A distinção entre persuasão manipuladora e persuasão ética é da maior importância não só para distinguir a liderança da manipulação, como para orientar as práticas nas áreas da política, da comunicação institucional, do marketing e das relações interpessoais.
A manipulação não faz parte de uma liderança autêntica nem é uma prática necessária para se liderar com eficácia, mas é uma das formas mais comuns da falta de ética no exercício da liderança. Por isso, importa distinguir entre liderança manipuladora e liderança ética.
Os líderes são frequentemente tidos por manipuladores e a liderança como uma forma de manipulação. Na verdade, com contextos de mercado muito competitivos, equipas a lutarem por objectivos ambiciosos e a pressão para resultados no curto prazo, os líderes movem-se na fronteira estreita entre a liderança e a manipulação.
Há líderes que são exímios manipuladores, mas a liderança pode e deve ser exercida sem o recurso à manipulação. Distinguir entre ambas é essencial porque é aí que está a diferença entre conseguir a obediência dos colaboradores para as coisas serem feitas, ou ter o seu compromisso de longo prazo com os valores e objectivos da organização.
A crença falsa de que a liderança é uma forma de manipulação resulta não só da manipulação ser praticada por muitos líderes, tanto nas organizações como na comunicação de massas, mas também de os dois conceitos terem pontos em comum: são processos de influência que usam a persuasão para mudar as formas de pensar, sentir e agir. Tanto a liderança como a manipulação são orientadas para objectivos, isto é, têm resultados concretos que pretendem atingir e baseiam-se no conhecimento do comportamento humano para os alcançar. Na prática, é muito fácil resvalar da liderança para a manipulação quando desejamos que as pessoas queiram fazer o que nós queremos que seja feito.
Há, no entanto, um conjunto de aspectos que distinguem os dois conceitos.
A manipulação é uma forma de influência social enganadora e abusiva com a qual o manipulador quer satisfazer os seus interesses em detrimento do(s) manipulado(s), escondendo os verdadeiros objetivos e utilizando táticas dissimuladas. Uma das definições mais comuns descreve-a como uma forma de influência ou de controlo em que se usam meios ocultos, enganosos ou desonestos, para obter vantagens próprias a expensas dos outros.
Os manipuladores baseiam o seu poder na posição e na coerção. Usam tácticas de exploração emocional como o medo, a culpa, a pressão e a bajulação. Usam tácticas cognitivas como o condicionamento do pensamento crítico, o controlo da informação, o enquadramento da selectividade, a modelação das percepções e a mentira. Podem também praticar o favoritismo e formas de recompensa selectiva, e aproveitar as vulnerabilidades relacionais para atingir os seus objectivos. São tácticas de influência que podem ter resultados no curto prazo, mas que perdem eficácia com o tempo, porque as pessoas cansam-se e perdem a confiança.
A liderança, pelo contrário, é uma forma de influência conduzida com base em objetivos claros e transparentes, utilizando táticas que respeitam os outros e visam o benefício tanto do líder como dos seus parceiros. Baseia-se na confiança mútua, em valores comuns e objectivos partilhados, gerando um ambiente de lealdade e compromisso. A liderança responsabiliza as equipas, encoraja as pessoas a tomar a iniciativa e a partilhar as decisões. Visa relações humanizadas e resultados de longo prazo, comprometendo com a estratégia e os valores da organização.
Em síntese, a diferença entre manipulação e liderança está nos aspectos seguintes.
Intensão. A liderança influencia as equipas para atingirem objectivos de interesse comum e terem sucesso. A manipulação procura ganhos pessoais, ignorando as necessidades, desejos e bem-estar dos outros.
Uso do poder. A liderança utiliza o poder para apoiar e responsabilizar a equipa. A manipulação usa o poder para intimidar, controlar e discriminar; toma decisões centralizadas e inflexíveis; coage os outros para aceitarem as decisões.
Confiança. A liderança constrói relações de confiança e respeito mútuo, fundadas na transparência, honestidade, lealdade e exemplaridade. A manipulação destrói a confiança com comportamentos oportunistas, dissimulados e desonestos.
