilidade explicam que as manifestações de raiva sejam uma parte central do seu carisma e da sua retórica.

A mentira tem funções importantes na actividade política mas no caso de Trump apresenta níveis incomuns, podendo levar a defini-lo como mitómano. Num estudo feito pela PolitiFact em relação à verdade das afirmações feitas pelos candidatos às eleições presidenciais de 2016, os dados mostraram que no seu caso só 2% das afirmações eram inteiramente exactas, 7% eram maioritariamente verdadeiras, 15% eram meias verdades e 75% eram maioritariamente falsas ou completamente falsas. Este último valor era de 31% e de 29%, respectivamente , para Bernie Sanders e Hillary Clinton.

O Washington Post também fez uma análise detalhada das mentiras do presidente. Durante os primeiros 77 dias do primeiro mandato, Trump fez 367 afirmações falsas ou enganosas, e reagiu com irritação quando foi confrontado com as suas fantasias. Chegou a afirmar que Obama e Hillary Clinton foram os fundadores do grupo terrorista ISIS, durante a presidência de J. Bush!

A “Teoria da Personalidade Autoritária”, desenvolvida em meados do século passado pelo professor de Barclays, Theodor Adorno, também ajuda a compreender a personalidade de Trump. As pessoas autoritárias são rígidas, convencionais, e têm tendência para dicotomizar as pessoas em “nós” e os “outros”. Têm ideias feitas sobre o que é “bom” ou é “justo”. São etnocêntricas, preconceituosas e hostis com os mais fracos e com as minorias. Veem o mundo como perigoso e as pessoas com desconfiança. Apelam a pensamentos ameaçadores para exercer o seu poder através do medo. O líder autoritário é dominador e agressivo, pretende antes de mais satisfazer as suas necessidades e tem baixa resistência à frustração, percebendo os opositores como inimigos.

Numa entrevista que deu à People, em 1981, Trump declarou que “O homem é o mais vicioso de todos os animais e a vida é uma série de batalhas que acabam sempre em vitórias ou derrotas”. Mais adiante disse, acerca de Manhattan, “Esta ilha é uma verdadeira selva. Se não tiveres cuidado, mastigam-te e cospem-te”.

As pessoas com tendências autoritárias que sentem a sua estabilidade ameaçada, tendem a aderir a lideranças autoritárias que lhes prometem segurança. Um estudo recente de Matthew MacWilliams (On Fascism: 12 Lessons from American History, 2020), mostra que níveis elevados de autoritarismo são um bom preditor do apoio a Trump. Vão no mesmo sentido as conclusões do estudo realizado por Dan McAdams sobre as tendências políticas dos cristãos evangélicos radicais (The Strange Case of Donald J. Trump: A Psychological Reckoning, 2020). Para eles, “uma fé forte, tal como um líder forte, livra-os do caos, e impede os medos e os conflitos. Trump é um salvador”. Este episódio durante a campanha, na Carolina do Norte, ajuda a compreender muito do que referi acima. Depois de Trump repetir que “algo de muito perigoso está para acontecer”, uma jovem dirigiu-se-lhe e disse: “Estou com medo. O que pode fazer para proteger o país?”. Trump responde: “Tu não vais ter medo. Eles é que vão ficar aterrorizados”.

Um dos traços mais estudados da personalidade de Trump é o seu acentuado narcisismo. Inscreveu o seu nome em quase todos os empreendimentos, de torres urbanas a casinos, e até numa universidade que criou para formar empreendedores imobiliários, a qual redundou num escândalo e na condenação a uma indeminização de 21 milhões de dólares aos estudantes defraudados.

George Simon, um conhecido psicólogo clínico que trabalha na área da persuasão, declarou à Vanity Fair que utiliza nos seus seminários os vídeos de Trump para ilustrar os comportamentos narcísicos. Mas a melhor ilustração é provavelmente a declaração que Trump fez, no dia do funeral do pai. Quando foi questionado pela imprensa sobre qual foi a principal obra do seu progenitor, respondeu “foi ter criado um filho brilhante e famoso”.

As pessoas narcísicas têm um conceito empolado de si próprias e elaboram racionalizações complexas para mostrar que têm sempre razão, que não têm fracassos e que são as mais competentes. Atribuem os insucessos à mediocridade dos outros e quando a realidade não é coerente com a imagem grandiosa que têm de si, mudam a realidade criando “factos alternativos” coerentes com essa imagem.

