Nos últimos anos, uma parte importante do debate público sobre temas de justiça e igualdade tem-se centrado nas questões de género. No centro da polémica estão uma vez mais os estereótipos de género: as crenças socialmente partilhadas sobre as características, os comportamentos, as competências e os papéis que identificam a mulher e o homem. Aquilo que acreditamos ser a verdade sobre os atributos que os distinguem e as funções que devem ter na sociedade.
É uma questão fracturante que tem contribuído para a polarização entre progressismo e conservadorismo. Na visão progressista, os estereótipos de género são instrumentos do poder masculino dominante que perpetuam as desigualdades entre homem e mulher. São uma fonte de injustiças e limitam a expressão da individualidade.
O progressismo defende que o comportamento humano é um produto do contexto social, e homem e mulher têm mais semelhanças a uni-los do que diferenças a separá-los. As expectativas de género são construções sociais que servem para manter relações discriminatórias e, por isso, devem ser combatidas em nome de uma sociedade mais justa e igualitária.
Na perspectiva conservadora, os estereótipos de género têm uma base biológica e resultam da evolução humana. Homem e mulher têm características biológicas diferentes que determinam os seus comportamentos. As diferenças de género são um dado à partida, devem ser aceites como tal e traduzir-se em papéis sociais distintos. Para alguns mais radicalmente conservadores, a desconstrução dos estereótipos de género não passa de uma forma de policiamento dos comportamentos promovido pela “tirania woke”.
Esta polarização de posições está na raiz de numerosas discussões que giram em torno de quatro temas principais. O primeiro é o debate sobre as discriminações produzidas pelos estereótipos de género, no acesso a posições de poder. A mulher ao ser vista como menos competitiva, menos assertiva e mais emocional, é preterida no acesso a funções de liderança, tanto nas organizações como na representação política, enquanto o homem é sujeito à censura social quando se mostra compassivo, submisso ou vulnerável, dificultando a expressão da sua autenticidade.
O segundo debate relaciona-se com a influência dos estereótipos de género, interiorizados desde a infância, nas decisões de carreira. A ideia de que a mulher tem características mais favoráveis a profissões de relacionamento e de cuidado, enquanto o homem tem competências mais elevadas nas áreas científicas e tecnológicas, condiciona as escolhas, limita as oportunidades percebidas e impede o desenvolvimento das potencialidades individuais de umas e de outros.
Outra polémica desenvolve-se em volta das formas de expressão emocional. Nesta dimensão os estereótipos de género são claramente normativos: o homem deve ser forte, firme, racional e protector, e a mulher deve mostrar-se sensível, carinhosa e cuidadora. Estas expectativas exercem uma forte pressão sobre a expressão das emoções, fazendo com que o homem tenha dificuldade em exprimir as fragilidades, por serem vistas como manifestações de feminilidade, e a mulher em demonstrar atitudes firmes e assertivas, tidas por masculinas.
O facto dos estereótipos definirem expectativas precisas sobre os comportamentos de género pode também afectar a autoestima e a percepção de si próprio. O homem que não é dominador e a mulher que não tem vocação cuidadora podem sentir-se frustrados por não corresponderem ao que a sociedade espera de si.
Uma última polémica desenvolve-se à volta do significado e função dos estereótipos de género. Para alguns, os progressos que se têm conseguido no sentido da igualdade de género mostram que a masculinidade e a feminilidade são conceitos culturais que evoluem. Neste caso, os estereótipos de género estariam a perder importância na determinação dos comportamentos. A este contrapõe-se o ponto de vista de que os estereótipos de género desempenham um papel importante: separar os papéis sociais, de acordo com as diferenças biológicas entre homem e mulher, utilizar as suas inclinações naturais e aproveitar as complementaridades entre ambos, a favor da sociedade.
As questões de género são difíceis de clarificar porque nelas confluem a perspectiva científica da biologia, da psicologia e da sociologia, os posicionamentos ideológicos à esquerda e à direita, e o radicalismo de alguns movimentos feministas e ultraconservadores. Uma análise serena coloca principalmente três questões: a ciência comprova a existência de diferenças biológicas entre homem e mulher, a que podem associar-se padrões de comportamento distintos? Os estereótipos de género têm fundamento na biologia e na evolução da espécie, ou são construções sociais? Qual a relação entre biologia e contexto social?
Os estereótipos feminino e masculino
Na sociedade ocidental os estereótipos da mulher e do homem apresentam dois perfis muito diferenciados, apontando para um conjunto de características em muitos aspectos opostas. O estereótipo feminino inclui cinco eixos principais.