Autonomia. A liderança respeita os valores, a autonomia e a liberdade de escolha, e cria as condições para decisões livres e informadas. A manipulação limita a livre escolha, exercendo pressão para condicionar as decisões e controlar as acções.
Comunicação. A liderança utiliza uma comunicação aberta, honesta e nivelada; pratica a escuta activa e reconhece o papel das emoções no relacionamento interpessoal. A manipulação usa a comunicação como instrumento para coagir e distorcer a realidade; escuta pouco os outros e tem relações pouco empáticas; impõe as suas prioridades e pontos de vista.
Impacto na equipa. A liderança investe no desenvolvimento do potencial das pessoas, estimula o compromisso, a coesão das equipas, a cooperação e a produtividade, e reduz a rotação; estimula a criatividade, a inovação e a resolução dos problemas; conduz as pessoas em períodos de crise e incerteza. A manipulação usa as pessoas como meios para atingir os objectivos do manipulador; destrói a coesão da equipa e cria ambientes de desconfiança e revolta.
Impacto a longo prazo. Uma liderança eficaz reforça o compromisso e a lealdade, contribui para um ambiente positivo, consegue resultados duradouros, promove o crescimento e favorece uma imagem pública positiva; é a base de uma governança ética e responsável. A manipulação destrói a confiança, aumenta a rotação, contribui para ambientes tóxicos e destrói a reputação das organizações.
Uma vez que, tanto a liderança como a manipulação são processos de influência que visam a persuasão, o que realmente as distingue é a intenção com que a influencia é exercida e as tácticas que utilizam. O que se pretende é obter alguma coisa das pessoas, ou com as pessoas e para as pessoas? Sendo a manipulação uma forma de influência persuasiva que tem por objectivo o benefício do manipulador em prejuízo do manipulado, enquanto a liderança exerce a influencia persuasiva com base nos valores da autenticidade, autonomia, transparência e benefício mútuo, isto significa que a persuasão pode ser exercida de forma manipuladora ou de forma ética.
A distinção entre persuasão manipuladora e persuasão ética é da maior importância não só para distinguir a liderança da manipulação, como para orientar as práticas nas áreas da política, da comunicação institucional, do marketing e das relações interpessoais.
A manipulação não faz parte de uma liderança autêntica, nem é uma prática necessária para se liderar com eficácia, mas é uma das formas mais comuns da falta de ética no exercício da liderança. Por isso, importa distinguir entre liderança manipuladora e liderança ética. A primeira utiliza tácticas ocultas para obter proveitos próprios; a segunda é transparente quanto às intenções, respeita a verdade, a liberdade de decisão e o bem-estar das pessoas. Esta distinção é mais uma necessidade prática do que um exercício académico. Uma liderança ética é a base de relações humanas justas, respeitosas e duradouras, cria climas de confiança e autorresponsabilização, favorece a colaboração e o desenvolvimento pessoal. Alguns exemplos podem ajudar a distinguir na prática uma liderança manipuladora de uma liderança ética.
Há manipulação, por exemplo, quando se estabelecem objectivos irrealistas em benefício próprio, e se usa a pressão e a culpa pelo insucesso, para levar a equipa a atingi-los. Pratica-se uma liderança ética quando se estabelecem objectivos realistas que levam em consideração as capacidades e recursos da equipa, reforçando os passos no sentido certo e apoiando na correcção dos desvios.
Está-se a manipular quando se toma as decisões unilateralmente e usa a autoridade para as fazer cumprir. Pratica-se uma liderança ética quando se envolve a equipa no processo de tomada de decisão e se procura obter consensos que integrem os contributos da equipa, criando o compromisso com a sua concretização.
Manipula-se quando se estabelece relações transaccionais, só dando incentivos quando as pessoas apresentam resultados concretos e cessando-os quando não há contrapartidas. Exerce-se uma liderança ética quando se premeia, além do resultados, os esforços no sentido correcto, o desenvolvimento das competências, a iniciativa e a cooperação dentro da equipa.
Está-se a manipular quando, para cumprir um prazo exigente, se usa o medo como motivador, acentuando as consequências para a avaliação final ou para a segurança do emprego, se o prazo não for cumprido. Esta abordagem pode aumentar pontualmente a produtividade, mas cria uma atmosfera de tensão e ressentimento.