Trump considera-se “o melhor negociador do mundo”, ia construir no México “o maior e mais belo muro”, conhece o ISIS “melhor que os próprios generais” e considerava-se “a pessoa mais presidenciável que alguma vez apareceu”. Confrontado com os diagnósticos de patologia que lhe eram atribuídos, respondeu: “Eu sou a pessoa mais saudável que conheço, talvez a mais saudável do mundo. Eles é que são loucos e ineptos”. A propósito das suas capacidades, declarou que “o meu quociente intelectual é dos mais elevados; não se sintam estúpidos porque não têm culpa”.

Os narcisistas também querem mostrar a sua superioridade pondo em causa as convenções sociais. Numa entrevista a Lary King, Trump abre a entrevista dizendo “Você tem mau hálito. Já lhe tinham dito?”. A quebra das regras é, aos olhos de muitos seguidores, uma demonstração de coragem e de liderança. A elevada auto-estima que caracteriza as pessoas com transtorno narcísico leva-as a querer a admiração e o reconhecimento de todos, e a reagirem mal à frustração. Por isso, só admitem o feedback que confirme as crenças sobre si próprios. Os feedbacks negativos são liminarmente rejeitados. Muito antes da segunda eleição, Trump repetiu que só aceitaria o resultado se lhe fosse favorável e que, caso contrário, iria contestá-lo.

A barreira que levantam a qualquer oposição faz com que limitem as suas perspectivas, impeçam novas aprendizagens e expandam sem limites o poder do eu. Trump vive obcecado com a popularidade e reage às críticas com raiva e expressões insultuosas, sobretudo através do twitter. Em algumas conferências de imprensa chegou a proibir a presença dos órgãos que lhe eram desfavoráveis e classificou-os de “inimigos do povo”. A escritora Ariana Haffington, sua opositora, foi objecto deste comentário: “É pouco atractiva tanto por dentro como por fora. Compreendo perfeitamente porque é que o ex-marido a trocou por um homem. Dou-lhe toda a razão”.

A intolerância à crítica é ainda acompanhada por outra característica do transtorno narcísico, a falta de empatia, que faz os narcísicos centrarem-se apenas em si e serem insensíveis aos sentimentos dos outros. Tendem, por isso, a ser frios e até cruéis nas suas atitudes. Por exemplo, em reposta a um repórter do The New York Times que sofre duma doença articular congénita, e que pôs em causa algumas afirmações de Trump, este respondeu publicamente imitando e ridicularizando os espasmos articulares do repórter.

Esta insensibilidade humana explica também a atitude de Trump em relação aos problemas ambientais e aos interesses das minorais raciais, culturais, religiosas e de género. Quando lhe disseram que apoiantes seus agrediram e humilharam um emigrado hispânico, respondeu que os seus apoiantes “… são muito apaixonados; encanta-os que este país volte a ser grande outra vez”. E quando foi questionado se aprovava a asfixia simulada por mergulho da cabeça na água, para obter confissões, respondeu: “Não se enganem, rapazes, resulta mesmo! Só um estúpido diria que não”.

Um estudo publicado por Aubrey Immelman, da Universidade de S. José, na Califórnia (The leadership style of U.S. president Donald J. Trump, 2017), com base em informação psicobiográfica, e utilizando o Millon Inventory of Diagnostic Criteria, confirma estes dados. Conclui que Trump apresenta o perfil de um líder carismático de elevada dominância, e que tem competências para mobilizar o apoio popular e conseguir manter a autoconfiança em situações de adversidade.

Num estudo que realizou posteriormente com Anne Marie Griebie (The Personality Profile and Leadership Style of U.S. President Donald J. Trump in Office, 2020) explicou que as principais limitações de Trump eram ” a tendência para uma compreensão superficial das questões complexas, uma predisposição para se aborrecer facilmente com a rotina (com o risco inerente de não se manter adequadamente informado), uma inclinação para agir impulsivamente sem apreciar plenamente as implicações das suas decisões ou as consequências a longo prazo das suas iniciativas políticas, e uma predileção por favorecer as relações e lealdades pessoais, em vez da competência, nas decisões sobre o seu staff e nas nomeações. Tudo isto torna a administração Trump relativamente vulnerável a erros de julgamento e escândalos políticos”.

