Maria Santos, mais conhecida por ‘Esperança’, ou ‘Maria da Esperança’, acabara de fazer 80 anos. Os seus cinco filhos, distribuídos por diferentes partes do mundo, tinham resolvido antecipar as férias na aldeia, em vez da habitual vinda no Natal, propositadamente, para fazerem uma festa surpresa à mãe.
‘Esperança’ era bem conhecida e amada na sua aldeia. Todos sabiam que podiam contar com ela. Era uma mulher alegre e trabalhadora. Sabia escutar, acolher, aconselhar, consolar e pacificar… e sempre assim fora, daí a alcunha da ‘Esperança’. E quando havia doenças, ou problemas de desentendimentos com maridos, filhos, pais, irmãos, era sempre à sua porta que todos batiam…até dinheiro lhe pediam e ela sempre emprestava, mesmo que lhe fizesse falta.
O marido não achava graça, rabujava entre dentes, aborrecia- se um pouco e dizia-lhe muitas vezes:- “ Ó Maria, eles que resolvam os seus problemas… não tens solução para tudo, nem podes carregar com os sofrimentos de todos…trata mas é de nós, pára com essas conversas, senão ainda ficas tu doente da cabeça…”
Porém, ‘Esperança’ sorria, mas nada respondia. E continuava igual, de coração e porta aberta para ajudar quem precisava.
No dia do seu aniversário, os filhos e netos tinham preparado uma bela surpresa! Levaram a mãe ao cabeleireiro, vestiram-na de novo da cabeça aos pés, perfumaram-na, enfeitaram-na com brincos, colares e pulseiras modernas, e levaram mãe e pai ao melhor restaurante da zona; convidaram os mais próximos entre parentes e amigos, e houve festa rija com acordeão e bailarico … já tarde, ao fim do dia, no regresso a casa, ainda os esperava outra surpresa: lá estavam os vizinhos cheios de presentes para a ‘nossa Esperança’! Bolinhos de azeite, queijos, vinhos, ovos, flores, mel, enfim, mais um banho de música e ternura naquele final de dia!
Nessa noite, ‘Esperança’ deitou-se de coração cheio e agradecido. Como era bom saber-se tão amada… nem se imaginava digna de tanto!
Nos dias seguintes, na aldeia só se falava nos 80 anos da ‘Esperança’! Entretanto, os filhos e netos regressaram aos seus trabalhos e combinaram novo encontro no ano seguinte, para o Baptizado do primeiro bisneto, ou bisneta, que já vinha a caminho!
Contudo, à medida que as semanas iam passando, o marido começou a notar que ‘Esperança’ estava diferente… perdera o apetite, parecia mais cansada, muitas vezes encontrava-a deitada sobre a cama, andava mais triste e calada… e uma noite, perguntou- lhe:
“- O que se passa contigo, Mulher? Onde está a Maria da ‘Esperança’ alegre que vivia nesta casa? Estás zangada comigo? Fiz -te algum mal? Fala, Mulher!”
Quase a medo, ou talvez com vergonha, ‘Esperança’, sem dizer palavra, de lágrima ao canto do olho, desabotoou a camisa de dormir, descobriu o peito e o marido, estupefacto, olhou-a, preocupado, ao ver uma estranha mancha grande, castanha e rugosa…
“- Ó Mulher, mas há quanto tempo tens isso? Dói-te? Por que nada dizias? Tens de ir já ao médico… amanhã vamos à urgência a Viseu! Apanhamos a camioneta e vamos lá…”
‘Esperança’ limitou-se a responder:
“ – Não disse nada para não estragar a alegria de todos vocês, nem as férias dos nossos filhos e a festa que me quiseram fazer… isto apareceu há uns três meses, era pequenina, mas cresceu…não queria queixar-me de nada… e depois, tu sabes bem que estamos velhos e se estas coisas acontecem aos outros, também a mim me podem acontecer… não sou mais que os outros…sei bem que estamos aqui de passagem… a viagem já vai longa, só gostava era de ainda poder conhecer o bebé que aí vem…”
Nessa noite, o marido – um homem duro, por dentro e por fora, criado com pouco carinho e fome, entre as ervas do campo, empedernido pela dureza da vida e do trabalho, e pouco dado a ‘pieguices’, como ele dizia! – com os seus braços ainda vigorosos, abraçou ‘Esperança’ com uma ternura que ela há muito desejava…
Na manhã seguinte, bem cedo, lá partiram os dois na camioneta para Viseu. Alguns vizinhos, espreitando ao postigo, estranharam, mas eles nada lhes disseram.