A abordagem da liderança comunica com clareza o desafio e inspira confiança à equipa. Dá e recebe feedback, apoia sempre que necessário e reforça os passos no sentido do objectivo. A equipa não é motivada pelo medo de falhar, mas pela confiança que tem nas suas capacidades e no apoio que recebe. Se tiver dúvidas, pergunte a si próprio se está a ajudar a equipa a ter sucesso ou se está apenas a usar a equipa para apresentar resultados.
Estes exemplos mostram a fronteira estreita entre liderança e manipulação. Mesmo os líderes mais bem intencionados podem usar de forma pouco consciente tácticas manipulativas ao exigirem resultados irrealistas, desrespeitarem a autonomia, ocultarem a informação, criarem um clima de urgências permanentes, jogarem com as emoções das pessoas, fazerem exigências inconciliáveis ou ignorarem o seu bem-estar. Apesar dos dados empíricos mostrarem que 70% dos empregados já sofreram tácticas de culpabilização ou reserva de informação, e que o aumento dos níveis de stress eleva em mais de 30% a rotação de pessoas, estas práticas são difíceis de identificar e em muitos casos estão normalizadas.
O uso frequente da manipulação em funções de liderança tem uma possível explicação na “tentação manipuladora” que é inerente à função. Na verdade, o processo de liderança pressupõe o propósito de influenciar os outros no sentido de os comprometer na consecução dos objetivos. Para obter a adesão, os líderes utilizam um conjunto complexo de mecanismos cognitivos e emocionais. Estes meios organizam-se muitas vezes numa sequência crescente.
Para influenciar é preciso antes de mais comunicar com clareza as metas ou objetivos a atingir. Mas em muitos casos isso não resulta, porque não é feito de forma suficientemente eficaz ou há outros factores que o impedem. Nesse caso, é necessário salientar as vantagens concretas dos objectivos a alcançar, para as pessoas e para a organização, isto é, argumentar com recurso a pressupostos racionais.
Quando a argumentação racional não resulta ou não é bem utilizada é provável o líder recorrer a elementos de ordem emocional que toquem mais profundamente as pessoas. A referência a desejos e expectativas, a medos ou a sentimentos de identidade, é frequente como forma de aumentar o poder persuasivo da mensagem. Outras vezes, o líder recorre à dramatização, à distorção dos factos, à ameaça e à mentira. A manipulação aparece assim como uma tentação associada à necessidade de intensificar o processo persuasivo, para atingir objetivos que interessam ao líder.
Uma das formas mais frequentes de manipulação em liderança é a manipulação emocional que se caracteriza pela tentativa de controlar o comportamento dos colaboradores influenciando os seus sentimentos. A manipulação emocional utiliza uma diversidade de tácticas. Por exemplo, fazer os colaboradores sentirem-se culpados ou ameaçados se não atingirem os objectivos; colocar-se na posição de vítima para suscitar a empatia e o empenhamento da equipa; fazer as pessoas sentirem-se confusas ou inseguras para aceitarem o que o líder deseja; fazer chantagem emocional; ignorar ou afastar as pessoas do contacto próximo como forma de as desestabilizar e submeter; controlar a informação ou usar a mentira para criar cenários que induzem o medo, o optimismo e outros sentimentos que levem as pessoas a adoptar os comportamentos que interessam ao manipulador.
Vários estudos confirmam que há factores de personalidade que podem favorecer os comportamentos manipuladores. Os líderes com traços acentuados de maquiavelismo ou de psicopatia tendem a mostrar mais comportamentos de manipulação emocional com motivações maliciosas ou desonestas. Em relação às personalidades narcisistas, os dados são menos claros. Há, no entanto, estudos que indicam que as pessoas com acentuado narcisismo têm tendência para usar estratégias mais discretas e subtis de manipulação como, por exemplo, o elogio.