Outra investigação publicada por uma equipa liderada por Courtland Hyatt, da Unidade de Estudo da Personalidade dos Políticos, também da Universidade de S. José (Dr. Jekyll or Mr. Hyde? President Donald Trump’s personality profile as perceived from different political viewpoints, 2018), comparou a percepção que os apoiantes de Trump tinham das suas características de personalidade, com a percepção dos seus opositores políticos. Concluiu que ambos viam o presidente como assertivo, imodesto e impulsivo (narcisismo). Mas, contrariamente aos opositores, os apoiantes de Trump percebiam-no como agradável, consciencioso e emocionalmente estável.

Estes resultados confirmam o estudo de Nai e Mayer (Can anyone be objective about Donald Trump? Assessing the personality of political figures, 2019) feito em amostras de americanos votantes e adversários de Trump. Os dois grupos concordam nos traços acentuados de extroversão e narcisismo, mas os apoiantes de Trump avaliam-no como mais agradável, mais consciencioso, emocionalmente mais estável e mais aberto à experiência, menos maquiavélico e menos psicopata, do a avaliação feita, quer pelos adversários políticos, quer por um grupo de peritos.

Esta abundância de evidências tem levado muitos a perguntar como é possível alguém com este perfil ter chegado à presidência da maior potência mundial. Na verdade, Donald Trump não “chegou” a presidente. Foi levado à presidência pelo vontade livre de milhões de cidadãos, numa democracia consolidada. Apesar do perfil do candidato ser largamente conhecido antes da sua primeira eleição, ainda podia argumentar-se que o eleitorado desconhecia a sua verdadeira face no desempenho do papel presidencial. Mas após 4 anos como presidente, o argumento não colhe.

Nas eleições de 2020 Biden foi o presidente eleito com o maior número de votos de sempre, mas Trump foi também o derrotado com a maior votação de sempre. Conseguiu quase 73 milhões de votos, isto é, 47,4%, mais 10 milhões de votos e mais 1,2% do eleitorado, do que em 2016, após um mandato em que revelou atitudes discriminatórias, arrogância, desrespeito pelas instituições, agressividade com os opositores, falta de sentido de estado e recurso sistemático à mentira.

Passados quatro anos, Trump é reeleito com uma maioria incontestada. Que relação liga este homem à maioria dos norte-americanos? A resposta pode ser mais clara se percebermos o quadro psicossocial dos seus apoiantes e a forma como se articula com o perfil da sua liderança carismática.

Um estudo de Diana Mutz, do Departamento de Ciência Política da Universidade da Pensilvânia (Status threat, not economic hardship, explains the 2016 presidential vote, 2018), e outro publicado por Adam Enders e Joseph Uscinsky (On Modeling Support for Donald Trump, 2020) ajudam a explicar a relação entre o perfil psicológico de Trump e os seus milhões de seguidores.

O estudo de Mutz utilizou um amplo painel representativo do eleitorado americano que foi entrevistado em 2012 e novamente em 2016, antes da eleição de Trump. O objectivo era saber que mudanças ao longo dos 4 anos podiam explicar a sua vitória. Os resultados mostraram, de forma algo surpreendente, que o “voto do bolso” não funcionou. O desemprego e a quebra de rendimentos não favoreceram o apoio a Trump. As mudanças de opinião mais significativas entre as duas eleições foram no sentido do governo dever fazer menos acordos de mercado livre, os emigrantes deverem regressar aos seus países de origem e a China constituir uma ameaça crescente à segurança e ao emprego nos EUA. Estas mudanças aproximaram o eleitorado dos pontos de vista mais conservadores e mostraram ser os melhores preditores do voto em Trump.

A autora concluiu que, subjacente a estas mudanças de opinião, está um sentimento de ameaça externa e interna ao estatuto social que atinge uma larga faixa da população americana, sobretudo branca, masculina, tradicionalista e com estatuto social reconhecido. A investigação tem confirmado que a ameaça percebida por um grupo social dominante tende a desencadear reacções de apoio a soluções políticas conservadoras que restaurem os equilíbrios do passado e lhe restituam a dominância.