Submissão, passividade e dependência. A mulher é vista como conformista, submissa e dependente, esperando-se que cumpra orientações, evite os confrontos, pacifique os conflitos e ponha as necessidades dos outros acima das suas. Que seja gentil e delicada, evitando atitudes de dominação e comportamentos agressivos.
Sensibilidade e fragilidade emocional. Acredita-se que a mulher é frágil dos pontos de vista físico e psicológico. O comportamento feminino é dominado pelas emoções sugerindo a ideia de que é pouco racional na forma como lida com as situações, menos capaz para tomar decisões de elevada responsabilidade e de lidar com situações de tensão.
Empatia e orientação para as pessoas. O estereótipo feminino representa a mulher como cuidadora, compassiva, sensível aos sentimentos dos outros, orientada para a família e para as relações pessoais. Este perfil reforça a ideia de que tem características que se ajustam a funções que envolvem o cuidado da família e do lar, as relações humanas e a ajuda aos outros.
Organização, responsabilidade e atenção distribuída. A mulher é percebida como organizada, eficiente e com a capacidade de desempenhar várias tarefas em simultâneo.
Baixa competência técnica e científica. Acredita-se que a mulher tem menos competência para áreas como a matemática, as ciências e a tecnologia, e competências mais elevadas nas áreas verbal e das ciências humanas.
Aparência física. O estereótipo feminino inclui a expectativa de que a mulher cuide da beleza física, dedicando-se aos cuidados estéticos do corpo.
O estereótipo do homem representa, de forma paralela, o conjunto das crenças partilhadas sobre o que são ou devem ser as suas características e comportamentos.
Força e resiliência. O homem é visto como fisicamente forte e resistente, com capacidade para desempenhar tarefas que exigem grande esforço e para suportar o sofrimento sem o demonstrar. Estas capacidades tornam-no apto para as funções de obter recursos, sustentar e proteger.
Racionalidade e controlo emocional. Espera-se que o homem se foque na resolução racional dos problemas, assuma a liderança das situações, saiba controlar as emoções e não se deixe dominar por sentimentos como o medo, a ternura, a tristeza ou a comoção.
Autossuficiência e competitividade agressiva. O homem é visto como independente, capaz de enfrentar as dificuldades e conseguir os objectivos com o seu esforço pessoal, sem demonstrações de fraqueza. É ambicioso e competitivo, voltado para conquistar o sucesso material e profissional.
Provedor da família. Espera-se que seja o principal responsável pela subsistência material da família.
Ambos os estereótipos incluem elementos descritivos e normativos. Os primeiros referem o que se acredita serem as características dos géneros como, por exemplo, o homem é forte, racional e competitivo e protector, e a mulher é frágil, sensível, emocional e cuidadora. Os elementos normativos descrevem as características, comportamentos e papéis que se espera que cada género demonstre e desempenhe. O homem deve saber controlar as emoções, suportar o sofrimento sem se manifestar, proteger e prover a família. A mulher deve ser gentil e delicada, ter uma postura submissa, evitar o confronto e as atitudes de dominação e cuidar da aparência física.
O estereótipo descritivo da mulher limita as oportunidades de emprego, de evolução na carreira e de ascenção a funções de liderança na sociedade, porque a mulher é vista como pouco assertiva, pouco ambiciosa e com baixa capacidade de liderança. Por outro lado, no plano normativo, o estereótipo cria uma pressão no sentido da conformidade às expectativas de papel, podendo gerar sentimentos de frustração ou inibir a expressão autentica de si própria. A mulher pode ser desencorajada a escolher profissões científicas o tecnológicas e motivada a optar por profissões de ajuda, a sacrificar os seus projectos profissionais em prol da família, a conformar-se a posições subordinadas e a limitar a diversidade de experiências.
O estereótipo masculino pode levar o homem a não desempenhar profissões como auxiliar educativo, esteticista ou cuidador, e papéis como o apoio à família, tidos como femininos, e a evitar exprimir os seus sentimentos, pedir ajuda e revelar fragilidades pessoais. A pressão para a conformidade ao estereótipo não só limita as oportunidades profissionais e a expressão de si próprio como pode ter efeitos negativos na saúde mental e contribuir para preconceitos que afectam as relações pessoais e profissionais.
Estes dois quadros estereotípicos estão a ser fortemente contestados. A mudança social tem sido no sentido de atenuar muitas destas diferenças e combater a discriminação fundada em normas de género. No entanto, os aspectos essenciais destes estereótipos continuam presentes em múltiplas dimensões da vida social: na educação, nos contextos de trabalho, nos media e, de forma implícita, nos juízos e decisões de muitos que, de forma consciente, defendem a igualdade de género. Importa, pois, saber se homem e mulher têm efectivamente padrões de comportamento diferentes e, em caso afirmativo, se essas diferenças têm uma base biológica ou se resultam de uma aprendizagem social.