Um estudo recente realizado pela equipa de Nguyen Nhu Ngoc, da Universidade vietnamita de Van Lang (A Meta-Analytic Investigation of the Relationship Between Emotional Intelligence and Emotional Manipulation, 2020) mostra uma área pouco investigada: o lado negro da inteligência emocional. A capacidade de perceber e interpretar as emoções dos outros dá uma informação importante acerca das suas atitudes, necessidades e intenções, e permite não só antecipar as suas reacções como saber quais as estratégias emocionais mais ajustadas para lhes responder.
Um nível elevado de inteligência emocional torna a pessoa mais capaz de influenciar os sentimentos e comportamentos dos outros, o que pode ser usado num sentido pró-social, isto é, para evitar emoções negativas ou produzir emoções positivas nos outros, mas também para obter vantagens pessoais em seu prejuízo. Há muitos exemplos: aproveitar a boa disposição da chefia para conseguir uma decisão que nos favoreça; usar a sensibilidade humana de um superior, dramatizando uma situação pessoal, para obter a sua compaixão; ou, simplesmente, omitir a parte negativa duma situação a que o outro é sensível, para se obter uma impressão favorável.
A meta-análise dos 24 estudos usados nesta investigação concluiu que as pessoas com níveis mais elevados de inteligência emocional têm mais competências de manipulação emocional não pró-social. No caso específico da capacidade empática, os resultados correspondem ao que é expectável: a empatia cognitiva tem uma correlação positiva com a manipulação emocional, enquanto a empatia afectiva tem uma correlação negativa. Saber compreender e interpretar os sentimentos do outro facilita a manipulação das suas emoções em proveito do manipulador, mas a capacidade de vivenciar os sentimentos do outro, colocando-se no seu lugar, pode funcionar como um inibidor do uso abusivo dos seus sentimentos.
Nas organizações a manipulação não é só praticada em sentido descendente. Os subordinados também podem exercer influencia manipuladora sobre o líder, tal como os colegas entre si. Os líderes são alvos preferenciais porque controlam os recursos, avaliam os desempenhos e distribuem as recompensas. As tácticas de manipulação ascendente mais comuns incluem o elogio e a bajulação, para influenciar as decisões do líder a seu favor, a deformação ou omissão selectiva da informação, para condicionar a percepção das situações, a criação de falsas urgências e dificuldades para se auto valorizar, criar divisões dentro da equipa para reforçar a sua posição, vitimizar-se para o líder se sentir culpado e favorecer o manipulador, minar a autoridade do líder desacreditando-o na sua ausência, reclamar créditos por sucessos que não teve, minar a reputação do líder com boatos e intrigas, usar a confiança e a proximidade pessoal ao líder para influenciar decisões que lhe sejam favoráveis.
Uma equipa liderada por Frank D. Belschak, da Universidade de Amsterdão, estudou as tácticas de manipulação usadas pelos colaboradores com traços acentuados de maquiavelismo e como elas podem ser condicionadas por um estilo de liderança ético (Angels and Demons: The Effect of Ethical Leadership on Machiavellian Employees’ Work Behaviors, 2018). O maquiavelismo é uma estratégia de conduta social que se caracteriza por a pessoa ter objectivos muito específicos que quer atingir e estar disposto a utilizar todos os meios para os alcançar, incluindo comportamentos à margem das normas sociais e da ética, tais como esconder a informação dos colegas, só ajudar os outros se esperar algo em troca, e usar a gestão das impressões e a manipulação emocional dos supervisores para obter vantagens. Estas práticas são usadas por muitas pessoas, mas as que mostram elevados traços de maquiavelismo usam-nas de forma mais intensa e frequente. O facto de querem acima de tudo vencer, pode levar os maquiavélicos a terem um elevado desempenho, sobretudo se puderem infringir as regras.
Os comportamentos anti éticos e anti sociais dos maquiavélicos assentam em várias razões.
A primeira é o facto de terem uma visão negativa e cínica do ser humano. Confiam pouco nos outros e quando infringem as normas encontram uma justificação achando que as outras pessoas teriam feito o mesmo. Vivenciam as suas acções com indiferença emocional. Quando quebram as normas não sentem emoções negativas como a culpa ou o remorso. Os maquiavélicos estão centrados em si mesmos e sentem-se descomprometidos com as pessoas e com a organização. Por isso, têm poucos comportamentos em benefício dos outros; não praticam mentiras pró-sociais, usando a mentira e o engano em proveito próprio. Vários estudos mostram que os maquiavélicos se envolvem em comportamentos de sabotagem, usam a manipulação emocional e envolvem-se em comportamentos pouco úteis.
