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Conto. Dias de fúria

Fátima Fonseca, Professora de Línguas, Especialista em Orientação Familiar

E com estas histórias de família, a avó foi explicando aos netos como a morte inevitável de todo o ser humano não pode ser encarada como uma paródia de fantasmas, esqueletos e demónios.

Os miúdos estavam danados! Os pais tinham-nos levado, contra sua vontade, para perto de Viseu, para a quinta dos avós, em vez de os deixarem ir celebrar o Halloween com os amigos e colegas. Aninhas e Bernardo, respetivamente com 13 e 15 anos, eram adolescentes normais, ou seja, alternavam frequentemente amuos e entusiasmos, fúrias e meiguices, conforme as circunstâncias, os dias e as horas …

Na última semana, a proibição dos pais, seguida da decisão de os levar para a quinta, onde ficariam sem nada que fazer, nem primos com quem conviver ( como acontecia no verão), enquanto os pais iam viajar para fora, tinham- nos deixado completamente furiosos. Tinham sido vários dias de choro e raiva, dias de fúria, ao verem os seus planos de divertimento irem por água abaixo. Fechavam-se nos respetivos quartos, ao chegarem da escola, mal jantavam, nem queriam falar… Só resmungavam a todo o momento: ”Não é justo! Mas que grande seca…uma ‘seca do caraças’ ! e os ‘paizinhos’ vão passear com amigos …não é? Não é justo, não!”

E toda a viagem para o norte ameaçava ser mais do mesmo, até que o pai, já sem paciência, encostando o carro a uma berma da estrada, se voltara para trás e lhes dera um tremendo berro para se calarem. Aninhas começara a chorar baixinho e Bernardo enfiara o carapuço da ‘sweatshirt’ até aos olhos. Acabaram por adormecer e quando os pais pararam para almoçar, eles nem quiseram sair do carro.

Nessa noite, ao serão, já sozinhos com os avós, a fúria começou a passar com os mimos e bolinhos da avó, mais os planos do avô para o dia seguinte. Sentados no sofá à lareira e embrulhados em mantas, aos poucos o ambiente foi-se desanuviando… e a atitude compreensiva dos avós facilitou o desabafo das queixas dos netos…e eram muitas!

‘Sim, porque a mãe só me dá umas botas novas se eu tiver pelo menos 80 por cento no próximo teste de Matemática e eu não sou capaz… a professora embirra comigo… ‘- dizia a Aninhas em tom magoado.
‘Pois, e os pais vão passear e nós temos de ficar a estudar o tempo todo… eles não percebem que os nossos amigos contavam connosco para a festa do Halloween e eles não deixaram, mas os outros pais deixam, só os nossos é que não…e os outros confiam nos filhos… íamos todos para um monte no Alentejo e ia ser ‘bué da giro’… só nós é que faltamos…Eu sei tomar conta da minha irmã… não íamos fazer nada de mal… era só uma festa em casa, todos mascarados…’- queixava- se Bernardo, quase em lágrimas de raiva.

Os avós lá iam controlando a fúria e desgosto dos netos, com aquela escuta cheia de paciência e serenidade que só os anos trazem, até que em dado momento, surgiu a pergunta que os avós esperavam:

-“ … mas como é que os avós e os nossos pais celebravam o Halloween? O que é que eles faziam ?”

A avó começou então a explicar-lhes que essa história começara só quando os pais eram crianças, que tudo aquilo era uma ‘americanice ‘ para ganhar dinheiro, aproveitada por alguns tontos e outros mal-intencionados ligados a ‘espíritos do mal ‘e falou-lhes do ‘Pão por Deus’, essa tradição tão portuguesa e antiga desde o terramoto de 1755.

Pouco a pouco , foi-lhes contando alguns episódios que eles desconheciam…e como as conversas são como as cerejas, em breve a conversa derivou para a forma como o contacto com a morte se tornara decisiva na educação dos seus filhos e no respeito que tinham querido incutir na família, desde a infância.
O avô, já cheio de sono, a certa altura levantou-se, interrompeu a deriva, e despediu-se dos netos com um beijo e um abraço cheios de ternura, não sem antes lhes propor um passeio até à Serra da Estrela no dia seguinte, com uma visita às aldeias de xisto…

Encantados com a ideia do avô, Aninhas e Bernardo, ainda muito despertos, enroscaram-se na avó, cada um de seu lado, e quiseram ouvir mais histórias de família que desconheciam…
A avó contou-lhes então como a mãe deles crescera no meio da doença dos avós, que haviam sido tratados de longas doenças incapacitantes em sua casa, pelo que a morte anunciada tinha sido um motivo de redobrado carinho e atenção até ao fim. As idas ao cemitério nunca tinham sido uma brincadeira, mas também não eram um trauma. Tinham sido antes, um aspeto decisivo na sua educação na fé e na sua formação humana.

Por outro lado, também o pai de Aninhas e Bernardo não gostava de falar nisso, mas perdera um irmão mais novo do que ele, quando tinha dez anos e ambos jogavam às escondidas no pinhal da sua quinta. O irmão apenas de seis anos, caíra num poço, e o trauma tinha sido tão grande para toda a família que nunca mais tinham ido àquela quinta, acabando por se desfazer dela.

E com estas histórias de família, a avó foi explicando aos netos como a morte inevitável de todo o ser humano não pode ser encarada como uma paródia de fantasmas, esqueletos e demónios.
… Entretanto, o sono foi chegando e a avó, não querendo que os netos se deitassem sob o peso daquelas histórias reais, mas tristes, propôs que fossem até à cozinha beber um leite com chocolate quente e comer uma bolachinha das suas…

À despedida, nessa noite, ao beijarem a avó, Aninhas e Bernardo só diziam:
-“ Que bom estarmos aqui com os avós… São tão queridos… desculpem o nosso mau feitio…”
E a avó sorriu-lhes com meiguice.

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