Diferenças biológicas e comportamentais entre os géneros
Os fundamentos biológicos das diferenças de género têm sido amplamente estudados, abarcando as diferenças genéticas e hormonais, a estrutura física e a estrutura cerebral. As diferenças nos cromossomas sexuais do homem e da mulher determinam o desenvolvimento das características sexuais primárias e secundárias, e as diferenças hormonais que, por seu lado, condicionam a robustez esquelética, o desenvolvimento muscular, a distribuição do tecido adiposo e padrões de resposta aos estímulos do meio . A testosterona, produzida nos testículos e em menor quantidade nos ovários, determina, entre outros aspectos, o volume da massa muscular, a distribuição da pilosidade no corpo, a altura da voz, mais grave no homem, bem como os níveis mais elevados de competitividade e agressividade masculina.
O homem tem, em média, massa muscular e densidade óssea mais elevadas, o que contribui para uma maior robustez física. A mulher tem estruturas ósseas mais leves e flexíveis, que facilitam a gestação e o parto, e uma percentagem mais elevada de gordura corporal, associada às funções reprodutivas.
A progesterona e o estrogénio são hormonas que predominam na mulher com um papel importante no desenvolvimento de características femininas como a mama, o ciclo menstrual, a gravidez e a distribuição da gordura nos quadris e nas coxas.
A oxitocina, uma hormona produzida no cérebro, conhecida como “hormona do afecto” é produzida em maior quantidade na mulher, embora também desempenhe no homem um papel importante nas relações sociais e emocionais. Esta hormona está associada a comportamentos de empatia, ao estabelecimento de vínculos afectivos e à expressão das emoções.
A neurociência mostra que há diferenças estruturais entre os cérebros da mulher e do homem. O cérebro da mulher tem mais densidade neuronal em áreas como o córtex, o que pode estar associado a maior capacidade para integrar a informação, e apresenta maior conectividade entre os dois hemisférios cérebrais. A conectividade entre os hemisférios, ao nível do corpo caloso, favorece a capacidade para integrar os planos verbal e emocional, uma visão mais holística das situações e maior capacidade para exercer várias tarefas em simultâneo.
O cérebro do homem tem, em média, um volume e peso ligeiramente superior, reflectindo a proporção entre o cérebro e o corpo, e a conectividade neuronal dentro de cada hemisfério é maior, o que pode explicar o desenvolvimento de competências mais elevadas nos domínios espacial e motor, a tendência para se focalizar em tarefas específicas e para adoptar uma perspectiva mais analítica.
Há também estudos que indicam pequenas diferenças médias, entre géneros, na dimensão e no funcionamento de áreas como a amígdala e o hipocampo, relacionados com a memória e as emoções. No homem, a amígdala é de maior dimensão o que pode explicar respostas emocionais mais intensas a situações de risco ou ameaça. Na mulher, a amígdala tem conexões com as áreas do cérebro associadas à memória e à expressão das emoções, o que pode explicar a forma mais complexa e contextualizada de reagir a situações emocionais. O hipocampo é ligeiramente mais desenvolvido na mulher, o que pode favorecer a memória emocional e a orientação em ambientes familiares.
O córtex pré-frontal tem um papel central nas funções cognitivas superiores como o raciocínio, o planeamento e o controlo das emoções, e também apresenta diferenças entre os dois géneros. Estudos de neuroimagem mostram que, em média, o córtex pré-frontal da mulher é proporcionalmente maior, tem mais densidade neuronal e apresenta maior conectividade entre os dois hemisférios. Estas características podem explicar os facto da mulher mostrar competências sociais e emocionais mais elevadas e maior capacidade para integrar o elemento emocional nas tomadas de decisão.
As respostas emocionais também são diferentes no homem e na mulher. No homem, a resposta a situações de risco ou stresse é mediada pela testosterona, e manifesta-se tipicamente em comportamentos de confronto ou de fuga. Na mulher, a resposta é mediada pela oxitocina, determinando uma maior tendência para comportamentos de aproximação empática e de cuidado. A mulher tem mais facilidade em reconhecer as expressões emocionais dos outros e em expressar as emoções, devido a uma maior actividade do sistema límbico, e tende a controlar menos as emoções nas respostas a estímulos ameaçadores.
A investigação também identifica diferenças entre os géneros no que respeita às competências e aos padrões de comportamento. A mulher tem, em média, aptidões verbais mais elevadas, designadamente, maior fluência verbal e precisão na leitura, e melhor memória de curto prazo. Também desempenha melhor em tarefas que envolvem a memória de rostos, de eventos emocionais e de detalhes contextuais. O homem tem melhor desempenho em tarefas que exigem aptidões mecânicas e espaciais, sobretudo as que envolvem rotação e orientação espaciais.
