Naquela noite, Patrícia não conseguia dormir. Dava voltas e reviravoltas na cama, mas tinha um frio imenso que vinha de dentro e por mais meias e agasalhos que pusesse, nada a aquecia. O marido bem sabia a razão por que ela não dormia. Já tinham falado muitas vezes sobre o tema… e sempre lhe dissera que pesasse a questão e simplesmente procedesse de acordo com a sua consciência. Que não se preocupasse, se acaso perdesse o respeito dos pares e até o emprego…
Em dado momento, percebendo que ela não dormia, João fez-lhe uma festa, aconselhou-a a que tomasse um leite quente e, voltando-se para o outro lado, logo adormeceu profundamente, no sono dos justos. Era um homem pragmático. Não ficava a remoer, ‘faço, não faço? Digo, não digo?’ Tomava decisões rápidas e quando chegado o momento, punha-as em prática, sem mais delongas ou hesitações!
Patrícia, porém, não era nada assim…eram tão diferentes!
Suspirou, levantou-se, sem ruído, vestiu o roupão e foi para a sala, sentar-se no sofá, junto ao aquecedor, às escuras. O tempo passava, mas a insónia persistia. Depois, levantou-se de novo, foi espreitar os dois filhos de onze e dez anos e a filha mais nova, de três, que dormiam tranquilamente nos seus quartos; aconchegou-lhes a roupa, bebeu um leite quente na cozinha e voltou para a sala.
Na manhã seguinte teria votações no Parlamento. Sabia que era a única na bancada do seu partido, a querer votar diferente, o que requeria uma coragem que receava faltar-lhe à última hora… mas ela era contra!
Não podia aceitar a posição do seu próprio partido. Na verdade, bem sabia que nem sempre pensara assim. Agora, porém, envergonhava-se, ao lembrar-se de como, na sua juventude, apoiara o movimento das mulheres que pretendiam legalizar o aborto. Até andara a recolher assinaturas…
Agora era cada vez mais difícil explicar aos colegas de partido como fora mudando em tanta coisa, num processo gradual de conversão pessoal, por influência de amigos católicos com quem se cruzara na vida hospitalar…
Ninguém entre os seus companheiros de bancada entendia as suas razões, pois achavam que a vida e o sofrimento de qualquer mulher valiam muito mais que a vida de uma ‘coisa’ no seu início, sem autonomia, um simples embrião, ou mesmo um feto; além disso, diziam eles, que as mulheres pobres iriam continuar a fazer aborto para lá da data legal e sem condições de saúde a que tinham direito, correndo perigo de vida.
Patrícia apresentara argumentos, artigos, histórias de mulheres arrependidas, mas eles continuavam cegos à defesa da vida inocente. Propunha-lhes outras medidas de apoio às mulheres em sérias dificuldades, mas eles não queriam ouvir.
Como médica, dissera-lhes várias vezes que o aborto não podia ser usado ou encarado como anti-conceptivo, e que muitos defensores do aborto se tinham arrependido, desde que tinham aparecido as primeiras ecografias provando a existência e rápido desenvolvimento de vida intra-uterina… mas eles riam-se, ou zangavam-se até…
Patrícia fora gozada, ignorada, olhada com escárnio e ouvira mesmo os que lhe diziam que pensasse bem, porque se era assim tão ‘beata’ agora, então se calhar estava mesmo na bancada errada e enganada no partido… ‘não seria melhor ir para um convento’???- perguntavam-lhe, troçando.
Patrícia pensava agora, se não estaria de facto, no local errado?
Não, o convento não era decididamente o seu local, bem o sabia, até porque era casada e mãe de família, mas poderia ser útil à sociedade e fiel à verdade dos seus princípios, trabalhando noutros locais…
Afinal, deixara o exercício da Medicina para servir o país e o partido, ali no Parlamento, como representante do povo.
Porém, continuava a manter uma certa pureza de ideais que, cada vez mais, se revelavam incompatíveis com várias posições da sua bancada…do partido em que se filiara há tantos anos, cheia de idealismo.
A defesa da vida de um inocente era agora para ela, claramente, um tema em que não podia transigir…só que quem mudara fora ela, apenas ela, e não os outros!
Patrícia guardava na mente para sempre a imagem nítida do dia em que começara a mudar … lembrava-se bem daquela garota de 15 anos, que um dia encontrara, em pranto convulsivo, à porta de casa de uma enfermeira parteira, no prédio em frente aquele onde vivia. Não conseguira ficar indiferente. Aproximara-se e perguntara o que poderia fazer por ela. A garota contara-lhe a sua história: estava grávida de três meses, desesperada, porque o namorado a deixara e os pais ao saberem da gravidez já não a queriam em casa…e por isso, ali estava ela, sozinha, à espera de ser chamada para fazer um aborto, que a mãe lhe marcara, mas que ela não queria fazer.
Sabia que não seria recebida em casa se não o fizesse, mas estava muito assustada e sobretudo, sabia perfeitamente que ia matar um bebé indefeso.
Patrícia era uma mulher muito humana. Ouviu a jovem com atenção, acarinhou-a, acalmou-a, e naquela tarde levou-a para sua casa.
Como médica, e mãe de um segundo bebé, com escassos onze meses de diferença do primeiro filho, compreendera bem a angústia da garota e sentira-se muito próxima dela. Falara com o marido sobre a melhor forma de a ajudarem. Depois, telefonara à mãe e pedira-lhe se podia acolher aquela menina durante algum tempo, explicando-lhe a situação. A mãe era viúva, vivia sozinha, e como boa senhora, de imediato aceitara a proposta. Entretanto, já veriam, como reatar a relação da jovem com os pais da jovem, mas até tudo se pacificar, ela teria um abrigo, comida e carinho. Não a abandonariam! E de facto, não a abandonaram!
Patrícia nunca mais esquecera aquela cena, por mais anos que passassem…e naquela noite, tinha aquelas imagens muito vivas…quando voltou para a cama, estava firmemente decidida a ser fiel à sua consciência.
Faria uma declaração de voto e abandonaria nesse momento o hemiciclo e o partido…
O sol raiava, quando Patrícia se levantou, com apenas duas horas de sono…
Ao pequeno-almoço, na hora da confusão e das pressas habituais, João olhava-a fixamente, mas sem fazer perguntas. Então, Patrícia, com um sorriso desanuviado, anunciou ao marido e aos filhos:
-Sabem uma novidade? Decididamente não nasci para fazer política…. Esta noite tomei uma firme resolução: vou renunciar ao mandato de deputada e regressarei aos hospitais…há falta de médicos e sei que é lá que poderei ser mais útil …a salvar vidas!
-Fazes muito bem! – comentou o marido, levantando-se e abraçando-a, beijou-a, enquanto os filhos os olhavam, admirados.