A previsível candidatura presidencial do almirante Gouveia e Melo volta a trazer à ribalta a relação entre os militares e a política. Um relacionamento que vem de trás porque, no final do século XIX, Mouzinho da Silveira já dizia que “este reino é obra de soldados”. Isto sem contar que a queda da monarquia em 5 de outubro de 1910 foi obra de uma reduzida força militar, ainda que contando com apoio civil, e o Estado Novo foi antecedido do período da Ditadura Militar e conheceria o epílogo a 25 de Abril de 1974 devido a um golpe de estado militar que, no mesmo dia, se transformou em revolta militar.
Golpe militar que, para além de razões políticas decorrentes da necessidade de encerrar o ciclo imperial, não deixou de contar com interesses corporativos provenientes da caserna, mais exatamente, o desconforto dos militares do quadro decorrente do articulado do Decreto-Lei 353/73, da responsabilidade do ministro Sá Viana Rebelo.
Estes acontecimentos evidenciam que, nos últimos séculos, os militares têm desempenhado um papel determinante na nossa história. Aliás, importa ter presente que, quando a revisão constitucional de 1982 exigiu o regresso dos militares aos quartéis, porque já se tinha esgotado o tempo do denominado período de transição previsto no Pacto MFA/partidos, o Presidente da República era militar.
De facto, no Palácio de Belém estava o general Ramalho Eanes, eleito em 27 de junho de 1976 e reeleito em 7 de dezembro de 1980. Além disso, no pleito eleitoral de 1976, o pódio contou com três militares: Ramalho Eanes, Otelo Saraiva de Carvalho e Pinheiro de Azevedo, e, em 1980, Eanes venceu outros militares: o general Soares Carneiro, apoiado pela Aliança Democrática (AD), Otelo Saraiva de Carvalho, Galvão de Melo e Pires Veloso.
Porém, a partir da conclusão do segundo mandato presidencial de Ramalho Eanes, os militares não mais voltaram a ter um papel ativo na condução da vida política nacional, aceitando que num regime democrático existem três poderes – executivo, legislativo e judicial –, não havendo lugar para qualquer poder militar. Aliás, a circunstância de a Constituição estipular, no artigo 120, que o Presidente da República “é, por inerência, Comandante Supremo das Forças Armadas” explicita a subordinação da estrutura militar ao elemento civil.
Na conjuntura atual, as sondagens apontam para a alta probabilidade de um militar, ainda que na reserva, voltar a ocupar a presidência da República. No caso um almirante que recusou ser reconduzido no cargo de Chefe de Estado-Maior da Armada (CEMA). Sendo certo que o Hino Nacional começa com a expressão “Heróis do Mar”, não parece ser essa a principal justificação para o favoritismo que o almirante Gouveia e Melo goza junto do eleitorado.
Na verdade, a sua posição privilegiada não decorre da forma como desempenhou o cargo de CEMA, mas sim da imagem competente – embora demasiado autoritária, segundo alguns – resultante da forma como colocou em prática o processo de vacinação contra a Covid 19, depois do fracasso de quem tinha sido encarregue dessa missão.
Apesar do reduzido distanciamento temporal, a História já permite afirmar que os portugueses consideram Ramalho Eanes o melhor Presidente da República pós-25 de Abril. Só que Eanes dispunha de um ativo que terá de ser sempre tido em conta nessa avaliação. De facto, foi ele que, em 25 de Novembro, permitiu o regresso ao espírito do 25 de Abril e evitou que Portugal embarcasse no aventureirismo de substituir o Estado Novo por um outro regime, igualmente ditatorial, que acreditava em amanhãs que cantavam em russo.
Como é sabido, a convivência de Eanes com os líderes dos principais partidos não foi fácil. Aliás, a já mencionada revisão constitucional de 1982 enfraqueceu as competências do Presidente da República ao mudar o sistema de governo para um semi-presidencialismo mitigado. Na realidade, a necessidade de pôr termo à democracia tutelada militarmente para viabilizar a entrada na Comunidade Económica Europeia (CEE) em 1986, não exigia que o Governo deixasse de responder politicamente perante o Presidente da República.
Voltando à próxima eleição presidencial, irá ocorrer numa conjuntura em que o Governo de maioria relativa previsivelmente não terá logrado a aprovação do Orçamento para 2026. Tempos difíceis, até porque os ventos da conjuntura internacional teimam em não soprar de feição.
Estes elementos, mais do que a profusão de candidatos, parecem jogar a favor de Gouveia e Melo, pois, em tempos de dificuldade, como os parágrafos iniciais deixaram claro, os portugueses tendem a colocar a esperança numa figura que lhes transmita confiança. Uma revisitação do sebastianismo, mesclado de messianismo. A aceitação tácita de que é preciso alguém para colocar o país em – ou na – ordem.
Gouveia e Melo, por enquanto, ainda não mostrou qualquer matriz de pensamento político. Uma caraterística para manter enquanto for possível, por mais insistente que seja a curiosidade jornalística. Por agora, basta que os arautos da sua candidatura propaguem a ideia de que Portugal tem a sorte de dispor de alguém – o Almirante das Vacinas – num momento tão delicado.
Quanto aos principais partidos da mainstream, talvez se imponha uma reflexão sobre a sua responsabilidade no provável regresso de um militar ao Belém. Não sendo o fim da democracia, não é abusivo dizer que quando os militares assumem protagonismo político e social é o desempenho partidário que fica em causa.