Os estudos de psicologia diferencial mostram também diferenças nos perfis médios de interesses. O homem interessa-se mais por áreas como mecânica, tecnologia, engenharia e desportos competitivos, enquanto a mulher se interessa sobretudo por actividades que envolvem a relação com pessoas, o apoio social, iniciativas comunitárias e o artesanato criativo.
A mulher está mais motivada para o relacionamento social, e valoriza mais a colaboração e o apoio, enquanto o homem procura autonomia e independência. O homem tende a mostrar níveis mais elevados de agressividade física, favorecidos por níveis mais elevados de testosterona, enquanto a agressividade da mulher se exprime mais frequentemente em termos verbais ou relacionais, por exemplo, cortando os relacionamentos ou manipulando as relações. A mulher mostra maior empatia cognitiva e emocional.
Um dos aspectos mais aparentes das diferenças de género é a forma como se exprimem e regulam as emoções. O homem tende a reprimir as emoções em especial aquelas que podem ser interpretadas como sinais de fragilidade, como o medo, a tristeza ou a compaixão. Tende a demonstrar as emoções de forma indirecta ou a usar o distanciamento emocional como demostração de força e coragem. A mulher mostra uma gama mais ampla de emoções e tende a exprimir os sentimentos de forma mais aberta e intensa.
Na área da comunicação, o homem utiliza uma forma mais directa e assertiva, orientado para a resolução rápida dos problemas e para soluções práticas. A mulher tem uma abordagem mais expressiva, colaborativa e consensualizante, com mais sensibilidade ao impacto da comunicação nas relações pessoais e no ambiente de trabalho. Tem uma comunicação mais empática e disponível a escutar a opinião dos outros. A mulher também utiliza melhor e é mais sensível às linguagens não-verbais. Usa mais o contacto visual e as expressões faciais para complementar a comunicação oral, o que facilita a comunicação dos aspectos emocionais.
Os dois padrões de comunicação estão alinhados com a forma como lidam com o conflito. O homem adopta mais frequentemente atitudes competitivas e confrontativas para resolver os conflitos, focando-se na sua resolução rápida. A mulher adopta atitudes mais conciliatórias e colaborativas, procurando o entendimento entre as partes e manter os relacionamentos intactos. Neste caso, a resolução do conflito é mais demorada mas tende a ser mais duradoura e satisfatória para as partes, favorecendo o restabelecimento da harmonia e da cooperação.
Também se registam diferenças, em média, entre os géneros, no que respeita à tomada de decisão e ao estilo de liderança. A mulher adopta uma abordagem mais cautelosa e detalhada, considerando diversas perspectivas antes de tomar a decisão. Está mais orientada para o contexto social, sendo particularmente sensível aos impactos sociais, pessoais e emocionais das escolhas. Esta tendência pode estar relacionada com a maior activação das áreas do cérebro relacionadas com a empatia e a percepção social, durante o processo de decisão.
O homem apresenta uma abordagem mais directa, rápida, orientada para resultados, aberta ao risco e com pouco enfoque nos detalhes, associada à maior activação da amígdala, a estrutura cerebral que regula as reacções ao risco e às recompensas, e também aos níveis mais elevados de testosterona, a hormona que condiciona os comportamentos agressivos/competitivos.
A reacção ao risco também apresenta diferenças médias. A mulher é mais cautelosa e analisa com mais cuidado os possíveis impactos das decisões. Tem maior aversão a assumir riscos nos contextos de negócio e, sobretudo, se o risco envolve pessoas, porque dá maior relevância às necessidades e sentimentos dos outros. Em relação ao risco, a mulher tem uma abordagem mais conservadora, mas que pode revelar-se mais sustentável no longo prazo.
O homem tem comportamentos mais ousados e competitivos e é mais provável assumir riscos em situações de incerteza e competição, em áreas como o investimento, os negócios, o jogo e o desporto. Foca-se nos objectivos concretos e tende a afastar da decisão os factores emocionais que podiam influenciá-la, dando menos relevância aos impactos sociais e pessoais imediatos das escolhas.
Embora haja uma forte influência da personalidade individual e dos contextos, o homem tende a utilizar estilos de liderança mais orientados para a tarefa, com tendência para centralizar o poder e usar a autoridade. Delega tarefas e metas específicas mas mantém a supervisão e controlo dos resultados. Utiliza a pressão no sentido de atingir os objectivos e distribui os incentivos em função do desempenho. Adopta, por isso, um estilo mais próximo da liderança transacional.