A teoria da ameaça de status também é apoiada pela investigação de Enders e Uscinsky. Foi construído um Perfil de D. Trump com afirmações que representam as suas posições ideológicas em cinco domínios: ressentimento racial, pensamento conspirativo, atitudes anti-emigração, sexismo e atitudes anti-politicamente correcto. O estudo conclui que a adesão a este perfil de atitudes é o melhor preditor do voto em Trump, melhor do que a ideologia ou a opção partidária, mesmo entre os republicanos. Os que têm resultado elevado no perfil, têm uma probabilidade de 70% de votar Trump; os que têm um resultado baixo, têm uma probabilidade de apenas 13%.

Mas a conclusão mais interessante é esta: existe uma correlação positiva muito elevada entre as atitudes negativas em relação às minorias raciais, aos emigrantes, às mulheres, ao politicamente correcto, e à defesa da teoria conspiratória. Isto pode indicar que subjacente à variedade dos perfis dos apoiantes de Trump (nem todos são racistas, sexistas e anti-emigração…) está subjacente uma orientação geral: um quadro psicológico de ameaça percebida que estimula a forças in-group e polariza o ódio contra o que é estranho ou parece adverso.

Psicologicamente, o sentimento de ameaça de status é diferente do racismo ou do sexismo. Ao contrário destes, é auto-protector, passivo e pouco consciente. É sobretudo o medo da mudança na sociedade e nos valores, e a nostalgia do regresso ao passado, que dá origem a atitudes racistas, sexistas, xenófobas e anti-elitistas. Na realidade elas não radicam em antagonismos estruturais mas são uma reacção ao medo. A liderança de Trump não foi a causa. Limitou-se a despoletar uma dinâmica que estava latente.

A metáfora utilizada por Shamir para descrever o fenómeno carismático é particularmente útil para se compreender a nossa tese: a articulação entre o perfil do líder, o quadro psicológico dos seus apoiantes e a situação objectiva em que ambos interagem. O fenómeno carismático é semelhante a um incêndio que necessita de combustível (o quadro psicológico dos seguidores), oxigénio (um contexto social que induza esse quadro) e uma fonte de ignição (a personalidade e a acção do líder).

As profundas mudanças (oxigénio) que a sociedade americana sofreu nos últimos anos são internas à sociedade mas também ocorrem no ecossistema económico e político que a envolve. Estes são alguns factos.

– Pela primeira vez os europeus brancos que fundaram a América estão na iminência de constituir uma minoria racial pondo em causa o seu sentimento de dominância social e política. Ao mesmo tempo têm-se implementado políticas que apoiam os direitos e o poder social das minorias.

– O desemprego, a instabilidade laboral e a imprevisibilidade dos rendimentos do trabalho degradaram o nível de vida de uma parte da classe média.

– A globalização, com a consequente desindustrialização e a transferência de muitos sectores de actividade para o leste da Europa e Ásia, colocaram a sociedade americana numa situação de falta de oportunidades e dependência externa que as actuais gerações não conheciam.

– A prosperidade económica já não permite o “elevador social” que tradicionalmente levava à ascensão dos pobres à classe média e média-alta.

– Os Estados Unidos (EU) estão a perder a liderança da economia mundial e o “softpower americano” que fez da sociedade americana uma referência social e cultural desde o pós-guerra, está a perder influência.

– O dólar está sujeito a múltiplas ameaças e dificilmente manterá o seu papel como moeda de referência nas transações internacionais.

– A ascensão política e económica da China está a eclipsar o papel dominante dos EU no mundo. Só 28% dos americanos acredita, hoje, que a América “está acima dos outros países”. A dependência americana da industria e do investimento chineses limita o poder negocial dos EU e condiciona o seu desenvolvimento.

Este contexto determina as atitudes de muitos dos apoiantes de Trump que percebem este quadro como uma ameaça à segurança e bem-estar, e ao seu sentido de orgulho nacional. O quadro psicológico (combustível) que corresponde às perceções e sentimentos induzidos pelo contexto pode descrever-se com os traços seguintes.

– Sentimento de que se perdeu a segurança, estabilidade e previsibilidade que caracterizavam a vida social, e que permitiam planear os percursos de vida e o futuro da família.