O estudo de Belschak incidiu sobre 159 díades empregado-supervisor, de organizações de serviços de saúde, IT, arquitectura, consultoria, educação e serviços financeiros. Os resultados indicaram que os funcionários com alto maquiavelismo são sensíveis à forma como os líderes reagem aos seus comportamentos. Os líderes que recompensam claramente os comportamentos éticos e que reprovam os comportamentos manipuladores reduzem estes comportamentos nos colaboradores com elevado maquiavelismo e ajudam a estabelecer as normas e valores.
Os líderes que não especificam os comportamentos não desejáveis dão a entender que todos os meios são possíveis, encorajando, deste modo, os comportamentos manipulativos. Os líderes éticos ao defenderem os comportamentos justos e de acordo com as normas éticas, e ao reprovarem os comportamentos antiéticos e darem o exemplo, são particularmente eficazes a combater a tendência manipuladora das pessoas com elevado maquiavelismo, enquanto a ausência de uma liderança ética encorajada a ideia de que “vale tudo”.
O facto da manipulação ser condenada pelo senso comum mas continuar a ser utilizada explica-se pelos ganhos de curto prazo que pode obter. A manipulação pode alcançar objectivos de curto prazo controlando as pessoas e as situações, e assegurando a ordem e a previsibilidade. A manipulação exige menos esforço e investimento temporal, porque não requere a construção de relações de confiança. Como a manipulação está geralmente focada em ganhos de curto prazo, apoia-se em automatismos cognitivos (heurísticas) que levam a valorizar as vantagens imediatas e desvalorizar os prejuízos de longo prazo. Ao mesmo tempo permite eliminar os sentimentos de culpa lançando as responsabilidades sobre os outros.
O caso da Theranos é representativo de como uma liderança manipuladora pode controlar os funcionários, os investidores e até a comunicação social, levando-os a apoiar organizações que escondem práticas contrárias à lei e à ética. O caso foi estudado por Dennis Tourish e Hugh Willmot, da Universidade de Sussex, no Reino Unido (Despotic Leadership and Ideological Manipulation at Theranos: Towards a Theory of Hegemonic Totalism, 2023). Esta empresa de biotecnologia, de Silicon Valley, liderada por Elizabeth Holmes, prometeu criar um dispositivo de diagnósticos de saúde revolucionário, o Edison, capaz de realizar centenas de análises clínicas com algumas gotas de sangue, mas acabou por falir em 2018 e a sua fundadora foi condenada, em 2022, a onze anos de prisão por fraude. O conselho de administração da empresa, que chegou a ter 800 trabalhadores, incluía entre os seus membros ex-secretários de estado (William Perry, Henry Kissinger e George Shultz) e um ex-senador (Sam Nunn).
Os autores introduziram o conceito de “totalismo hegemónico” para descrever um fenómeno presente em muitas organizações actuais, mas que aqui aparece de forma extrema, que consiste em persuadir os colaboradores de que a organização prossegue uma missão nobre de grande valor social, e assim conseguir a sua entrega total ao projecto, utilizando meios como a intimidação, o sigilo e o engano.
A estratégia de manipulação passou pela concentração do poder num número restrito de decisores, que transmitiam uma imagem de competência, energia e sentido de missão. A informação era controlada e os problemas técnicos e não-conformidades do dispositivo de análises que estava a ser desenvolvido eram ocultados, ao mesmo tempo que os resistentes e opositores eram vigiados ou despedidos. Criou-se uma ideologia unificadora em que a CEO era exaltada como sua principal representante e a lealdade dos colaboradores era medida pela identificação emocional com a visão, os objectivos e os líderes da organização. As pessoas desenvolveram uma verdadeira fé na líder e dedicaram toda a sua energia ao cumprimento da missão, ao mesmo tempo que a liderança ganhava uma ilusão de omnipotência e intensificava a sua hegemonia.