A mulher adopta estilos de liderança mais colaborativos e orientados para as pessoas, focados na preservação das relações e do ambiente de trabalho, na criação de uma visão compartilhada e no desenvolvimento das equipas. Aproxima-se mais, por isso, do padrão de liderança transformacional. A mulher é mais flexível, adaptando o estilo de liderança às necessidades das pessoas e dos contextos de trabalho. Valoriza mais a delegação e a responsabilização, encorajando a autonomia, o desenvolvimento de competências e as relações de confiança.
Estas duas orientações são ainda reforçadas pela focalizaçâo dominante nos géneros. O homem está sobretudo focado na concretização dos objectivos, nas realizações individuais, no sucesso profissional e na conquista de status. A mulher dá prioridade ao plano relacional e está mais focada na cooperação, na harmonia e na interajuda.
Estes dados permitem algumas conclusões gerais mas também exigem prudência na forma como devem ser interpretados.
1- Existem diferenças genéticas e hormonais entre homem e mulher que influenciam não só as características físicas como alguns padrões típicos de comportamento. Em especial as funções hormonais e a estrutura do cérebro, no homem e na mulher, favorecem a existência de competências cognitivas e socio-emocionais com padrões diferentes sem que nada permita defender a superioridade funcional de um deles.
2- As diferenças ao nível da estrutura do cérebro e, sobretudo, nos padrões comportamentais, são diferenças médias que exprimem as tendências registadas num número elevado de observações. Há uma enorme diversidade de casos individuais e os padrões típicos dos géneros têm uma larga faixa de sobreposição. Isto significa que as generalizações são uma perigosa fonte de erro.
3- A análise dos padrões comportamentais típicos do homem e da mulher mostram uma evidente complementaridade. No homem dominam as capacidades relacionadas com a força física, a agressividade, e de um modo geral as competências orientadas para a relação com o mundo físico. Na mulher é dominante a orientação para as pessoas. Têm maior expressão as competências emocionais para estabelecer relações, apoiar, colabora ser sensível aos outros e ao impacto das acções sobre as pessoas. É provável que a complementaridade destes padrões, que reflectem a diferenciação genética e hormonal dos sexos, tenha tido, no passado da espécie, uma função importante na alimentação, na reprodução e na sobrevivência colectiva, mas nada indica que desempenhem a mesma função vital na sociedade de hoje.
4- As diferenças na funções hormonais e na estrutura do cérebro contribuem para diferenças de género (por vezes muito ligeiras) nos comportamentos médios, mas não têm um impacto decisivo no desempenho. A posição mais consensual é a de que os factores biológicos apenas determinam a predisposição para determinados comportamentos. A socialização, os factores culturais e a diversidades das experiências individuais modelam de forma muito significativa o modo como o homem e a mulher se comportam, reduzindo, anulando ou mesmo invertendo a influência das diferenças biológicas no comportamento. Usar as características biológicas para justificar as normas de género é cair no reducionismo biológico, uma visão simplista e unilateral que entende as diferenças de género como essenciais e imutáveis. O estudo dos estereótipos de género é um dos domínios onde é mais clara a interdependência da biologia e da cultura, como veremos a seguir.
Influência dos meios social e cultural nas diferenças de género
Os contextos social e cultural têm uma enorme influencia nas diferenças comportamentais entre homem e mulher. Embora os factores biológicos contribuam para muitas dessas diferenças, o contexto social é determinante na forma como as diferenças se desenvolvem, são expressas, são percepcionadas e avaliadas.
Todas as sociedades têm normas de género bem definidas. São crenças partilhadas sobre as atitudes e comportamentos “próprios” do homem e da mulher. Aquilo que se espera que cada um seja e demonstre, pela simples razão de pertencer a um dos géneros. Estas expectativas definem com precisão os papéis que devem desempenhar na sociedade, as formas de reagir e exprimir as emoções, as relações com o sexo oposto, a utilização que devem fazer da autonomia e da liberdade, como devem perspectivar o futuro, a maneira de comunicar, os padrões de beleza que devem adoptar, e até as formas de pensar, de vestir e de andar…
As normas sociais também determinam a forma como homens e mulheres constroem as suas identidades de género, exercendo uma forte pressão no sentidos de os comportamentos individuais obedecerem às expectativas sociais limitando, deste modo, as formas de expressão individual e contribuindo para a marginalização dos que não obedecem às expectativas.
As normas de género são transmitidas desde muito cedo. Os rapazes são incentivados a ser firmes e competitivos. As raparigas a serem dóceis e disciplinadas. As actividades escolares, as brincadeiras e o feedback que recebem dos adultos modelam as suas atitudes, interesses e expectativas, e constroem a identidade de género de cada um. Os media e as redes sociais têm também um papel importante. A publicidade comercial, em particular, retrata muitas vezes a mulher ligada às tarefas domésticas e aos cuidados à família, e o homens em papéis de acção e de liderança, moldando os comportamentos que são “adequados” a cada género.