À chegada ao hospital, foram às urgências. Ao fim de longa espera, foram chamados; o médico que os recebeu pediu desculpa pela espera, ouviu ‘Esperança’ e olhou a mancha com muita atenção e depois disse:
“- Não creio que seja alguma coisa de grave, D. Maria, mas ficaria mais tranquilo se aceitassem esperar pelo fim das consultas e ainda pode ser que o meu colega dermatologista, que está hoje a dar consulta e a operar, ainda a consiga ver! Eu ficaria mais descansado! Se ele achar que é melhor fazer uma biópsia, ele o dirá!“
Naturalmente, o casal aceitou e voltou para a sala de espera…
“ – Vá lá, anima-te, ‘Esperança’! Vais ver que não é nada de grave… vais ver!” – disse-lhe o marido, fazendo-lhe uma festa na cara enrugada.
Já perto das dez da noite, quando todo o pessoal e doentes pareciam ter saído, o médico que os tinha atendido, veio chamá-los e levou-os ao gabinete do dermatologista para os apresentar.
‘Esperança’ ainda começou por dizer:
“- Ai, Sr. Dr., coitadinho, não queria nada que fosse jantar tão tarde… por minha causa! Deve ter a família à espera e tantas horas sem comer…”
O médico sorriu-lhe como se tivesse todo o tempo do mundo, com delicadeza ajudou ‘Esperança’ a despir a camisola e a deitar-se na maca, aproximou uma lente potente e fazendo incidir um foco de luz sobre a mancha, tocou, observou atentamente os rebordos, e exclamou:
“- Dona Maria, fique tranquila, não é nada de mau… isto é benigno, tipo verruga, próprio da idade… não se preocupe! Vou-lhe dar uma pomada e pronto… mas se acha que fica mais bonita sem isto, marcamos cirurgia e num instante se tira tudo!”
‘Esperança’, logo se levantou com ligeireza, vestiu-se, e transbordando de alívio e alegria, só dizia: “ Graças a Deus! Sr. Dr. muito, muito obrigada!”
O marido aproximando-se então, com emoção mal disfarçada, acrescentou:
“ Sr. Dr. muito obrigado, não precisa operar nada… sempre gostei dela assim… mesmo agora velhota, como eu, e com mancha, ou sem mancha, mais verruga, menos verruga, já não muda nada! Gosto dela assim! Há 60 anos que estamos casados! Obrigado Dr., por nos dar tão boa notícia! Nem sabemos como agradecer… mas se nos permitir, viremos cá trazer uns vinhos da nossa produção, uns figos e uns queijinhos da Serra…”
O médico sorriu-lhes, agradeceu por sua vez, acompanhou-os à porta, e ao despir a bata, cansado daquele longo dia de trabalho, só pensava com os seus botões como era bom ainda poder dar boas notícias a casais daquela idade, há tanto tempo juntos e ainda amigos um do outro!
Felizes e aliviados, ‘Esperança’ e o marido lá foram os dois celebrar a boa notícia na feira de S. Mateus, no seu último dia. Já tarde, chamaram um táxi e voltaram a casa. Pelo caminho, Maria da ‘Esperança’, de mão dada com o seu velhote, silenciosamente, ia rezando um terço, agradecida, enquanto o marido conversava com o motorista.