A liderança conseguiu, deste modo, “totalizar” as crenças e as emoções dos colaboradores, transformando-os em cidadãos organizacionais obedientes. Os líderes da Theranos não tinham experiência em start-ups nem em biotecnologia. Concentraram todo o poder numa equipa de gestão sem capacidade técnica nem visão crítica. O objectivo nobre de lançar no mercado um dispositivo de análises ao sangue, que transformaria a saúde da população mundial, ajudou a criar uma cultura de auto-sacrifício e compromisso extremo que abateu as barreiras entre trabalho e vida pessoal, e galvanizou muitos a fazerem trabalho não remunerado. Muitos convenceram-se de que estavam entre os poucos eleitos que não tinham simplesmente um emprego, mas a missão especial de fazer do mundo um lugar melhor.
Os funcionários tinham acordos de confidencialidade desde que entravam. O trabalho era vigiado com câmaras de segurança e soava um alarme se mais de uma pessoa entrasse no laboratório. Esta vigilância promoveu o auto monitoramento e elevou os níveis de stress, mas a maior parte dos colaboradores viveram esta situação com um consentimento não forçado. Alguns declararam mesmo “ter-se apaixonado pela visão da Theranos” e um dos administradores chegou a dizer que estavam a trabalhar “para construir algo que achamos mágico”. A manipulação teve sucesso mesmo junto de órgãos de comunicação credenciados. O The New York Times considerou a CEO da Theranos “um dos cinco empreendedores de tecnologia visionários que estão a mudar o mundo” e a entrevista que a CEO deu à Fortune foi legendada de “Missão Elizabeth Holmes”. Em 2015 a revista Time incluiu Elizabeth Holmes entre as cem pessoas mais influentes do mundo.
Entretanto, a administração captava novos investidores apresentado o sucesso do seu novo produto com base em dados falsos, mentiras e projecções financeiras dez vezes superiores às que a empresa tinha calculado. Os funcionários que denunciavam a eficácia da tecnologia que estava a ser produzida eram demitidos e designados internamente de “desaparecidos”, ou forçados a desistir das denúncias sob ameaça. A investigação jornalística conduzida por John Carreyrou, do The Wall Street Journal, e as intervenções da Comissão de Valores Mobiliários e da FDA, puseram finalmente a nu toda esta manipulação em nome de uma causa nobre, bem como as suas práticas ilegais e anti-éticas. A Theranos é um bom exemplo de como uma liderança manipuladora pode criar uma cultura disfuncional usando o secretismo e a falsidade.
Os autores do estudo sublinham os riscos de manipulação com o uso crescente, nas organizações, de tecnologias de vigilância do desempenho e de ferramentas de inteligência artificial. Estes meios podem consolidar o poder dos executivos seniores aumentando a sua capacidade de escrutínio e de coerção, e o aparecimento de práticas de gestão despóticas. O caso Theranos é um caso extremo de liderança manipuladora com base na ideia de uma missão unificadora de elevado significado social, mas o fenómeno do “totalismo hegemónico” existe de formas subtis em muitas organizações.
Elisabeth Holmes, filha do vice-presidente da ENRON e fundadora da Theranos aos 19 anos, é o exemplo de como as lideranças carismáticas são capazes de lançar projectos disruptivos com a sua visão discrepante e inspiradora, obter prestígio e apoios, mas também podem constituir uma ameaça para as organizações e para o equilíbrio psicológico dos colaboradores com as suas tendências narcisistas, destrutivas e anti-éticas. O carisma também tem um lado negro que se exprime em formas de manipulação totalizante como esta, que conseguiu “vender” um projecto para melhorar a vida da humanidade montado sobre uma gigantesca fraude.
A manipulação pode ser mais discreta e passar despercebida à comunicação social, mesmo quando é praticada por figuras com grande visibilidade. Mais recentemente, Elon Musk publicou um tweet ameaçando os funcionários da Tesla com a perda da opção de acções se se sindicalizassem. As autoridades consideraram a mensagem uma tentativa ilegal de coacção. A mensagem foi apagada, mas o aviso ficou…
O storytelling é usado por muitos líderes como uma forma mais eficaz de influenciar os comportamentos do que a descrição dos factos reais. Contar histórias tem sido usado como ferramenta motivacional, mas também pode ser uma táctica de manipulação. Uma equipa de investigadores liderada por Tommi Auvinen (Leadership manipulation and ethics in storytelling, 2012) estudou a forma como o storytelling, enquanto acção discursiva, pode funcionar como um meio para manipular as equipas.