As redes sociais são um espaço de socialização com grande influência na transmissão, na internalização, no questionamento e na desconstrução das normas de género, sobretudo entre os jovens. Muitos influenciadores reforçam os estereótipos de género tradicionais exibindo a importância do vigor físico, da agressividade competitiva e do sucesso financeiro, nos rapazes, e a idealização da beleza e da maternidade, nas raparigas. A procura de um corpo perfeito e de uma aparência física objecto de desejo, afecta mais as raparigas mas também os rapazes na busca de um físico atlético.
A internalização destas normas de beleza como ideais obrigatórios, pode conduzir a graves problemas de autoestima, a transtornos alimentares e a problemas de saúde mental. As redes sociais ao promoverem a comparação das expectativas de género com os seus modelos ideais são uma fonte permanente de frustrações que abrangem desde a aparência física ao sucesso pessoal e estilo de vida.
Os algoritmos usados pelas redes sociais para direccionar anúncios também contribuem para reforçar os estereótipos de género, dirigindo à mulher mensagens sobre produtos de beleza, alimentares e acessórios para o lar, ou dirigidas ao bem-estar emocional, e aos homens a publicidade a automóveis, bebidas alcoólicas e equipamentos desportivos, reforçando as expectativas de género. Algumas empresas estão a repensar as estratégias de marketing e a quebrar os estereótipos apelando aos valores da igualdade e da diversidade, mas o peso dos estereótipos é bem visível nas polémicas que se geram em relação a algumas campanhas publicitárias mais disruptivas.
As redes sociais são também um espaço onde os comportamentos que fogem ás normas de género podem ser criticados, ridicularizados ou objecto de ciberbullying. Comportamentos que se afastam do ideal do género ou que são considerados “femininos” no homem, ou “masculinos” na mulher, são socialmente punidos constituindo uma forma severa de controlo social. Esta pressão para a conformidade faz com que muitas pessoas adoptem as normas tradicionais de género e outras não sejam capazes de expressar a sua verdadeira identidade.
Apesar destes aspectos negativos, as redes sociais permitem o contacto com casos que não seguem padrões de género binários e acolhem muitos movimentos que promovem a aceitação de expressões de gênero fora dos estereótipos, ajudando a combater as limitações de normas opressivas. Alguns destes movimentos incentivam o respeito pela individualidade e liberdade de escolha, e ajudam a desconstruir os papéis de género tradicionais.
Apesar da valorização que nos últimos anos está a ser dada à empatia, à colaboração e ao trabalho em equipa, mais associados ao padrão de liderança da mulher, ainda há muitas organizações que usam estereótipos implícitos para atribuir as funções e responsabilidades “apropriadas” a cada género. Favorecem nas funções de liderança os comportamentos masculinos mais competitivos e orientados para resultados, e nas funções administrativas e de apoio, a colaboração da mulher. Deste modo, dificultam o acesso de muitas mulheres a cargos de maior responsabilidade ou promovem preferencialmente aquelas que mais se aproximam do padrão masculino da liderança. Com isto reduzem as oportunidades de progressão na carreira de todos os que não cabem naquele padrão. Estas organizações contribuem para a perpetuação das normas de género ao mostrarem, com as suas políticas de progressão na carreira, que é o estereótipo da liderança masculina que leva ao sucesso.
Vários estudos mostram que há também mecanismos psicológicos que podem levar a uma falsa confirmação das normas de género, contribuindo para as perpetuar. Quando a norma é internalizada, afecta os níveis de autoestima e autoeficácia, levando a pessoa a acreditar que é mais capaz ou menos capaz, do que realmente é, para enfrentar determinados desafios, de acordo com a expectativa de género. Uma mulher que internaliza que “as mulheres não têm jeito para a matemática”, reduz a autoconfiança e o empenhamento para ter sucesso nesta área, o que vai afectar o seu desempenho. “Prova”, com isso, (a si própria e aos outros) que a matemática não é para as mulheres…
Outro mecanismo psicológico está relacionado com o medo de confirmar a expectativa de género quando ela é negativa. A ideia de que o homem não é cuidador pode levar a níveis elevados de ansiedade e stresse quando tem que assumir a responsabilidade de cuidar de alguém. O medo de não ser capaz e a tensão a que está sujeito pode conduzir ao insucesso, confirmando que o papel de cuidador cabe à mulher.