– A frustração das aspirações associadas ao “sonho americano”, isto é, a crença de que na América há oportunidades para todos, de que o trabalho duro leva ao sucesso e à prosperidade, e de que os filhos terão um futuro melhor que os pais.

– Medo de que a ascensão demográfica e a aquisição de direitos por parte de outros grupos sociais possa por em causa a dominância social do grupo de pertença.

– Sentimento de humilhação por fazer parte duma nação que está a perder poder no plano internacional, independência económica e capacidade de influência.

– Medo de que “o perigo Chinês”, a globalização, a abertura dos mercados e as políticas ambientalistas, aumentem a dependência do exterior, agravem o desemprego e arruínem a prosperidade que caracterizou a vida americana.

– A crença de que as mudanças na sociedade vieram destruir a sociedade ideal do passado caracterizada pelas hierarquias estáveis, pela coesão dos grupos sociais, pelo respeito da lei e da tradição.

– A crença de que os responsáveis pela destruição dos equilíbrios do passado são os emigrantes, as minorias raciais, religiosas e algumas elites, contra os quais é preciso agir para restaurar o “paraíso perdido”.

A actuação pública de Trump, a retórica de campanha e sobretudo o seu perfil comportamental, são a fonte de ignição que faltava. As mensagens transmitidas ajustam-se quer ao contexto quer ao quadro psicológico que descrevemos e, por isso, operaram como um ignitor.

– O lema de campanha Make America Great Again e as promessas de que a sua presidência recuperaria “a nossa riqueza e os nossos sonhos”, apelam à ideia de restaurar o que se perdeu. É também uma referência às múltiplas perdas que a classe média americana sofreu e ao desejo de recuperar o sonho americano. O núcleo da mensagem de campanha de Trump é um misto de tradicionalismo e nostalgia do passado.

– Para unir os seus apoiantes e reforçar o sentimento de segurança, Trump socorre-se da estratégia bem conhecida de polarizar a culpa e os sentimentos de ódio noutros grupos, apontando um conjunto de alvos: emigrados, estrangeiros, outros países (incluindo aliados), grupos raciais, minorias religiosas e algumas elites. Esta estratégia teve o sucesso facilitado, porque veio acordar as tendências isolacionistas e segregacionista que sempre estiveram latentes na sociedade americana.

– O estilo desagradável e transgressivo de Trump, contra o politicamente correcto, muitas vezes grosseiro e inconveniente, é percebido como um sinal de dominância, coragem, assertividade e capacidade de mudança. Estes traços tornam-no um líder atractivo para pessoas que se sentem ameaçadas e acreditam que a mudança só é possível através de medidas radicais.

– O acentuado narcisismo da sua personalidade é percebido como um sinal de autoridade e de confiança em si próprio, que é apelativo a pessoas dependentes ou inseguras que veem em Trump o líder que é capaz de fazer a mudança. A agressividade com que reage aos opositores projecta a ira e a revolta de muitos descontentes com as mudanças sociais que os ameaçam. Um grande número de ressentidos e revoltados sente-se representado nas suas teatralizações agressivas e a identificação emocional é um meio eficaz de obter seguidores.

Donald Trump é o actor que entra em cena quando o cenário já está montado, os espectadores enchem a sala e sabe bem que papel representar para os cativar. Não montou o cenário nem escolheu a assistência. Compreendeu o que queriam e foi capaz de ter um desempenho convincente. Não foi a causa. Veio acordar ansiedades e expectativas, e dar voz ao “mal estar” duma parte importante da sociedade norte-americana.

Enquanto tivermos o mesmo tipo de cenário e de espectadores, porque não fomos capazes de resolver os grandes problemas que nos perturbam, como a insegurança no trabalho, a falta de perspectivas de futuro, a crise da classe média, a destruição dos mecanismos de elevador social, as ameaças ambientais, a desindustrialização e os obstáculos à cooperação internacional, continuaremos a alimentar o risco destes “incêndios”, com Trump ou com uma sua réplica, nos Estados Unidos ou noutro lugar qualquer.

Seja Apoiante

O Estado com Arte Magazine é uma publicação on-line que vive do apoio dos seus leitores. Se gostou deste artigo dê o seu donativo aqui:

PT50 0035 0183 0005 6967 3007 2

Partilhar

Talvez goste de..

Apoie o Jornalismo Independente

Pelo rigor e verdade Jornalistica