A narrativa de histórias pode servir de entretenimento, pode ajudar a recordar acontecimentos passados, a apoiar os nossos pontos de vista, justificar os nossos argumentos, mas também pode ser usada para embelezar a realidade, dramatizá-la e enganar os outros. Os líderes podem usar histórias falsas, a ambiguidade ou a incerteza para esconderem a verdade, transmitirem cenários mais optimistas ou mais catastróficos, transmitirem uma imagem falsa de si mesmos ou justificarem as suas atitudes e decisões.
O estudo baseou-se na análise de num conjunto de histórias usadas por gestores com o objectivo de influenciar os seus colaboradores e identificou quatro tipos de manipulação. A manipulação humorística, permite ao líder exprimir uma opinião crítica ocultando-se atrás de uma piada ou de uma situação risível. A manipulação pseudo-participativa, transmite aos colaboradores a ideia falsa de que foram eles que encontraram a solução para o problema quando o líder já tinha a decisão tomada. A manipulação sedutora apresenta um quadro de tal modo positivo e atraente que leva os colaboradores a distraírem-se da realidade. Na manipulação pseudo-empática o líder conta uma história que transmite a ideia falsa de que partilha os sentimentos e emoções dos seus colaboradores.
Os autores admitem que podem ser usadas outras formas de narrativa manipuladora como as histórias ameaçadoras ou as ilusões de sucesso, embora não as tenham encontrado, e sugerem ainda que se estude no futuro os mecanismos usados pelos colaboradores para manipular os seus líderes.
Nos quatro tipos de manipulação os líderes usaram uma abordagem consequencialista para justificar a ética da sua actuação, embora, em abstracto, julgassem negativo o uso da manipulação. Em muitos casos a narrativa manipuladora foi vista como uma forma de favorecer a resolução duma situação: manter um bom clima de trabalho, evitar aborrecimentos e desmotivação, atenuar os factos concretos ou evitar a coerção. Prevaleceu, assim, a ideia pragmática de que um certo grau de manipulação da narrativa, quando visando um bom propósito, pode ser aceitável na liderança.
Esta é a posição defendida pela teoria utilitarista de Stuart Mill: uma acção é aceitável desde que as suas consequências promovam um bem maior para um maior número de pessoas. Esta visão da ética julga as acções pelas suas consequências, não pela que é considerado certo ou errado nem pelo que constituem obrigações à priori.
O conceito de consequencialismo foi introduzido por Elisabeth Anscombe (Modern Moral Philosophy, 1958), que defendeu que o juízo moral de um acto deve levar em consideração as suas consequências. A ética consequencialista nega as perspectivas aristotélica e kantiana, considerando a manipulação justificada e ética desde que seja exercida em benefício da maioria e conduza a um bem maior. Existiriam, deste modo, formas éticas de manipulação.
A manipulação é uma das formas mais comuns da falta de ética no exercício da liderança. Manipular é um recurso de que muitos líderes se servem, mas é sempre uma estratégia com efeitos transitórios. Mesmo numa perspectiva consequencialista, a manipulação, na maior parte dos casos, só consegue um bem maior para um maior número de pessoas, no curto prazo. A longo prazo, a manipulação envolve um sério risco para os líderes e para as organizações. A revelação das tácticas manipulatórias e das suas intenções ocultas, e as práticas anti-éticas e até ilegais, que muitas vezes envolvem, põem a reputação do líder em causa, induzem a perda da confiança dos parceiros e podem levar ao colapso das organizações. Destruídas as relações de confiança, a liderança enquanto processo de influencia deixa de ser possível. Só se adere quando se confia. A manipulação põe a liderança em risco de se auto destruir. Por isso, resistir à tentação manipuladora é um desafio para todos os líderes.
Ainda acredita que a liderança é uma forma de manipulação?