Um terceiro mecanismo psicológico contribui ainda para a manutenção das normas de género: o efeito que a expectativa exerce sobre o desenvolvimento das competências. O facto de o homem dever mostrar-se enérgico e objectivo e a mulher empática e cuidadora influenciam a dinâmica das relações interpessoais, treinando as competências sociais contidas na expectativa. Isto significa que as expectativas de género tendem a cumprir-se e a perpetuar-se porque a pressão que exercem pode favorecer o desenvolvimento dos comportamentos esperados.
A desconstrução das normas de género e a quebra das barreiras que impõem cria um espaço de liberdade para que todos, independentemente do género, explorem as suas potencialidade sem constrangimentos, exprimindo a sua individualidade e servindo a sociedade com a diversidade das suas competências, motivações e aspirações pessoais.
A falsa oposição entre biologia e sociedade
A maior consciencialização sobre os problemas da diversidade e da inclusão, e o debate sobre a igualdade de género, estão a mudar as expectativas sociais e a desafiar a rigidez tradicional dos papéis atribuídos ao homem e à mulher. Esta transformação tem reduzido o impacto negativo dos estereótipos, e está a contribuir para atitudes e ambientes de trabalho que estimulam a igualdade e valorizam as diferenças individuais, permitindo que homem e mulher exprimam o seu potencial menos condicionados pelas normas de género.
Contudo, esta mudança está longe de ser generalizada e a educação no seio da família, a formação escolar, o contexto cultural, os media, as redes sociais, as políticas organizacionais e as relações pessoais do dia a dia, continuam a perpetuar as normas de género de uma forma discreta mas persistente.
Permanece, pois, a questão de saber se as normas de género se fundamentam em diferenças biológicas entre homem e mulher ou se são construções sociais para justificar relações de poder, as quais é necessário desconstruir e combater. As posições à volta desta questão continuam polarizadas. Uns defendendo que as diferenças entre homem e mulher são determinadas pela biologia dos géneros, outros argumentando que as diferenças são uma construção social, apoiando-se ambos no pressuposto de que há uma oposição radical entre natureza e sociedade. Ou seja, as normas de género justificar-se-iam porque refletem as diferenças biológicas entre homem e mulher, ou então não teriam qualquer justificação porque são uma forma de opressão social que pode e deve ser contestada em nome dos valores da igualdade e da justiça.
A oposição entre natureza e sociedade é uma ideia fortemente radicada na cultura ocidental e que também encontra apoio no senso comum. Esta tese, também expressa na oposição entre biologia e cultura, apoia-se em três pressupostos sem fundamento. O primeiro é ideia de que a realidade biológica é um dado à partida, em si próprio imutável. As características biológicas são vistas como factores determinísticos que não podem ser modificados pela vontade humana nem pelo exercício da experiência. Neste sentido, as diferenças comportamentais entre géneros determinadas pelas funções hormonais ou pela estrutura do cérebro constituiriam uma matriz “fixada na natureza”, que teríamos que aceitar como um facto indelével. Seria impossível alterar o que a natureza determinou.
O segundo pressuposto falso é a ideia de que as estruturas biológicas e a sociedade evoluem de forma paralela e independente. A mudança nos organismos far-se-ia pelos mecanismos da transmissão genética, enquanto a mudança social resultaria da vontade humana, como se se tratasse de duas dinâmicas diferentes e incomunicáveis.
O terceiro pressuposto é a distinção entre as finalidades prosseguidas pela biologia e pela sociedade. A lógica finalista da biologia seria a sobrevivência e expansão dos organismos, enquanto a sociedade visava a felicidade e o bem-estar, pela libertação dos condicionalismos da natureza. Enquanto a natureza nos submeteria às suas leis implacáveis, a sociedade cumpria a função de nos libertar da natureza.
Não é possível aprofundar aqui a falta de fundamento destes postulados. Basta mostrar que não se aplicam ao que sabemos sobre a relação entre as funções do cérebro no homem e na mulher e os comportamentos de género. Contrariamente à ideia comum de que a realidade biológica pré-existe e não pode ser alterada, entre o organismo e a sociedade há uma relação dinâmica e bidireccional. O cérebro desenvolve-se e aprende com a experiência e a experiência desenvolve-se com a evolução do cérebro. O cérebro humano é um órgão plástico. O atributo da neuroplasticidade permite-lhe reorganizar, criar e desligar as conexões neuronais como reacção a novas experiencias e aprendizagens. Esta propriedade é essencial para o desenvolvimento cognitivo, emocional e motor.
A investigação mostra que, quando uma aprendizagem ou a experiência são repetidas, as conexões entre os neurónios envolvidos é fortalecida. Esta “potenciação de longo prazo” está na base da consolidação da memória e do desenvolvimento de novas capacidades. A aprendizagem também leva à formação de novas ligações neuronais, ao aumento do número de circuitos e à integração de diferentes áreas do cérebro, possibilitando respostas mais rápidas e mais complexas. Do mesmo modo, as conexões menos utilizadas podem ser “desligadas” para optimizar a eficiência geral.
Sabemos, por exemplo, que experiências específicas activam as áreas do cérebro que estão funcionalmente relacionadas. Aprender a tocar um instrumento, aprender uma língua ou praticar um desporto podem expandir ou reorganizar os circuitos neuronais para suportar as novas capacidades. Alguns estudos provam mesmo a existência de neurogénese. Em áreas do cérebro, como o hipocampo, podem formar-se novos neurónios em resposta a experiências continuadas e em casos de lesão cerebral as áreas não atingidas podem assumir em parte as funções das áreas que foram lesadas.
Na esfera sócio-emocional, as interacções sociais moldam os circuitos neuronais relacionados com a empatia e as competências de interacção social, e as experiencias vividas com emoções mais intensas estimulam a produção de serotonina e dopamina, dois neurotransmissores que influenciam a aprendizagem e a retenção mnésica. Por isso, as experiências com maior carga emocional têm mais probabilidade de ser lembradas.
Tudo indica que a experiência introduz mudanças funcionais no cérebro, levando à aquisição duradoura de novas capacidades e de padrões de resposta nos domínios cognitivo e emocional, que reflectem o meio social. É provável que a modulação do cérebro ao contexto social tenha acontecido em dois planos. No plano filogenético, o cérebro evoluiu com a experiência acumulada de gerações. No plano ontogenético, desenvolveu-se com as experiências e aprendizagens individuais em contextos sociais específicos.
Deste modo, o cérebro é modelado pela experiência e aquilo que designamos por “natureza” pode ser em boa medida uma “réplica biológica” das experiências sociais. Nesta perspectiva, uma grande parte das diferenças comportamentais entre géneros resultariam das “marcas” no cérebro produzidas pelo contexto social.
Uma questão mais difícil é compreender como é que as diferentes experiências sociais, do homem e da mulher começaram a acontecer, iniciando o processo de “programação” diferenciada do cérebro nos dois géneros. Uma hipótese possível é a de que a diferenciação dos comportamentos e das experiências esteja, na sua origem, relacionada com os mecanismos biológicos ligados à função reprodutiva. A evolução biológica ao definir as funções reprodutivas no homem e na mulher pode ter sido o principal factor que levou à diferenciação dos padrões de resposta ao meio e do desempenho dos papéis em contexto social. Este ponto de vista é defendido por perquisadores na área da psicologia evolutiva. A mulher teria desenvolvido a empatia, a sensibilidade emocional e as competências de relação interpessoal, pelo papel evolutivo na criação dos filhos, enquanto o homem teria desenvolvido traços de agressividade competitiva associados às actividades da caça e da defesa da comunidade.
A permanência histórica das normas de género deve-se sobretudo ao facto deste mecanismo de modelação do cérebro se retroalimentar. Uma vez que a experiência social desenvolveu no cérebro do homem e da mulher competências cognitivas e sócio-emocionais diferentes (em média) isso faz com que cada género desempenhe os papéis sociais para que está mais capacitado, com níveis de motivação e de eficácia mais elevados. Este processo foi reforçando ao longo do tempo a diferenciação dos papeis de género. Este mecanismo pode ajudar a compreender a razão porque muitos homens e mulheres aceitam as normas de género e desempenham os papéis que socialmente lhes são atribuídos, com naturalidade e até com o sentimento de que estão a exprimir a sua autêntica vocação.
Os papéis de género têm, pois, raízes profundas na evolução biológica da espécie e na inter-relação do organismo com as experiências em contexto social. A definição rígida dos papéis de género é provável que tenha tido uma função historicamente importante na reprodução e na sobrevivência da comunidade humana. No entanto, a evolução material e moral da civilização faz com que a divisão rígida dos papeis de género esteja a perder a funcionalidade original e as expectativas de género são hoje percebidas como contrariando aos valores da liberdade, da igualdade e da justiça que foram progredindo na consciência colectiva. É provável que a evolução moral da sociedade, associada à emergência destes valores, seja o factor decisivo que está a quebrar a relação circular entre a biologia e a sociedade, que tem alimentado a perpetuação dos estereótipos de género.
A desconstrução dos estereótipos de género vem ganhando espaço, mas não é uma missão fácil porque se desenvolveram ao longo do tempo numa relação simbiótica do organismo com a cultura. Mas é cada vez mais claro que a abertura dos comportamentos do homem e da mulher à experiência em novas áreas e em novos contextos, questionando as limitações das expectativas de género, permite-lhes desenvolverem outras competências e explorarem o seu pleno potencial em favor de si próprios e da sociedade.